A
previsibilidade do “fatalismo”
Por
Alessandra Leles Rocha
A tragédia ocorrida na
última sexta-feira em Goiânia (GO) desperta uma reflexão importante para o
país. Independente se a escola é pública ou privada, a violência é uma ameaça
iminente a paz e a tranquilidade que deveriam ali ter seu espaço resguardado. Mas,
para lidar com a violência nas suas mais diferentes faces e repercussões dentro
do ambiente escolar é preciso urgentemente dispor de uma equipe profissional
apta para isso, ou seja, psicólogos e assistentes sociais.
A justificativa inicial dada
pelo menor, autor dos disparos que vitimaram dois colegas e feriram mais
quatro, foi o bullying que estava sofrendo. Confirmada ou não a alegação dele,
a verdade é que algo muito grave e não perceptível pelas pessoas ao redor desse
garoto estava acontecendo. Uma iniciativa brutal dessa envergadura não acontece
no ímpeto de um momento ou de uma banalidade. Trata-se de ações pensadas,
planejadas, o que demonstra um processo lento e gradual de construção, que não somente
o bullying poderia desencadear.
No auge das emoções a flor
da pele, como agora, é comum que as pessoas comecem a se questionar por não terem
percebido, sentido algo de estranho ou sintomático nos comportamentos daquele
garoto. Essa possível “displicência” involuntária pode ter ocorrido; mas, a alma
humana é sempre uma caixinha de surpresas e de repente, pode nos pegar
desprevenidos e nos causar um estarrecimento sem precedentes, por conta do
despreparo técnico para o assunto.
É por isso que a presença de
profissionais especializados no comportamento se torna imprescindível na
escola. Não bastasse a adolescência que,
por si só, já é bastante complexa no campo individual, a relação de coexistência
e convivência na escola é algo ainda mais delicado.
Quando os olhares da
sociedade se concentram apenas nos episódios de bullying, deixa-se de perceber
milhares de situações de automutilação, de tentativas suicidas, de depressão,
de transtornos alimentares, etc. que podem estar afligindo outros tantos jovens.
Antes de serem alunos aqueles indivíduos que entram pela porta da escola são seres
humanos. Na sua bagagem existencial há questões nem sempre expostas, clara e
abertamente, além dos comportamentos típicos a qualquer estudante.
O argumento em torno de
encaminhamentos extraescolares, quando se percebe algo fora dos padrões, é
inconsistente. Na maioria das vezes, eles não acontecem satisfatoriamente, pois
deixa de existir um intercâmbio de informações entre os profissionais que
atendem esses alunos e a escola. Portanto, o ciclo de ajuda e suporte psicológico
e assistencial para esses alunos fica fragmentado e não surte os resultados
esperados. Além disso, trata-se de profissionais que não compartilham a vivência
daquele ambiente escolar para que pudessem fundamentar suas observações de
forma mais contundente. No caso da escola pública, então, essa realidade praticamente
não acontece, em razão dos custos extras que esse tipo de atendimento
representa para as famílias.
Mas, diante do que aconteceu
em Goiânia, é importante destacar, também, o impacto desses acontecimentos
sobre os servidores da escola, professores e funcionários que viram a sua
rotina repentinamente impactada pela violência, de onde menos se esperaria. Esses
profissionais da mesma forma que seus alunos são merecedores de atendimento
psicossocial, para que possam continuar desempenhando adequadamente suas funções,
sob uma repercussão mitigada e reelaborada do estresse pós-traumático. Eles precisam
reaprender a lidar com episódios assim, a partir do apoio recebido de profissionais
qualificados no assunto.
Portanto, a reflexão trazida
nutre a sensação de que o olhar que a sociedade tem oferecido para si mesma parece
cada vez mais superficial. Não estamos dando a devida atenção à saúde mental 1 dos seres humanos. Tudo se transforma
em piada, em escárnio, em deboche, enquanto um sofrimento, um desespero
silencioso, sufoca a vida de milhares de pessoas. O simples fato de vivermos “A
Civilização do Espetáculo”, como definiu Mario Vargas Llosa, em seu livro homônimo,
já nos dá conta do grau de afirmação das aparências a que somos submetidos
todos os dias. A identidade humana encontra-se ameaçada, na medida em que as
pessoas sentem-se oprimidas a satisfazerem os ideários coletivos para poder
pertencer, enquanto a individualidade se perde na subtração de valores, padrões,
etc. Esse esforço diário pode ser tão brutal, que culmina por adoecer o
indivíduo. Às vezes, ele nem se dá conta do processo. Outras, ele não consegue buscar ajuda e padece
solitário.
Se a sociedade não se predispuser
a lidar com a realidade, disponibilizando um espaço para discutir essas questões
em profundidade e lutar para que os investimentos capazes de atender a essas
demandas, inclusive nas escolas, se tornem realidade, o país tenderá a viver em
constante sobressalto com episódios cada vez mais terríveis. Não podemos
creditar tudo de ruim que nos acontece ao simples “fatalismo”. Na maioria das
vezes, a fatalidade é só uma questão de atenção, de cuidados, de prevenção.
1 De
acordo com a Organização Mundial da Saúde, saúde mental é um estado de
bem-estar no qual o indivíduo é capaz de usar suas próprias habilidades,
recuperar-se do estresse rotineiro, ser produtivo e contribuir com a sua
comunidade.