domingo, 22 de outubro de 2017

"O segredo da saúde mental e corporal está em não se lamentar pelo passado, não se preocupar com o futuro, nem se adiantar aos problemas, mas viver sabia e seriamente o presente". Buda

A previsibilidade do “fatalismo”


Por Alessandra Leles Rocha


A tragédia ocorrida na última sexta-feira em Goiânia (GO) desperta uma reflexão importante para o país. Independente se a escola é pública ou privada, a violência é uma ameaça iminente a paz e a tranquilidade que deveriam ali ter seu espaço resguardado. Mas, para lidar com a violência nas suas mais diferentes faces e repercussões dentro do ambiente escolar é preciso urgentemente dispor de uma equipe profissional apta para isso, ou seja, psicólogos e assistentes sociais.
A justificativa inicial dada pelo menor, autor dos disparos que vitimaram dois colegas e feriram mais quatro, foi o bullying que estava sofrendo. Confirmada ou não a alegação dele, a verdade é que algo muito grave e não perceptível pelas pessoas ao redor desse garoto estava acontecendo. Uma iniciativa brutal dessa envergadura não acontece no ímpeto de um momento ou de uma banalidade. Trata-se de ações pensadas, planejadas, o que demonstra um processo lento e gradual de construção, que não somente o bullying poderia desencadear.
No auge das emoções a flor da pele, como agora, é comum que as pessoas comecem a se questionar por não terem percebido, sentido algo de estranho ou sintomático nos comportamentos daquele garoto. Essa possível “displicência” involuntária pode ter ocorrido; mas, a alma humana é sempre uma caixinha de surpresas e de repente, pode nos pegar desprevenidos e nos causar um estarrecimento sem precedentes, por conta do despreparo técnico para o assunto.
É por isso que a presença de profissionais especializados no comportamento se torna imprescindível na escola.  Não bastasse a adolescência que, por si só, já é bastante complexa no campo individual, a relação de coexistência e convivência na escola é algo ainda mais delicado.
Quando os olhares da sociedade se concentram apenas nos episódios de bullying, deixa-se de perceber milhares de situações de automutilação, de tentativas suicidas, de depressão, de transtornos alimentares, etc. que podem estar afligindo outros tantos jovens. Antes de serem alunos aqueles indivíduos que entram pela porta da escola são seres humanos. Na sua bagagem existencial há questões nem sempre expostas, clara e abertamente, além dos comportamentos típicos a qualquer estudante.
O argumento em torno de encaminhamentos extraescolares, quando se percebe algo fora dos padrões, é inconsistente. Na maioria das vezes, eles não acontecem satisfatoriamente, pois deixa de existir um intercâmbio de informações entre os profissionais que atendem esses alunos e a escola. Portanto, o ciclo de ajuda e suporte psicológico e assistencial para esses alunos fica fragmentado e não surte os resultados esperados. Além disso, trata-se de profissionais que não compartilham a vivência daquele ambiente escolar para que pudessem fundamentar suas observações de forma mais contundente. No caso da escola pública, então, essa realidade praticamente não acontece, em razão dos custos extras que esse tipo de atendimento representa para as famílias.
Mas, diante do que aconteceu em Goiânia, é importante destacar, também, o impacto desses acontecimentos sobre os servidores da escola, professores e funcionários que viram a sua rotina repentinamente impactada pela violência, de onde menos se esperaria. Esses profissionais da mesma forma que seus alunos são merecedores de atendimento psicossocial, para que possam continuar desempenhando adequadamente suas funções, sob uma repercussão mitigada e reelaborada do estresse pós-traumático. Eles precisam reaprender a lidar com episódios assim, a partir do apoio recebido de profissionais qualificados no assunto.
Portanto, a reflexão trazida nutre a sensação de que o olhar que a sociedade tem oferecido para si mesma parece cada vez mais superficial. Não estamos dando a devida atenção à saúde mental 1 dos seres humanos. Tudo se transforma em piada, em escárnio, em deboche, enquanto um sofrimento, um desespero silencioso, sufoca a vida de milhares de pessoas. O simples fato de vivermos “A Civilização do Espetáculo”, como definiu Mario Vargas Llosa, em seu livro homônimo, já nos dá conta do grau de afirmação das aparências a que somos submetidos todos os dias. A identidade humana encontra-se ameaçada, na medida em que as pessoas sentem-se oprimidas a satisfazerem os ideários coletivos para poder pertencer, enquanto a individualidade se perde na subtração de valores, padrões, etc. Esse esforço diário pode ser tão brutal, que culmina por adoecer o indivíduo. Às vezes, ele nem se dá conta do processo.  Outras, ele não consegue buscar ajuda e padece solitário.  
Se a sociedade não se predispuser a lidar com a realidade, disponibilizando um espaço para discutir essas questões em profundidade e lutar para que os investimentos capazes de atender a essas demandas, inclusive nas escolas, se tornem realidade, o país tenderá a viver em constante sobressalto com episódios cada vez mais terríveis. Não podemos creditar tudo de ruim que nos acontece ao simples “fatalismo”. Na maioria das vezes, a fatalidade é só uma questão de atenção, de cuidados, de prevenção.



1 De acordo com a Organização Mundial da Saúde, saúde mental é um estado de bem-estar no qual o indivíduo é capaz de usar suas próprias habilidades, recuperar-se do estresse rotineiro, ser produtivo e contribuir com a sua comunidade.