Os desafios da calçada
Por Alessandra Leles Rocha
Quem nunca ouviu falar sobre o direito de ir e vir, hein? O ir e vir está diretamente relacionado à nossa liberdade existencial, transitar segundo nossos anseios e necessidades humanas; embora, não só os seres humanos desfrutem disso, pois os animais vão de um lugar para outro em busca de sua satisfação vital - alimentos, água, abrigos, reprodução, enfim...
Entretanto, esse livre trânsito do indivíduo ao longo de sua vida quase sempre esbarra em algum tipo de empecilho; desde arbitrariedades sociais as mais simples questões urbanísticas. E é sobre as questões urbanísticas que pretendo discorrer.
Temos o mau hábito de nos enxergar perfeitamente plenos e aptos para desfrutar a vida sem restrições. Com frequência nos “esquecemos” que viver é um jogo de alto risco, no qual ganhar ou perder se alterna em um simples piscar de olhos. Que a juventude e a vitalidade não caminham de mãos dadas com a eternidade e, desde a mais tenra infância somos obrigados a enfrentar os obstáculos do caminho em seu sentido literal.
Ao adquirirmos a mobilidade para além de nossas residências, nos deparamos com espaços urbanos altamente heterogêneos. Subidas, descidas, calçamentos lisos, calçamentos ásperos, calçamentos quebrados, calçamentos recompostos por diferentes tipos de materiais, elevações, ausência de meio fio, bueiros abertos, bueiros com tampas inapropriadas, etc.etc.etc. e a grande questão: como se equilibrar a tudo isso?
Na ótica daqueles que não apresentam nenhum tipo de deficiência, seja ela permanente ou temporária que os impossibilite a locomoção, analisemos a situação. Pelo fato de não andarmos mais descalços, nossos pés agradecem felizes por não terem que enfrentar tamanha adversidade! Por outro lado, nossos bolsos choram entristecidos pela nossa aparente compulsão em comprar sapatos. Sim! Eu sei que há pessoas que não resistem a um ou mais passeios semanais as lojas de calçados; mas, também sei, que diante do confronto entre a rotina estressante do cotidiano e a saga heroica pelas ruas a necessidade em utilizar sapatos confortáveis e duráveis se torna emergencial. E nessa luta feroz por um sapato adequado, gradativamente vamos descobrindo que ele é um ideal inatingível; pois, o que nos garante a sensação de bem-estar quando exposto a um determinado tipo de calçada pode se transformar em um tormento em outro. Ah! Sem contar os cidadãos que são obrigados a utilizar um determinado tipo de sapato para composição do uniforme de trabalho ou escola. Assim, não são incomuns pelas ruas o presenciar de quedas, entorses, luxações, fraturas, de diferentes tipos e graus de periculosidade.
Mas agora, nos coloquemos na posição – a qual, independente de nossa vontade, é passível de nos acometer – das pessoas com deficiência. Deficientes visuais, físicos, cadeirantes, com paralisia cerebral, que apresentam um nível de dificuldade de locomoção mais acentuado. Os espaços urbanos se tornam barreiras quase que intransponíveis para a sua inclusão. Sem palavras, mas com uma realidade prática e cruel, a cidade os faz recuar no seu desejo de acessibilidade. Como chegar a escola, se os passeios são estreitos (mal é possível passar uma única pessoa por vez), irregulares e praticamente somos obrigados a transitar pela via pública? Como ir ao clube, se o acesso até lá é íngreme e os calçamentos foram feitos em degraus? ... Esses e tantos outros exemplos contam a luta de milhares de pessoas com deficiência, no Brasil e no mundo, que não tem o seu direito de ir e vir respeitado. Por isso, tão poucos conseguem estudar, trabalhar, se profissionalizar, conquistar a sua dignidade cidadã e não mais precisar das ações assistencialistas do Estado para a sua sobrevivência.
E os idosos? Há os que são e os que não são deficientes; mas, o próprio envelhecimento e suas consequências (perda da acuidade auditiva, dos reflexos motores, do equilíbrio, da visão e problemas na coluna) restringe significativamente a sua capacidade de locomoção e a desenvoltura para transitar pelas cidades passa a representar um risco de vida. Na tentativa de driblar os obstáculos, muitos deles vagueiam pelas vias públicas e são atropelados. Os mais ousados que tentam caminhar pelos passeios se tornam frequentes vítimas de fraturas e traumatismos, que variam de leves a gravíssimos. Alguns, ainda padecem da dificuldade em calçar sapatos, que conferem mais estabilidade e firmeza aos pés, e pelo fato de utilizarem chinelos se expõem mais aos riscos.
Crianças, jovens, adultos e idosos, de todas as etnias, credos e círculos sociais estão diante do desafio das calçadas. Não é à toa, que ao findar do dia há tanta gente reclamando de dores aqui e acolá, com os pés inchados e doloridos, com a coluna sem saber se posicionar, com os joelhos e os tornozelos em frangalhos. Não bastasse desafiar as irregularidades do caminho, temos sobre os ombros bolsas (as mulheres) e mochilas (os homens) pesadas, nas mãos e nos braços sacolas (aquela comprinha do mercado, por exemplo) não menos imperceptíveis, que nos transformam em verdadeiros “burros de carga”. Quanto clama o nosso corpo por misericórdia aos Céus! Mas, é aqui na Terra, na consciência de nossos gestores, que também são seres humanos, que as súplicas precisam se transformar em mudanças no planejamento urbanístico das cidades, com os investimentos sendo aplicados na melhoria da qualidade de vida dos cidadãos. As calçadas não podem continuar a serem vistas como parte da propriedade particular, satisfazendo aos gostos e “irresponsabilidades” de seus proprietários, posto que nelas transitam a diversidade do contingente populacional da cidade (cada qual com suas necessidades e precisando urgentemente que um padrão de calçamento único e satisfatório seja estabelecido). Afinal de contas, se hoje você ainda é capaz de superar obstáculos, amanhã o inusitado pode te fazer uma visita e como você vive em um espaço geográfico não adaptado e sem a compreensão devida da sua responsabilidade social para com essas circunstâncias do destino, estará fadado a ficar boa parte do tempo com o nariz grudado na vidraça assistindo a vida caminhar.