A relação
custo/benefício refletida na saúde brasileira
Por Alessandra
Leles Rocha
Ainda que, uns e outros, torçam o
nariz para o Sistema Único de Saúde (SUS), não sei o que seria do Brasil, sem
ele. Aliás, a experiência da pandemia, dá bem a dimensão a esse respeito. Quantas
vidas foram salvas, apesar de todos os pesares, não é mesmo?!
Aí, diante da notícia sobre uma
onda de cancelamentos unilaterais, por parte de planos de saúde privados, no
país, tendo como alvos preferenciais clientes idosos ou portadores de doenças
raras ou de alta complexidade, fui levada à uma reflexão profunda.
Começando pelo fato de que a rede
pública e a rede privada não são excludentes. Ter como garantia de atenção e
atendimento satisfatório para as demandas de saúde, no país, dois caminhos, é
muito bom. Não só, porque oferta a possibilidade de escolha do cidadão, a partir da
sua realidade socioeconômica, como não leva à sobrecarga de nenhuma das redes,
influenciando no desequilíbrio orçamentário para a satisfação dos serviços.
No entanto, apesar dessa
realidade, não é preciso dizer como o SUS enfrenta desafios orçamentários, há décadas,
por carências nas políticas públicas para o setor. Além disso, a perspectiva do
empobrecimento e adoecimento global, da precarização do trabalho, tem acrescido
significativamente as demandas, em razão de que um novo público emergiu da
impossibilidade de pagar ou de manter um plano privado de saúde.
Mas, mesmo assim, o SUS não esmoreceu!
Continua aí, firme, persistente e resistente, oferecendo serviços de baixa,
média e alta complexidade, sem distinção de quaisquer naturezas. Demora? Infelizmente,
muitas vezes, sim. Embora, a lei n.º 8080, de 19 de setembro de 1990, estabeleça
dentre os objetivos do SUS que haja “a assistência às pessoas por intermédio
de ações de promoção, proteção e recuperação da saúde, com a realização
integrada das ações assistenciais e das atividades preventivas” (art. 5º,
inciso III), existe um gargalo de demandas que ainda não foi superado.
Porém, o SUS busca constantemente
enfrentá-lo e atender seus pacientes da maneira mais rápida e eficiente
possível. E esse me parece o ponto crucial de análise. Considerando o caso
citado acima, envolvendo os planos privados, em que cancelamentos unilaterais de
contratos relacionados a algumas doenças e transtornos têm pegado de surpresa
milhares de pacientes, as justificativas apresentadas recaem sempre sobre os
custos de operação.
Argumentam que certas coberturas
inviabilizam a dinâmica operacional dos planos, o mesmo que se apresenta,
quando na ocasião dos reajustes, autorizados anualmente pela Agência Nacional
de Saúde Suplementar (ANS) ou aqueles, cujo percentual encontra-se previamente definido
em contrato. E esse parece ser o ponto
de partida para entender o modo como tem se estabelecido a relação entre os
planos privados de saúde e seus usuários, na medida das contrapartidas
oferecidas.
Vejam, por exemplo, como esse
tipo de discurso permitiu que os planos passassem a ser concebidos a partir da
capacidade orçamentária do usuário. O que, em linhas gerais, significa que o
seu atendimento está condicionado ao que oferece o plano de saúde, por ele,
contratado.
Se assim não for, ele não
receberá o atendimento necessário e terá como opção, ou pagar pelos custos, em
PIX ou cartão de crédito, ou, então, se deslocar para o atendimento mais próximo
na rede pública, o SUS. Como se o cidadão tivesse obrigação de ter controle
sobre a patologia que venha acometer a sua saúde!
Mas, não para por aí. O atendimento
desumanizado que vem sendo promovido pelos planos privados de saúde é ainda
mais perverso e cruel. A qualidade e a eficiência acabam também condicionadas ao
que determina o contrato. Inúmeros estabelecimentos de saúde sequer oferecem ao
usuário informações claras e precisas quanto aos planos por eles atendidos. Cabe
ao indivíduo peregrinar em busca de uma resposta.
Também é notável como a drástica
redução de profissionais e serviços credenciados impacta o atendimento. Algo que
é bastante preocupante, porque representa uma flagrante perda da possibilidade
de construção de uma relação de confiança entre paciente e profissional de
saúde. Ora, o usuário acaba exposto a uma loteria da disponibilidade, sendo
atendido por alguém que ele não escolheu. Enfim...
Mas, talvez, a cereja do bolo,
seja ver o empenho dos planos privados de saúde em estratégias de marketing,
para se promover. As marcas estão, por todo os lados, patrocinando esportes,
oferecendo descontos em universidades ou na compra de cosméticos, por
exemplo, via mailing. O que não deixa dúvidas o quanto a iniciativa privada, no
setor da saúde, está se afastando do seu propósito.
Acontece que esse movimento estabelece
dentro do contexto populacional um acirramento do adoecimento. É fundamental
entender que a obstaculização à saúde leva milhares de pessoas a postergar a
busca pelo atendimento. Por consequência, doenças que poderiam ser tratáveis e/ou
facilmente evitáveis, transformam-se em uma complexa teia de comorbidades.
O que implica em custos, não só
do ponto de vista do tratamento em si, mas da dinâmica social. Patologias cardiovasculares,
metabólicas, renais, hepáticas, pulmonares, cânceres e outras, tendem a
distanciar esses pacientes, e muitas vezes, suas famílias, do mercado de
trabalho. A torná-los dependentes do amparo assistencial do Estado. A recorrer
à judicialização das suas demandas; sobretudo, quando o objetivo é preservar a
vida.
É lamentável que, em pleno século
XXI, tenhamos que trazer esse tipo de discussão à tona. Em 1948, quando foi adotada
e proclamada a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), fez-se questão,
no seu artigo XXV, inciso 1, afirmar que “Todo ser humano tem direito a um
padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde, bem-estar,
inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados
médicos e os serviços sociais indispensáveis e direito à segurança
em caso de desemprego, doença, invalidez, velhice ou outros
casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle”.
Não, não foi por acaso. Saúde é
parte da dignidade humana. Algo que não tem caráter estritamente individual. A saúde
diz respeito ao coletivo humano. Mesmo nas doenças não contagiosas, a doença
que afeta um indivíduo, afeta o seu lar, a sua família, os seus amigos, o seu
ambiente social, seja de maneira direita ou indireta. Aliás, como define a própria
Organização Mundial da Saúde (OMS), “Saúde é o estado de completo bem-estar físico,
mental e social e não somente a ausência de doença”.
Que a situação, suspensa
temporariamente, de cancelamentos unilaterais, por parte de planos de saúde
privados, no país, seja resolvida dentro de parâmetros efetivamente
humanizados. Fala-se tanto em saúde humanizada, entretanto, o que ela preconiza,
desde sempre, é estar fundamentada pela qualidade, pela estrutura e pela ética,
colocando o acolhimento do paciente como elemento central e essencial.
Daí a necessidade de que as instituições de poder e demais partícipes da saúde, no Brasil, se lembrem sempre que “Democracia com fome, sem educação e saúde para a maioria, é uma concha vazia” (Nelson Mandela).