segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

Enquanto a saúde adoece...


Enquanto a saúde adoece...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Não é surpresa para ninguém que o mundo está envelhecendo. O que significa que diante dessa dinâmica, o ponto de partida a ser observado pelos gestores públicos, no âmbito das garantias da dignidade humana para essa parcela da população, é pensar na qualidade e na oferta dos serviços de saúde.  

Como bem sabemos, no caso do Brasil, o país dispõe do Sistema Único de Saúde (SUS) distribuído em todo o território nacional e que realiza políticas públicas de tratamento e prevenção de doenças, com altíssima qualidade técnica, científica e tecnológica.

Entretanto, embora o SUS seja garantido constitucionalmente a todos os cidadãos brasileiros, sem distinções de qualquer natureza, desde sempre o seu objetivo principal foi oferecer atendimento aqueles indivíduos socialmente vulneráveis e desprovidos de recursos. O que não é difícil de entender, considerando a discrepância das desigualdades históricas presentes no país.

Acontece que esse é um ponto nevrálgico. Equacionar as demandas de saúde nacionais à capacidade do SUS é extremante desafiador.  Avanços importantes na realidade socioeconômica brasileira vêm ocorrendo no passar das décadas; mas, superar traços marcantes do histórico das desigualdades, infelizmente, demandará mais tempo e, principalmente, mais persistência da vontade humana.

Não é difícil pensar que, dadas as constantes tensões nos cenários político-econômicos do país, o fluxo de usuários de planos de saúde privados para o SUS é uma realidade. Seja pelo desemprego. Seja pela incapacidade de arcar com as mensalidades. Seja pela impossibilidade de contratação de um plano capaz de satisfazer todas as necessidades médico-hospitalares. Enfim...

Inclusive, muitos atribuem à pandemia todo o infortúnio dessa situação. Mas, não é verdade. Esse é um gargalo que tende a se intensificar cada vez mais, criando um desequilíbrio já conhecido para o SUS. Não é à toa a carência de leitos; sobretudo, em Unidades de Terapia Intensiva. De medicamentos, desde os mais simples aos mais complexos. As longas filas de espera para atendimentos ambulatoriais e cirúrgicos. A insuficiência de aparelhos de imagem para exames de média e alta complexidade.

Por isso, indivíduos e famílias brasileiras tendem a fazer das tripas coração para manterem planos de saúde privados. Acontece que a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), uma agência reguladora do mercado de planos privados e vinculada ao Ministério da Saúde do Brasil, parece alheia à realidade nacional em todos os sentidos.

Retomando a questão do envelhecimento global da população, é preciso lembrar que os planos privados de saúde são monetizados, segundo faixas etárias definidas, como se fosse possível estabelecer qualitativa e quantitativamente as demandas por atendimento médico-hospitalar dessa maneira. Isso é tão sem propósito, porque nenhum ser humano dispõe de controle pleno e absoluto sobre seu potencial adoecimento, seja em que idade for.

E dentro desse critério, o valor das mensalidades é estabelecida dentro dessas faixas etárias e com percentuais de reajuste já pré-definidos em contrato, para que todas as vezes em que o cidadão se insira em uma nova faixa ele seja cobrado. No entanto, é preciso lembrar que os valores também estão condicionados ao tipo de plano contratado. Quanto mais serviços estão disponíveis, mais onerosos se tornam os planos privados de saúde.

Isso sem contar que todos os planos são reajustados, com o aval da ANS, anualmente, quase sempre um custo cobrado no mês de aniversário da assinatura do mesmo. Então, no caso da mudança de faixa etária, o usuário passa por dois reajustes em um mesmo ano.

Ora, mas quem tem reajuste de salário duas vezes ao ano, não é mesmo? Quem, depois de um ajuste salgado por faixa etária, pode arcar com mais um outro reajuste sobre esse valor estratosférico, hein?

O que para os idosos vêm representando um desafio inominável; posto que, eles são o último nível da escala etária e, portanto, os usuários que pagam os valores mais altos de mensalidade. E qual é a realidade de um idoso no Brasil?

Bem, nem preciso dizer que qualquer cidadão que envelheça, por aqui, torna-se obrigado a conviver com a insuficiência de uma aposentadoria constrangedora, depois de anos de serviços prestados e de contribuições mensais, regiamente descontadas do seu salário, ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).  

Assim, se ele (a) desfruta de uma família que pode colaborar, total ou parcialmente, para garantir-lhe um plano de saúde privado, ótimo! Mas, e se ele (a) não tem ninguém? Se ele (a) sobrevive somente da sua aposentadoria, hein? Não há outra possibilidade senão recorrer ao SUS e ser mais um a sobrecarregar sua lista de demandas por atendimentos ambulatoriais, cirúrgicos, por exames, por terapias complementares, por serviços individualizados, ...

E isso falando somente dos idosos. Mas, e a legião de desempregados, de informais, de pessoas com doenças raras, de aposentados por invalidez ou doença incapacitante? O Brasil convive diariamente com essa pluralidade de realidades sociais e econômicas ao mesmo tempo em que se abriga a garantia constitucional de que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (art. 196, CF de 1988).

Acontece que dentro do panorama vigente, há décadas, é cada vez mais impossível se desvencilhar do rol de desafios para a manutenção e o desenvolvimento de políticas públicas de saúde, no país. Sim, porque o aumento expressivo das demandas cidadãs tendem a implicar necessariamente na insuficiência de recursos para garantir a prestação dos serviços vigentes; bem como, ampliar as ofertas de novos serviços.

Há quem não saiba; mas, certos procedimentos médico-hospitalares são exclusivos do SUS. Hemodiálise. Transplante de órgãos. Antídoto para picada por animais peçonhentos. Tratamento de Hanseníase. Tratamento da Tuberculose. Tratamento de HIV/AIDS. Daí a necessidade de equacionar a oferta e a procura por atendimentos no SUS a fim de não o sobrecarregar e impossibilitá-lo de atuar adequadamente.  

É urgente e necessário que a ANS seja convidada a dialogar com o governo federal, com o intuito de reformular seus paradigmas sobre o papel dos planos privados de saúde, no Brasil. A partir de uma análise que se proponha a oferecer serviços efetivamente humanizados e condizentes com as demandas sociais brasileiras.

Vale salientar que, muitos dos planos privados de saúde são qualitativamente limitados e ineficientes para as necessidades de seus usuários; contudo, o valor de suas mensalidades é alto se comparado aos serviços oferecidos. Além disso, não tem sido incomum que muitos planos de saúde não se constranjam em persistir ofendendo o direito de escolha do consumidor através de restrições arbitrárias em suas opções de rede credenciada. Se esquecem, ou negligenciam, o fato de que a mudança de prestador de serviço pode implicar em eventuais diferenças metodológicas de análise, em face à diversidade de equipamentos existentes, que geram assimetria para a análise histórica dos resultados, por exemplo.

Portanto, é preciso rever a dinâmica da monetização da saúde no país. Afinal, ela se revela um perigo iminente para a potencialização da insalubridade social, na medida em que muitos cidadãos podem ficar sem acesso à saúde privada ou recebendo uma saúde privada precarizada; mas, com alto custo. Enquanto, muitos outros poderão, também, ficar sem acesso à saúde pública, por razões de colapso do sistema já sobrecarregado.  Pensemos a respeito, com urgência!   

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