Do barro às cinzas
Por Alessandra Leles
Rocha
A cultura é um
processo contínuo em que se acumulam conhecimentos e também práticas que
resultam da interação social entre indivíduos. Esse processo é mediado pela
língua, que permite que a cultura seja transmitida e difundida entre as
gerações, daí compreendermos que a cultura de um povo constitui-se como um todo
que é realizado por cada indivíduo, afinal, cada um é uma peça importante na
construção cultural, uma vez que é portador, disseminador, mas também criador
de cultura. O homem é, portanto, um ser cultural e é a cultura que o permite
adaptar-se aos diferentes ambientes. (COELHO; MESQUITA, 2013, p. 27)1
O mesmo fogo que alimenta a vida também a destrói; labaredas que
consomem a matéria e toda a subjetividade nela contida, de modo que não reste
mais nada além de cinzas.
Diante dos horrores que o mundo teima em nos exibir
diariamente, devo confessar que o incêndio no Museu Nacional 2, na cidade do Rio de Janeiro, não me
causou espanto. Afinal, tragédias anunciadas não deveriam ser causa de nenhum
grau de perplexidade. O que elas geram em mim é um foco a mais de análise em
relação à displicência com que tratamos a vida.
Nada, absolutamente nada é o que significa a nossa existência.
Somos cotidianamente mortos, em doses homeopáticas ou não. Mortos na matéria e
na essência vemos esvair pelos dedos a nossa trama identitária, porque não há
nenhum tipo de constrangimento ou preocupação sobre quem, ou o que somos e
fazemos.
De tanto contar o hoje, o agora, esquecemos de que o nosso
alicerce existencial é bem mais multifacetado. Somos parte integrante e
integrada do passado, presente e futuro. Por isso o pesar diante das chamas a
engolirem com voracidade esse pedaço de nós, o qual passamos absortos sem
perceber.
Portanto, o caso pede acordar a consciência. Afinal, ele nos
mostra que precisamos nos cuidar, nos responsabilizar por nossa existência; na
medida em que, se não fizermos não haverá quem faça. A cômoda posição de
beneficiário das “benesses” é um risco em tempos pós-modernos; pois, cada um
está tão preocupado consigo mesmo que não enxerga o entorno. Enquanto custeamos
a peso de ouro a sobrevivência de nosso provedor maior, o Estado, ele próprio nos
invisibiliza frente a tamanho fastio: para ele nada falta.
O Museu Nacional se perdeu em chamas; mas, o mesmo acontece
todos os dias com a educação, a saúde, a segurança,... onde o fogo arde sem se
ver na síntese mais perversa do desamor coletivo, da anticidadania, que mata
lenta e vagarosamente. E assim, morremos sem ao menos saber quem somos o que somos ou fizemos, no mais puro exemplo de “morte matada”. Sim, aquela que não
veio natural no curso da vida; mas, pelas mãos ardilosas e ofensivas do mal
querer.
Sabe, o fogo não tem consciência da malvadeza que é capaz de
produzir; mas, o ser humano tem. Ele sabe
o preço da vida e do viver. Ele tem a dimensão dos prejuízos. Só se esquece de
que para toda ação há uma reação na mesma intensidade... Já dizia Zygmunt
Bauman (2005) 3, “as
decisões que o próprio indivíduo toma, os caminhos que percorre, a maneira como
age – e a determinação de se manter firme a tudo isso – são fatores cruciais
tanto para o “pertencimento” quanto para a “identidade””.
Portanto, estamos sendo condescendentes com a incineração da
nossa identidade, do nosso pertencimento, ao aceitar as coisas como são ou por esperar
medidas milagreiras de última hora pelas mãos de salvadores da pátria ou por
nos contentarmos com a reincidência das reconstruções... Até quando submeteremos nosso
barro às cinzas?
Domingo foi o Museu Nacional, amanhã só Deus sabe. Enquanto isso,
nossas cinzas vão se acumulando, voando com os ventos gélidos e nefastos da
pós-modernidade, porque nossa incapacidade de entender que “O social e o simbólico referem-se a dois
processos diferentes, mas cada um deles é necessário para a construção e a manutenção
das identidades” (Woodward, 2000, p. 14) 4,
ainda nos paralisa.
1 COELHO, L. P.; MESQUITA, D. P. C. de. Língua, Cultura e Identidade:
Conceitos intrínsecos e interdependentes. ENTRELETRAS, Araguaína/TO, v.4, n.1, p.24-34,
jan./jul.2013.
3 BAUMAN, Z. Identidade:
entrevista a Benedetto Vecchi. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
4 SILVA, T.
T. da (Org.). Identidade e diferença – A perspectiva dos estudos
culturais. Petrópolis: Vozes, 2000, 133p.