quinta-feira, 4 de abril de 2024

Reflexões sobre o fracasso civilizatório


Reflexões sobre o fracasso civilizatório

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Em tese, a notícia de que “Em 9 comunidades Yanomami, 94% dos indígenas têm alto nível de contaminação por mercúrio” 1 aponta para o sucesso do plano genocida de extermínio dessa etnia do cenário populacional brasileiro. Mas, não é tão simples assim.

Primeiro, porque não se pode desconsiderar todo um coletivo populacional ribeirinho que depende diretamente das águas e dos peixes dos rios amazônicos. Portanto, não são apenas os indígenas Yanomami as vítimas desse morticínio. Há muito mais cidadãos envolvidos nesse adoecimento compulsório.

Segundo, porque os cursos d’água amazônicos permanecem sob intensa contaminação por mercúrio e outros metais pesados. O pesadelo na região não acabou! O garimpo continua agindo e deixando seu rastro de destruição. Águas, peixes, solo, fauna e flora estão sob efeito biocumulativo tóxico.

Por fim, porque a tragédia Yanomami é o símbolo do nosso fracasso civilizatório; pois, perdemos a capacidade de exercer alteridade. Sim, uma imensa maioria da população brasileira, ao longo do tempo, foi se abstendo da prática de se colocar no lugar do outro, de entender suas angústias, dramas e desafios, de pensar além do seu sofrimento e perceber a necessidade de respeitar a sua integridade, a sua dignidade.  

Contudo, me permito dizer que essa observação, também, é em tese. Porque essa perda da alteridade, de certo modo, é um reflexo da deterioração promovida pelo próprio senso narcísico, o qual toma conta da sociedade contemporânea. A indiferença, a negligência, o descaso, o desrespeito, a negação, que uns se permitem sentir pelos outros, é o mesmo que fazem com eles próprios.

O que significa, na verdade, um adoecimento humano de proporções inimagináveis, sem que um imenso contingente populacional se de conta desse fato. Doentes do corpo, da alma, da mente. Impactados não somente por metais pesados, como o mercúrio, mas por inúmeros outros contaminantes, presentes no cotidiano, tais como monóxido e dióxido de carbono, chumbo, dióxido de enxofre, ozônio, clorofluorcarbonos, polipropilenos, polietilenos, policloreto de vinila (PVC), politetrafluoroetileno (Teflon), poliestireno, agrotóxicos.   

E apesar dos pesares, o negacionismo corre solto pelos prados do progresso e do consumo! O que não faltam são tentativas e mais tentativas para dissociar o indissociável, ou seja, tentar convencer-se de que não existe correlação entre a escalada de adoecimento global e a quantidade de substâncias tóxicas e deletérias, as quais os seres humanos estão expostos continuamente. Lamento, mas o preço do desenvolvimento industrial chegou!

A própria Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), através da sua Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer (IARC), destaca “o crescente ônus do câncer, o impacto desproporcional sobre as populações carentes e a necessidade urgente de abordar as desigualdades do câncer em todo o mundo” 2. Mas, esse é só um exemplo. Quantas doenças mais têm o seu gatilho de ocorrência a partir dos agravos produzidos pela contaminação ambiental?

Pesquisas em todo o mundo buscam exatamente conhecer esse processo, cada vez mais a fundo e melhor. Mas, enquanto isso, cerca de 8 mil tipos diferentes de doenças raras tiram o sossego de cientistas e autoridades. Afinal, segundo o Ministério da Saúde, “As doenças raras são caracterizadas por uma ampla diversidade de sinais e sintomas e variam não só de doença para doença, mas também de pessoa para pessoa acometida pela mesma condição. Geralmente, as doenças raras são crônicas, progressivas e incapacitantes” 3.

Relembrando as palavras de Bertolt Brecht, “Primeiro levaram o negros. Mas não me importei com isso. Eu não era negro. Em seguida levaram alguns operários. Mas não me importei com isso. Eu também não era operário. Depois prenderam os miseráveis. Mas não me importei com isso. Porque eu não sou miserável. Depois agarraram uns desempregados. Mas como tenho emprego, também, não me importei. Agora estão me levando. Mas já é tarde. Como eu não me importei com ninguém. Ninguém se importa comigo”.

Essa é a síntese que resume o nosso narcísico individualismo brasileiro. Estamos sempre querendo nos abster de nos enxergar enquanto seres humanos, para nos sentirmos mais e melhores uns do que os outros. Talvez, daí derive o nosso total desapreço pelas minorias. Porque temos o péssimo hábito de desumanizar as pessoas, de destituí-las da sua condição existencial, sob diferentes formas e conteúdos, para nos sentirmos importantes, poderosos, absolutos.  O que se permite fazer com os Yanomamis é, então, só um exemplo clássico dessa práxis.

Simplesmente herdamos esse desapreço humanitário, cidadão, dos tempos coloniais. Haja vista o que fizeram nossos colonizadores com uma maioria significativa dos povos originários brasileiros, com os negros escravizados, enfim. Não aprendemos que a morte de um cidadão representa um pedaço da história que se vai. Quantos costumes perdidos? Quantas línguas silenciadas? Quantas culturas sonegadas pela extinção de seus membros?

Mas, pelo rumo dos acontecimentos, também, não falarão de nós. Seremos esquecidos, em algum momento da história. Afinal, estamos trabalhando arduamente em favor do nosso próprio adoecimento, da nossa própria extinção. Literalmente, flertando com ameaças visíveis e invisíveis diversas, ao mesmo tempo em que hasteamos nosso desprezo pela ciência, pelo conhecimento, pela nossa identidade cidadã, no alto do mastro nacional. Porque “O que estamos vivendo hoje é que o homem deixou de ser o centro do mundo. O centro do mundo agora é o dinheiro” (Milton Santos).