Um ano
depois ... Um olhar sob a perspectiva secular e relativista do tempo.
Por Alessandra
Leles Rocha
Pois é, em 8 de janeiro de 2023,
podemos dizer que o Brasil rasgou a fantasia de gente pacífica, para dar vazão
à sua mais absoluta incivilidade odiosa. Era, de fato, uma imagem jamais
pensada para os registros da história nacional. Mas, infelizmente, aconteceu.
Difícil de entender? Creio que
não. Basta observar com atenção a identidade nacional brasileira. Vamos e
convenhamos, nunca fomos, de fato, uma nação; mas, um país. Algo que já abre os
trabalhos para mostrar o tamanho da diferença que isso significa.
Falar de nação é falar de
coletividade. É colocar em pauta, na prática, o exercício de deveres e de direitos,
sem subterfúgios de exceção, daqui e dali. Todos imbuídos do mesmo respeito, da
mesma responsabilidade, da mesma vontade de fazer o progresso e o
desenvolvimento nacional.
Mas, falar de país é falar de um
espaço geográfico. É colocar sobre uma mesma terra, um punhado de diferenças
abissais que fraturam o senso coletivo em nome de favorecer alguns poucos em
detrimento de muitos. Nesse sentido, então, o Brasil se torna um cenário de
possibilidades indigestas de diversos Brasis, que refletem realidades
totalmente distintas e potencialmente obstaculizantes para uma eventual consolidação
do sucesso.
Acontece, caro (a) leitor (a), que
essa compreensão não decorre de uma mera impressão; mas, de uma verdade
histórica. Creio que o pior, que poderia ter acontecido, foi exatamente termos
sido arrastados pelas conjunturas colonialistas. Porque do século XVI ao início
do XIX, já havia se impregnado no inconsciente coletivo da população brasileira
o descompromisso de construir uma identidade que ultrapassasse a fronteira da
condição de Colônia, ou seja, de estar subordinada, em diferentes formas e
conteúdos, aos interesses de uma Metrópole europeia.
De modo que nem a independência,
em 1822, e nem a República, em 1889, disseram pouco a esse respeito. O Brasil
permaneceu respirando e transpirando os mesmos valores, crenças, princípios e
convicções coloniais. Especialmente, no que diz respeito à sua organização
social. O que significou se manter atrelado ao ideário metropolitano europeu,
defendendo arduamente questões como o racismo, a misoginia, a aporofobia, o
patriarcado, o conservadorismo religioso.
Vejam, não aspiramos a construção
de uma identidade nacional verdadeiramente brasileira. Por isso, de geração em
geração, o país foi reproduzindo padrões, os quais, infelizmente,
possibilitaram reafirmar um total desalinhamento com a própria evolução social
do mundo. E para isso, o Brasil usou do recurso de se acostumar a não nomear
corretamente as coisas, fazendo um péssimo uso da linguagem e transformando em
sinônimos, questões diametralmente opostas.
E nesse turbilhão de equívocos,
de desalinhos, de inconsistências e de absurdos, tudo muito bem referendado
pelas elites dominantes do país, chegamos ao século XXI destituídos de um
espírito cidadão forte e consolidado. Porque na cabeça daqueles que se acostumaram
a mandar e a desmandar no país, a palavra cidadão é exclusivamente privativa ao
seu pertencimento.
É justamente em nome desse tipo
de consciência e de valor, que a Direita e seus matizes, especialmente, os mais
radicais e extremistas, têm se arvorado do direito de fazer e acontecer, no
país, nos últimos tempos. Assim, um exemplo clássico desses arroubos é o
próprio 8 de janeiro de 2023.
Quando a grande massa de manobra
que serve aos interesses desse espectro político-partidário, composta de uma
imensa pluralidade representativa da sociedade brasileira, foi instigada, a
partir de todo tipo de legitimação discursivo-ideológica, a destruir de maneira
avassaladora o patrimônio histórico nacional, materializado na estrutura
arquitetônica e artístico-mobiliária dos 3 Poderes da República, na capital
federal.
Conseguem entender, agora, a
razão do desprezo, do escárnio, da desfaçatez? Trata-se de uma incivilidade
habilmente fiada pelas tramas da história nacional, que alcançou o apogeu da
sua barbárie, nesse capítulo recente do país. Por isso, me permito discordar de
uns e outros, por aí, sobre a ausência de certos governadores de estado e
certas autoridades, na solenidade 1 que irá
marcar um ano desse lamentável fato.
Por mais absurdo que possa soar,
eles estão sendo coerentes com sua histórica linhagem de crenças, princípios e
convicções coloniais. Não há, nem nunca houve, neles, espírito de razão para
defender a Democracia, o Estado de Direito e a Constituição Federal de 1988.
Afinal, em suas mentes paira uma certeza de que o país lhes pertence e que suas
vontades e quereres é que devem prevalecer e prosperar. Algo que faz lembrar Luís
XIV, monarca absolutista, conhecido como Rei Sol e afirmava, sem meias
palavras, “O Estado sou Eu”.
De modo que os acontecimentos de
12 de dezembro de 2022 e de 8 de janeiro de 2023, ocorridos em Brasília/DF, somados
a todos os bloqueios em rodovias federais, acampamentos em portas de
quartéis-generais em todo o país e ameaças em mídias sociais, não lhes causaram
absolutamente nenhum desconforto ou constrangimento. Ver o patrimônio público
ser pilhado, destruído, danificado, da maneira mais vil e implacável, não fez
pulsar nessas pessoas qualquer indignação, porque não reside nelas uma
identidade nacional, um senso de nação.
Daí a necessidade de olhar para a história. Não de uma maneira superficial e descompromissada. É preciso ir fundo, dissecar as camadas. A história não trata apenas de heróis e vilões ou de fatos marcantes. A história fala de gente, de cotidiano, de capítulos escritos diariamente à revelia dos devaneios tendenciosos de qualquer um. O que significa que é do interesse de cada um ser mais atuante, participante, desse processo. Afinal, com vitimismos e choramingos oportunistas, não se muda um traço sequer dos acontecimentos que nos ameaçam e prejudicam por toda uma existência.