Discursos
reveladores...
Por
Alessandra Leles Rocha
Algumas verdades são
bastante inconvenientes porque desnudam o ser humano e nos dão a exata dimensão
do que ele esconde por detrás das aparências. A edição da Portaria nº. 1129, de
13/10/2017 , do Ministério do
Trabalho, têm gerado inúmeros protestos e indignação na sociedade brasileira e
abriu um espaço relevante para a reflexão sobre o nosso senso de humanidade.
Nos traços do seu
primitivismo, o que permite espaço para discutirmos sobre escravidão,
exploração, tráfico de pessoas e tantas outras barbáries está no fato de que,
consciente ou inconscientemente, o ser humano acredita na existência de
critérios de superioridade e importância, buscando para isso desde
fundamentações religiosas até científicas. Tudo se transforma em estopim para
satisfazer a esses discursos e como consequência deles, promover a disseminação
da intolerância e violência em relação à crença, ao gênero, a condição social,
ao biótipo, a etnia, etc., como temos visto por aí.
É partindo dessa
premissa que o ser humano sem nenhum constrangimento chegou ao ponto de usurpar
da vida de seus pares e colocá-los na mais plena condição de indignidade para
satisfazer ao seu próprio benefício. Impérios foram erguidos assim, com pessoas
sendo consideradas mercadorias, a serem vendidas, compradas ou trocadas por
animais ou dívidas, em mercados do mundo.
Na Mesopotâmia, na
Índia, na China, no Egito, na Grécia, nas Civilizações pré-colombianas,... as
páginas da história dão conta de como sociedades aparentemente tão distintas
eram em essência tão iguais, quando o assunto era a escravização de seres
humanos. Escravos não eram cidadãos, não tinham direitos, tinham deveres. Em
geral, eles eram o espólio de guerra e destinavam-se a atender aos serviços
domésticos, na agricultura, nas minas, nos exércitos, como remadores de barcos
e outras funções braçais.
A partir do Iluminismo,
no século XVIII, as reações contra a prática escravagista se acentuaram, no
sentido de apontar a imoralidade que ela representava para uma sociedade tida
como intelectualizada e dotada de profunda racionalidade. Então, no século XIX,
ela tornou-se proibida em várias partes do planeta, o que não significou
exatamente o fim da sua existência.
Entretanto, nesse
transitar histórico, ocorre no século XVIII a Revolução Industrial, na
Inglaterra, e a partir dela um novo modo de organização do trabalho se institui
fundamentado pela economia capitalista moderna. Embora o trabalhador passe a
ser assalariado, a paga pelo seu trabalho faz surgir a mais-valia, ou seja, parte do valor da força de trabalho dispendida por um
determinado trabalhador na produção não é remunerada pelo patrão. Inicia-se,
portanto, a exploração. As péssimas condições de trabalho e vida se traduziam
em jornadas de trabalho que superavam 15 horas diárias e, também, incluíam
mulheres e crianças em atividades desumanas. Para combater a exploração, a
classe operária cria, de forma clandestina, as uniões de ofícios (precursoras
dos sindicatos).
Isso
significa que, além do trabalho escravo propriamente dito não ter sido
completamente extinto, surgiu à exploração do trabalhador assalariado, ou seja,
o discurso humano sobre “a existência de critérios de
superioridade e importância” encontrava mecanismos para permanecer entre nós. Na
verdade, a escravidão e a exploração tornaram-se a mesma coisa, na medida em
que a práxis da submissão humana às condições degradantes e indignas continuava
acontecendo e não incomodando uma parcela da
população, a dos donos dos meios de produção.
E assim
chegamos ao século XXI... Não consigo deixar de pensar sobre essas palavras da filósofa
norte-americana de origem judaico-russa, Ayn Rand: “Quando você perceber que, para produzir, precisa obter a
autorização de quem não produz nada; quando comprovar que o dinheiro flui para
quem negocia não com bens, mas com favores; quando perceber que muitos ficam
ricos pelo suborno e por influência, mais que pelo trabalho, e que as leis não
nos protegem deles, mas, pelo contrário, são eles que estão protegidos de você;
quando perceber que a corrupção é recompensada, e a honestidade se converte em
auto sacrifício; então poderá afirmar, sem temor de errar, que sua sociedade
está condenada”.
