Enquanto
a saúde adoece...
Por
Alessandra Leles Rocha
Não é surpresa para ninguém que o
mundo está envelhecendo. O que significa que diante dessa dinâmica, o ponto de
partida a ser observado pelos gestores públicos, no âmbito das garantias da
dignidade humana para essa parcela da população, é pensar na qualidade e na
oferta dos serviços de saúde.
Como bem sabemos, no caso do
Brasil, o país dispõe do Sistema Único de Saúde (SUS) distribuído em todo o
território nacional e que realiza políticas públicas de tratamento e prevenção
de doenças, com altíssima qualidade técnica, científica e tecnológica.
Entretanto, embora o SUS seja garantido constitucionalmente a todos os cidadãos brasileiros, sem distinções
de qualquer natureza, desde sempre o seu objetivo principal foi oferecer atendimento
aqueles indivíduos socialmente vulneráveis e desprovidos de recursos. O que não
é difícil de entender, considerando a discrepância das desigualdades históricas
presentes no país.
Acontece que esse é um ponto nevrálgico.
Equacionar as demandas de saúde nacionais à capacidade do SUS é extremante
desafiador. Avanços importantes na
realidade socioeconômica brasileira vêm ocorrendo no passar das décadas; mas,
superar traços marcantes do histórico das desigualdades, infelizmente,
demandará mais tempo e, principalmente, mais persistência da vontade humana.
Não é difícil pensar que, dadas
as constantes tensões nos cenários político-econômicos do país, o fluxo de
usuários de planos de saúde privados para o SUS é uma realidade. Seja pelo
desemprego. Seja pela incapacidade de arcar com as mensalidades. Seja pela
impossibilidade de contratação de um plano capaz de satisfazer todas as
necessidades médico-hospitalares. Enfim...
Inclusive, muitos atribuem à
pandemia todo o infortúnio dessa situação. Mas, não é verdade. Esse é um gargalo
que tende a se intensificar cada vez mais, criando um desequilíbrio já
conhecido para o SUS. Não é à toa a carência de leitos; sobretudo, em Unidades
de Terapia Intensiva. De medicamentos, desde os mais simples aos mais complexos.
As longas filas de espera para atendimentos ambulatoriais e cirúrgicos. A insuficiência
de aparelhos de imagem para exames de média e alta complexidade.
Por isso, indivíduos e famílias
brasileiras tendem a fazer das tripas coração para manterem planos de saúde
privados. Acontece que a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), uma agência
reguladora do mercado de planos privados e vinculada ao Ministério da Saúde do
Brasil, parece alheia à realidade nacional em todos os sentidos.
Retomando a questão do
envelhecimento global da população, é preciso lembrar que os planos privados de
saúde são monetizados, segundo faixas etárias definidas, como se fosse possível
estabelecer qualitativa e quantitativamente as demandas por atendimento médico-hospitalar
dessa maneira. Isso é tão sem propósito, porque nenhum ser humano dispõe de
controle pleno e absoluto sobre seu potencial adoecimento, seja em que idade
for.
E dentro desse critério, o valor
das mensalidades é estabelecida dentro dessas faixas etárias e com percentuais
de reajuste já pré-definidos em contrato, para que todas as vezes em que o
cidadão se insira em uma nova faixa ele seja cobrado. No entanto, é preciso
lembrar que os valores também estão condicionados ao tipo de plano contratado. Quanto
mais serviços estão disponíveis, mais onerosos se tornam os planos privados de
saúde.
Isso sem contar que todos os
planos são reajustados, com o aval da ANS, anualmente, quase sempre um custo
cobrado no mês de aniversário da assinatura do mesmo. Então, no caso da mudança
de faixa etária, o usuário passa por dois reajustes em um mesmo ano.
Ora, mas quem tem reajuste de
salário duas vezes ao ano, não é mesmo? Quem, depois de um ajuste salgado por
faixa etária, pode arcar com mais um outro reajuste sobre esse valor estratosférico,
hein?
O que para os idosos vêm
representando um desafio inominável; posto que, eles são o último nível da
escala etária e, portanto, os usuários que pagam os valores mais altos de
mensalidade. E qual é a realidade de um idoso no Brasil?
Bem, nem preciso dizer que
qualquer cidadão que envelheça, por aqui, torna-se obrigado a conviver com a insuficiência
de uma aposentadoria constrangedora, depois de anos de serviços prestados e de contribuições
mensais, regiamente descontadas do seu salário, ao Instituto Nacional do Seguro
Social (INSS).
Assim, se ele (a) desfruta de uma
família que pode colaborar, total ou parcialmente, para garantir-lhe um plano
de saúde privado, ótimo! Mas, e se ele (a) não tem ninguém? Se ele (a) sobrevive
somente da sua aposentadoria, hein? Não há outra possibilidade senão recorrer
ao SUS e ser mais um a sobrecarregar sua lista de demandas por atendimentos
ambulatoriais, cirúrgicos, por exames, por terapias complementares, por
serviços individualizados, ...
E isso falando somente dos
idosos. Mas, e a legião de desempregados, de informais, de pessoas com doenças
raras, de aposentados por invalidez ou doença incapacitante? O Brasil convive
diariamente com essa pluralidade de realidades sociais e econômicas ao mesmo
tempo em que se abriga a garantia constitucional de que “a saúde é direito
de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que
visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e
igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”
(art. 196, CF de 1988).
Acontece que dentro do panorama
vigente, há décadas, é cada vez mais impossível se desvencilhar do rol de
desafios para a manutenção e o desenvolvimento de políticas públicas de saúde,
no país. Sim, porque o aumento expressivo das demandas cidadãs tendem a implicar
necessariamente na insuficiência de recursos para garantir a prestação dos
serviços vigentes; bem como, ampliar as ofertas de novos serviços.
Há quem não saiba; mas, certos
procedimentos médico-hospitalares são exclusivos do SUS. Hemodiálise.
Transplante de órgãos. Antídoto para picada por animais peçonhentos. Tratamento
de Hanseníase. Tratamento da Tuberculose. Tratamento de HIV/AIDS. Daí a
necessidade de equacionar a oferta e a procura por atendimentos no SUS a fim de
não o sobrecarregar e impossibilitá-lo de atuar adequadamente.
É urgente e necessário que a ANS
seja convidada a dialogar com o governo federal, com o intuito de reformular
seus paradigmas sobre o papel dos planos privados de saúde, no Brasil. A partir
de uma análise que se proponha a oferecer serviços efetivamente humanizados e condizentes
com as demandas sociais brasileiras.
Vale salientar que, muitos dos
planos privados de saúde são qualitativamente limitados e ineficientes para as
necessidades de seus usuários; contudo, o valor de suas mensalidades é alto se
comparado aos serviços oferecidos. Além disso, não tem sido incomum que muitos
planos de saúde não se constranjam em persistir ofendendo o direito de escolha
do consumidor através de restrições arbitrárias em suas opções de rede
credenciada. Se esquecem, ou negligenciam, o fato de que a mudança de prestador
de serviço pode implicar em eventuais diferenças metodológicas de análise, em
face à diversidade de equipamentos existentes, que geram assimetria para a
análise histórica dos resultados, por exemplo.
Portanto, é preciso rever a dinâmica da monetização da saúde no país. Afinal, ela se revela um perigo iminente para a potencialização da insalubridade social, na medida em que muitos cidadãos podem ficar sem acesso à saúde privada ou recebendo uma saúde privada precarizada; mas, com alto custo. Enquanto, muitos outros poderão, também, ficar sem acesso à saúde pública, por razões de colapso do sistema já sobrecarregado. Pensemos a respeito, com urgência!