segunda-feira, 3 de junho de 2024

O lixo e suas montanhas de tragicidade


O lixo e suas montanhas de tragicidade

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Pouco mais de um mês após a tragédia socioambiental que atingiu o estado do Rio Grande do Sul, o que muita gente ainda tem dificuldade de entender é que não adianta lutar contra os fatos. Fake News, mentiras, desinformação, dê o nome que quiserem; mas, nada disso muda o curso da história.

Quanto antes se toma pé da realidade, melhor! Mais fácil lidar com as verdades nuas e cruas, do que se refugiar em bolhas de uma idealização inatingível. A vida não é como você quer, almeja ou aspira. Ela é sempre um combo de altos e baixos, sortes e reveses, sucessos e fracassos, ... Não adianta questionar.

No entanto, quando se tem a consciência sobre esse movimento, essa dinâmica, tudo flui de uma maneira bem menos impactante e sofrida. Já diz o provérbio, “É melhor prevenir do que remediar”! Estar de olhos e peito aberto para os acontecimentos evita muitos dissabores! Porque, mesmo que não se consiga reverter o processo ou seus efeitos, na sua totalidade, ao menos, em parte, é possível mitigar, atenuar.

Mas não é isso o que estamos vendo acontecer, por aí. Deveríamos ter prevenido; mas, não prevenimos. Agora, diante do fato consumado, não sabemos por onde começar a resolver. O contexto ganhou dimensões tão inimagináveis que não é qualquer solução que vai colocar a vida em ordem. Um bom exemplo está nas toneladas de resíduos sólidos que se formaram durante a tragédia no Rio Grande do Sul.

Vejam só, foram 475 municípios atingidos, de um total de 497. A enchente que assolou o estado, cobrindo cidades inteiras, não apenas arrastou tudo o que viu pela frente como colapsou a estrutura de saneamento básico, ou seja, a rede de abastecimento de água, coleta de esgoto e o sistema de drenagem das águas. Portanto, todo aquele volume de água se viu contaminado por uma diversidade de resíduos sólidos, patógenos e efluentes.

Entretanto, foi preciso esperar o nível das águas abaixarem para lidar com essa situação. Segundo matéria, divulgada ontem, “Lixo gerado por cheia no Rio Grande do Sul chega a 47 milhões de toneladas” 1. Esse montante é somente uma estimativa; pois, a tendência é de que o volume de resíduos seja muito maior.  O que significa uma realidade totalmente atípica para enfrentar e caber nos protocolos de gestão de resíduos, comumente utilizados.

Para início de conversa, esses gigantescos volumes não estão em condições normais de reaproveitamento, reciclagem ou reutilização. Todo esse material ficou, ou ainda está, submerso em uma água totalmente contaminada, submetido a ação ininterrupta da umidade e das variações de temperatura, de contaminantes e de microorganismos.

Assim, metais e equipamentos eletroeletrônicos tendem a se enferrujar e ter a sua decomposição acelerada, liberando, por exemplo, resíduos tóxicos oriundos de metais pesados, presentes nesses objetos. Madeiras, compensados e tecidos tendem a apodrecer, pela intensa ação da umidade e microorganismos. Até mesmo os plásticos e demais materiais sintéticos tendem a alterar a sua composição original e perder a viabilidade econômica para uma reciclagem satisfatória.

E diante do volume de resíduos que se formou, seria necessário um mutirão, sem precedentes, para fazer a seleção de todos esses materiais, no caso de uma destinação seletiva, se houvesse possibilidade.

Além disso, os envolvidos nesse processo teriam que estar devidamente equipados com luvas de borracha, galochas, aventais, óculos e máscaras, a fim de se protegerem da contaminação por esses materiais. Do mesmo modo que devem estar as equipes envolvidas no processo de recolhimento, em curso.

Então, a pergunta que não quer calar: para onde estão sendo levados esses resíduos? De acordo com a matéria citada acima, “Em todo o estado, foram criados 46 pontos de descarte. São aterros próximos aos locais com detritos e que ajudam na velocidade da limpeza e na diminuição dos custos da operação” 2. Contudo, é preciso entender que essa solução, pode representar o estopim de deflagração de outros problemas.

Como dito anteriormente, a tragédia no Rio Grande do Sul é atravessada por uma atipicidade total. De modo que a forma de lidar com os problemas demanda um olhar atento e criterioso sobre o cenário atual. Tendo em vista que o solo desses 475 municípios foi severamente castigado pelas chuvas, tornando-se encharcado e instável, esse contexto torna-se problemático para a solução de aterro.

Tanto aterros controlados quanto aterros sanitários, a condição do solo para desenvolver a função precisa ser avaliada. Aterros controlados, que representam uma forma intermediária entre os lixões e os aterros sanitários, devida a ausência de impermeabilização do solo e de sistemas de coleta do chorume e dos gases tóxicos, há risco de contaminação do terreno e de águas superficiais e subterrâneas.

O que explica porque os aterros sanitários atendem melhor às expectativas ambientalmente sustentáveis, em razão do seu planejamento e sistema de operação e monitoramento ajustado, segundo as normas e regulamentações.

Porém, diante das circunstâncias atuais, o processo adequado de gestão parece distante de acontecer, implicando no aumento do risco de intensificação da contaminação do solo e dos mananciais hídricos, especialmente na região para onde estão sendo destinados os resíduos.

É por essas e por outras, que as tragédias socioambientais não são esquecidas. O modo como elas são tratadas tem um papel fomentador para a reverberação dos seus desdobramentos e consequências nefastas.

Sobretudo, quando repercutem no adoecimento das pessoas, seja ele físico ou mental. Seus diagnósticos são gatilhos que fazem reviver dores, perdas, sofrimentos indizíveis, como se o tempo estivesse preso em um recorte de horas.  Afinal, elas permanecem expostas aos focos de contaminação.

Por isso, todas as vezes em que me deparo com uma situação de extrema gravidade, como essa, lembro-me das seguintes palavras de Lya Luft, “Que país somos, que gente nos tornamos, se vemos tudo isso e continuamos comendo, bebendo, trabalhando e estudando como se nem fosse conosco? Deve ser o nosso jeito de sobreviver – não comendo lixo concreto, mas engolindo esse lixo moral e fingindo que está tudo bem” 3.

Embora ela tenha escrito sob um outro viés a respeito do lixo, no fundo essas palavras cabem muito bem nessa breve reflexão, contextualizada pela tragédia recente ocorrida em sua terra natal, o Rio Grande do Sul.  

Pois é, o nosso fingir que está tudo bem é o que compromete as soluções, o enfrentamento dos problemas, a prevenção, ... e nos lança sobre as camadas de uma tragicidade repetitiva e moralmente indigesta. Portanto, não se esqueça, “Justificar tragédias como ‘vontade divina’ tira da gente a responsabilidade por nossas escolhas” (Umberto Eco). Pensemos, mais, sobre isso!