São
as pessoas a que ela se refere é que disseminam e perpetuam os discursos de um
novo escravagismo pelo mundo. De fato, ressalvo raríssimas exceções, ninguém
está acorrentado durante o trabalho; mas, as relações estão distantes, anos
luz, do que pregam os fundamentos previstos nos incisos II, III e IV, do artigo
1º, da Constituição Federal de 1988. Afinal de contas, desrespeitar tais relações
é desrespeitar a cidadania, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais
do trabalho.
Se
nos primórdios da Revolução Industrial a insalubridade e as longas jornadas
encurtaram a vida de milhares de pessoas, essa realidade não ficou no passado. O
stress no ambiente de trabalho está associado às novas tendências tecnológicas,
responsáveis pelo estado de constante atenção, disponibilidade e competição a que
os empregados estão submetidos em suas jornadas laborais. Ao viverem em ritmo
de intensidade incompatível com o bem-estar necessário, os trabalhadores têm ficado
doentes ao ponto de se tornarem incapacitados para o trabalho. Taquicardia,
tensão muscular, dores de estômago, cansaço e dificuldades de memorização, em
relativo espaço de tempo esses sintomas se somatizam e conduzem o trabalhador a quadros mais sérios, tais como: LER/DORT (Lesão por Esforços Repetitivos/ Distúrbios
Osteomusculares Relacionados ao Trabalho), Depressão, Síndrome do Pânico,
Surdez, Desgaste da Visão.
Isso
ocorre porque na tentativa de alcançar a dignidade de seus direitos sociais – Educação,
Saúde, Lazer, Segurança, Previdência Social -, o ser humano precisa recorrer a
jornadas duplas ou triplas de trabalho, comprometendo assim o seu bem estar
físico, psíquico, emocional e afetivo. Nessa roda-viva é claro que o ônus da
situação uma hora recai sobre o Estado, no âmbito de auxílios oferecidos pelo
INSS – aposentadoria por invalidez, aposentadoria especial, auxílio-acidente,
auxílio-doença, auxílio-doença acidentário, pensão por morte – e, de
atendimentos de saúde pelo SUS. Com 13,3 milhões de desempregados, segundo o
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), deveria ser do
interesse do Estado garantir segurança e dignidade ao cidadão trabalhador de
modo que este não precisasse de políticas assistencialistas, não é mesmo?
Portanto,
além do discurso revelador manifesto pela Portaria nº. 1129, de
13/10/2017, paira no ar o receio de que essa medida venha, de repente,
favorecer a abertura de eventuais vagas de “trabalho”; na verdade, novas
frentes de consolidação da velha e conhecida práxis da submissão humana às
condições degradantes e indignas, fundamentadas na Lei da Oferta e da Procura
para mão de obra. Nesse contexto, o Estado sairia ganhando com a mitigação do
impacto em seus gastos; mas, e a sociedade?
Preste atenção nos
discursos. Preste atenção no que você diz e pensa. No fim das contas, o bom e o
ruim da vida sempre recaem sobre você. Você paga a conta do justo e do injusto
da vida. Da desigualdade que fomenta a anticidadania. Da marginalização da raça
humana, a qual você faz parte (se lembra?). Enfim... Como eu mesma escrevi, em
abril de 2010 , “TRABALHO. Bendito seria ele se fosse reconhecido, se
recebêssemos a paga justa, se nos devolvesse de fato a dignidade, a cidadania e
a consciência da própria vida. Não temos mais senzalas, troncos, correntes,
açoites ou chibatas; mas, continuamos a ver cidadãos brasileiros (de todas as
etnias, credos, idades, gêneros, graus de escolaridade) todos os dias com os
olhos e alma cabisbaixos, tristes, cansados, humilhados, comprimidos nos trens,
nos ônibus, nas lotações pela busca do sagrado pão de cada dia. Esse “moderno
escravagismo remunerado”, que ainda nos surpreende com a versatilidade
brasileira dos que conseguem sobreviver com um salário mínimo, há de um dia
restar somente nos livros como símbolo de uma época da inconsciência de um
desenvolvimento desigual e distante do que se espera de uma grande nação”.
Fica a reflexão!