sábado, 6 de abril de 2024

Não basta enxergar. É preciso ver.


Não basta enxergar. É preciso ver.

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Há alguns anos eu tive a oportunidade de assistir ao filme QUASE DOIS IRMÃOS 1 (2005), dirigido por Lucia Murat. Imerso no enredo do filme está um apontamento para o surgimento das grandes facções criminosas nacionais, na perspectiva do presídio de Ilha Grande, no Rio de Janeiro, nos anos 70.  E a partir dessa obra ficcional se tem uma ideia em relação ao papel do Estado brasileiro, a partir de um modelo de segurança pública obsoleto e falido.   

E por que motivo falar sobre isso? Ora, na semana em que os dois prisioneiros fugitivos de um presídio federal, considerado de máxima segurança, foram capturados após 50 dias 2 e uma mobilização intensa do governo, o falatório da direita e de seus matizes; sobretudo, os mais radicais e extremistas, merece no mínimo uma reflexão. Afinal, esse é um assunto demasiadamente complexo para passar despercebido, por quem quer que seja.

Bom, o Brasil aprendeu a lidar com os delitos, as violências e a criminalidade, a partir de um modelo punitivista e encarcerador, desde os seus tempos coloniais. Inspirados nas masmorras absolutistas europeias, o modo de resolver as questões ditas como de segurança pública era lançar os indivíduos à prisão.

Mas, quem eram os bandidos, em questão? Curiosamente, o mesmo perfil daqueles que se encontram presos na contemporaneidade. Sim, em sua maioria, gente pertencente às camadas mais desprivilegiadas da sociedade. Sem poderes e recursos para se defenderem das acusações do Estado, sua sina era amargar os dias em prisões inadequadas, à mercê do abandono social, misturados sem quaisquer critérios de análise criminal.   

E como provam os séculos, visto que o Brasil já completou mais de cinco, o modelo empregado não resolveu. Os delitos, as violências e a criminalidade continuam a pleno vapor no país, constituindo uma população carcerária de mais de 800 mil presos.  Nem mesmo as condições desumanas, abjetas, de uma parcela significativa das instituições onde são recolhidos, age como fator inibidor das transgressões sociais.

Mas, por que isso acontece? A verdade é que esse cenário mostra como o sistema se retroalimenta e, por isso, não se vê sinais de melhora ou solução.  O regime fechado, no Brasil, ao contrário de recuperar o indivíduo, para o convívio social harmônico e equilibrado, funciona como “universidade da bandidagem”.

Haja vista que a fragilidade na aplicação de penas de encarceramento, inclusive, do ponto de vista da ausência de análise criminal, quanto ao tipo de delito cometido, favorece imensamente ao fortalecimento das facções criminosas e a consolidação de pontes com o mundo exterior aos presídios.  As chances daqueles que ingressam, pela primeira vez, no sistema, de serem coaptados pelas facções criminosas são imensas. Um panorama interessante a respeito é mostrado no filme SALVE GERAL 3 (2009), do diretor Sergio Rezende.

Então, tem-se, no momento, a direita e seus matizes; sobretudo, os mais radicais e extremistas, vociferando contra o gasto de aproximadamente R$6 milhões para a recaptura dos dois prisioneiros fugitivos de um presídio federal. De fato, é um montante significativo. Contudo, não é esse o ponto para reflexão. Eles falam dos gastos; mas, não olham para o curso da história e, nem tampouco, apontam soluções para a segurança pública nacional.

Sabe-se que “No Brasil, o gasto com polícias nos estados é 4 mil vezes maior do que os custos com políticas para egressos do sistema prisional. Para cada R$4.389 gastos com policiamento nos estados, R$1.050 são destinados para o sistema penitenciário e somente R$1 para políticas que garantam os direitos dos egressos” 4. Desse modo, gasta-se muito. Gasta-se mal. Não há planejamento. O Estado só faz alimentar a voracidade dos delitos, das violências e da criminalidade, sem resolver absolutamente nada.

Então, quando o país gasta em torno de R$40 milhões para construir uma prisão federal de segurança máxima, e temos 5 unidades em funcionamento, para conter elementos das maiores facções criminosas nacionais, eventuais fugas desconstroem o discurso existente em torno da segurança pública e lustram o ego da criminalidade.

Afinal, ela não reclama dos seus gastos bilionários para manter ativas as suas ações delituosas, porque ela enxerga o retorno positivo disso. As facções criminosas estão cada vez mais ricas, mais poderosas, mais articuladas, graças, em grande parte, pela fragilidade e visão equivocada e deturpada do Estado. Não é à toa que foram necessários 50 dias para recapturar os dois fugitivos.

Basta observar que as grandes mobilizações e incursões policiais contra o crime-organizado, no país, matam elementos ligados (ou não) às facções; mas, que são pertencentes à base dessa pirâmide social. Os grandes chefes, as lideranças, essas permanecem à margem desse tipo de resposta do Estado. Dentro ou fora dos presídios, eles permanecem demonstrando que tem vez e voz.

Talvez, seja o grande momento, da classe político-partidária nacional; sobretudo, o segmento da direita e seus matizes, mais ou menos radicais e extremistas, exercer a reflexão sobre o que realmente importa. Especialmente, quanto ao papel que tem desempenhado no exercício da sua função pública e das suas responsabilidades, éticas e morais, no cumprimento das suas obrigações. É hora de o Estado brasileiro fazer mea-culpa, não somente em relação à segurança pública; mas, à garantia da suficiência e da eficiência de todos os direitos sociais previstos na Constituição Federal de 1988.

Enquanto isso não acontecer, a bandidagem irá continuar humilhando o Estado, com fugas surreais, como a que aconteceu recentemente. Expondo a total ausência de planejamento das instituições carcerárias, da vigilância, do controle, do rigor contra a corrupção, enfim... Não cabe questionar a recaptura dos fugitivos, sob nenhum aspecto. Eles foram submetidos ao rigor das leis e condenados, devendo cumprir suas penas em regime fechado. Só não podemos pensar que a recaptura exauri a questão.