O lixo e
suas montanhas de tragicidade
Por
Alessandra Leles Rocha
Pouco mais de um mês após a tragédia
socioambiental que atingiu o estado do Rio Grande do Sul, o que muita gente
ainda tem dificuldade de entender é que não adianta lutar contra os fatos. Fake
News, mentiras, desinformação, dê o nome que quiserem; mas, nada disso muda
o curso da história.
Quanto antes se toma pé da
realidade, melhor! Mais fácil lidar com as verdades nuas e cruas, do que se
refugiar em bolhas de uma idealização inatingível. A vida não é como você quer,
almeja ou aspira. Ela é sempre um combo de altos e baixos, sortes e reveses,
sucessos e fracassos, ... Não adianta questionar.
No entanto, quando se tem a
consciência sobre esse movimento, essa dinâmica, tudo flui de uma maneira bem
menos impactante e sofrida. Já diz o provérbio, “É melhor prevenir do que
remediar”! Estar de olhos e peito aberto para os acontecimentos evita
muitos dissabores! Porque, mesmo que não se consiga reverter o processo ou seus
efeitos, na sua totalidade, ao menos, em parte, é possível mitigar, atenuar.
Mas não é isso o que estamos
vendo acontecer, por aí. Deveríamos ter prevenido; mas, não prevenimos. Agora,
diante do fato consumado, não sabemos por onde começar a resolver. O contexto
ganhou dimensões tão inimagináveis que não é qualquer solução que vai colocar a
vida em ordem. Um bom exemplo está nas toneladas de resíduos sólidos que se
formaram durante a tragédia no Rio Grande do Sul.
Vejam só, foram 475 municípios
atingidos, de um total de 497. A enchente que assolou o estado, cobrindo
cidades inteiras, não apenas arrastou tudo o que viu pela frente como colapsou
a estrutura de saneamento básico, ou seja, a rede de abastecimento de água, coleta
de esgoto e o sistema de drenagem das águas. Portanto, todo aquele volume de
água se viu contaminado por uma diversidade de resíduos sólidos, patógenos e
efluentes.
Entretanto, foi preciso esperar o
nível das águas abaixarem para lidar com essa situação. Segundo matéria,
divulgada ontem, “Lixo gerado por cheia no Rio Grande do Sul chega a 47
milhões de toneladas” 1. Esse
montante é somente uma estimativa; pois, a tendência é de que o volume de resíduos
seja muito maior. O que significa uma
realidade totalmente atípica para enfrentar e caber nos protocolos de gestão de
resíduos, comumente utilizados.
Para início de conversa, esses gigantescos
volumes não estão em condições normais de reaproveitamento, reciclagem ou
reutilização. Todo esse material ficou, ou ainda está, submerso em uma água
totalmente contaminada, submetido a ação ininterrupta da umidade e das
variações de temperatura, de contaminantes e de microorganismos.
Assim, metais e equipamentos eletroeletrônicos
tendem a se enferrujar e ter a sua decomposição acelerada, liberando, por
exemplo, resíduos tóxicos oriundos de metais pesados, presentes nesses objetos.
Madeiras, compensados e tecidos tendem a apodrecer, pela intensa ação da
umidade e microorganismos. Até mesmo os plásticos e demais materiais sintéticos
tendem a alterar a sua composição original e perder a viabilidade econômica para
uma reciclagem satisfatória.
E diante do volume de resíduos que
se formou, seria necessário um mutirão, sem precedentes, para fazer a seleção
de todos esses materiais, no caso de uma destinação seletiva, se houvesse
possibilidade.
Além disso, os envolvidos nesse
processo teriam que estar devidamente equipados com luvas de borracha,
galochas, aventais, óculos e máscaras, a fim de se protegerem da contaminação por
esses materiais. Do mesmo modo que devem estar as equipes envolvidas no
processo de recolhimento, em curso.
Então, a pergunta que não quer
calar: para onde estão sendo levados esses resíduos? De acordo com a matéria
citada acima, “Em todo o estado, foram criados 46 pontos de descarte. São aterros
próximos aos locais com detritos e que ajudam na velocidade da limpeza e na
diminuição dos custos da operação” 2.
Contudo, é preciso entender que essa solução, pode representar o estopim de
deflagração de outros problemas.
Como dito anteriormente, a tragédia
no Rio Grande do Sul é atravessada por uma atipicidade total. De modo que a
forma de lidar com os problemas demanda um olhar atento e criterioso sobre o
cenário atual. Tendo em vista que o solo desses 475 municípios foi severamente
castigado pelas chuvas, tornando-se encharcado e instável, esse contexto
torna-se problemático para a solução de aterro.
Tanto aterros controlados quanto aterros
sanitários, a condição do solo para desenvolver a função precisa ser avaliada. Aterros
controlados, que representam uma forma intermediária entre os lixões e os
aterros sanitários, devida a ausência de impermeabilização do solo e de sistemas
de coleta do chorume e dos gases tóxicos, há risco de contaminação do terreno e
de águas superficiais e subterrâneas.
O que explica porque os aterros
sanitários atendem melhor às expectativas ambientalmente sustentáveis, em razão
do seu planejamento e sistema de operação e monitoramento ajustado, segundo as
normas e regulamentações.
Porém, diante das circunstâncias
atuais, o processo adequado de gestão parece distante de acontecer, implicando
no aumento do risco de intensificação da contaminação do solo e dos mananciais hídricos,
especialmente na região para onde estão sendo destinados os resíduos.
É por essas e por outras, que as
tragédias socioambientais não são esquecidas. O modo como elas são tratadas tem
um papel fomentador para a reverberação dos seus desdobramentos e consequências
nefastas.
Sobretudo, quando repercutem no
adoecimento das pessoas, seja ele físico ou mental. Seus diagnósticos são
gatilhos que fazem reviver dores, perdas, sofrimentos indizíveis, como se o
tempo estivesse preso em um recorte de horas. Afinal, elas permanecem expostas aos focos de
contaminação.
Por isso, todas as vezes em que
me deparo com uma situação de extrema gravidade, como essa, lembro-me das
seguintes palavras de Lya Luft, “Que país somos, que gente nos tornamos, se
vemos tudo isso e continuamos comendo, bebendo, trabalhando e estudando como se
nem fosse conosco? Deve ser o nosso jeito de sobreviver – não comendo lixo
concreto, mas engolindo esse lixo moral e fingindo que está tudo bem” 3.
Embora ela tenha escrito sob um
outro viés a respeito do lixo, no fundo essas palavras cabem muito bem nessa
breve reflexão, contextualizada pela tragédia recente ocorrida em sua terra
natal, o Rio Grande do Sul.
Pois é, o nosso fingir que está
tudo bem é o que compromete as soluções, o enfrentamento dos problemas, a
prevenção, ... e nos lança sobre as camadas de uma tragicidade repetitiva e moralmente
indigesta. Portanto, não se esqueça, “Justificar tragédias como ‘vontade
divina’ tira da gente a responsabilidade por nossas escolhas” (Umberto Eco).
Pensemos, mais, sobre isso!
1 https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2024/06/02/lixo-gerado-por-cheia-no-rio-grande-do-sul-chega-a-47-milhoes-de-toneladas.ghtml
2
Idem 1.
3 LUFT, L. Os filhos do lixo. Disponível em: https://www.udemo.org.br/Leituras_486.htm