quarta-feira, 4 de outubro de 2023

Mais um degrau na monetização humana


Mais um degrau na monetização humana

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Sangue é vida. Mas foi preciso muita luta, muito empenho, muito sacrifício, para que houvesse no Brasil um controle e fiscalização satisfatórios, a fim de evitar que, através desse líquido sagrado, milhares de pessoas viessem a ser contaminadas por inúmeras doenças, incluindo a AIDS. De modo que de 1993 até 2016 foram publicadas portarias pelo Ministério da Saúde com o objetivo de garantir cada vez mais a segurança do receptor dos hemocomponentes.

Assim, cada bolsa de doação, que representa 450ml do volume total de sangue de um indivíduo, de acordo com a Portaria n.º 158 de 4 de fevereiro de 2016, ainda em plena vigência, passa por uma tríplice triagem, ou seja, uma triagem clínica, hematológica e sorológica 1. Afinal de contas, esse precioso líquido pode atender as demandas médicas de até 4 pacientes, tendo em vista que após a coleta ele é fracionado em quatro componentes distintos – Concentrado de Hemácias, Concentrado de Plaquetas, Plasma e Crioprecipitado.

E o que vem vigorando como uma atitude altruísta, voluntária, sigilosa e vetada ao doador de receber qualquer benefício advindo do seu ato, está prestes a mudar. Segundo informações do Senado Federal, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) pode votar, hoje, uma proposta de emenda constitucional (PEC), 10/2022, estabelecendo novas regras para coleta, processamento e comercialização do plasma humano.

Sim, estamos diante de mais um processo de monetização, que está acontecendo sem alardes nos bastidores da República. Ora, isso é gravíssimo! Começam monetizando o plasma sanguíneo e, de repente, estarão fazendo o mesmo com outros órgãos. Essa não é somente uma afronta aos princípios éticos e morais; mas, também, à Bioética2 .

Dentro desse contexto, estamos diante de uma proposta que traz aspectos extremamente preocupantes, tais como a banalização da segurança dos hemoderivados que serão utilizados, o estabelecimento de mecanismos que inviabilizam a acessibilidade desses produtos pelas camadas mais frágeis e vulneráveis da população, o aceno com a possibilidade de renda eventual para cidadãos em situação de dificuldade financeira, a criação de lobbies da indústria farmacêutica para atuarem em favor de seus interesses no Congresso, enfim.

Além disso, a falta de um debate com a sociedade cria mais um ponto de questionamento significativo, na medida em que ela é a doadora em potencial desse material. Por que não consultá-la? Por que não conhecer os seus pontos de vista a esse respeito? Por que lançá-la a eventuais riscos e custos sem informá-la de que eles existem? A falta de transparência no trato de assuntos importantes, como a saúde, leva a situações seríssimas e, muitas vezes, sem reversão.

Recentemente, li uma matéria no site da BBC News Brasil 3, que tratava de um método contraceptivo utilizado no Brasil, em hospitais públicos, e que acabou sendo proibido mundialmente, em razão da intensidade e da severidade dos efeitos colaterais apresentados pelas pacientes, as quais não foram previamente informadas a respeito. Só depois da situação sair fora de controle, de não ser possível, em muitos casos, resolver satisfatoriamente os problemas, é que as autoridades responsáveis tomaram providências, fazendo-nos pensar como a vida humana vale cada vez menos.

Sinceramente, gostaria que tudo isso não passasse de roteiro de ficção, como nos filmes “Cobaias” (1997), “O Jardineiro Fiel” (2005) e “Não me abandone jamais” (2010), que problematizam uma série de questões envoltas por implicações morais e jurídicas desencadeadas pelos interesses econômicos das grandes farmacêuticas ou empresas ligadas às biociências.

Afinal de contas, parece que a humanidade se encontra em um nível de torpor “que nem tudo o que acontece de grotesco e perverso no mundo, é verdadeiramente permitido enxergar. A forma como os indivíduos são usados e manipulados diariamente por outros seres humanos, há tempos, vem sendo justificada por uma ultrajante naturalização, que tem como objetivo principal conduzir a uma abstenção do peso e do sofrimento de lutar contra essa corrente de interesses degenerados” 4.

Não acredito nos rompantes da vida. Sempre penso que por trás de uma situação há um fio de acontecimentos que culminaram naquele desfecho. Portanto, olhando para o filme e não para a fotografia, tenho comigo de que a PEC 10/2022 é só mais um movimento para abalar as estruturas do Sistema Único de Saúde (SUS) nacional. A ideia fomentada pela direita e seus matizes, mais ou menos radicais, nos últimos anos, é acabar com o SUS a partir da privatização da saúde.

Coisas da necropolítica associada ao liberalismo capitalista; mas, que levariam milhares de pessoas à desassistência pela inacessibilidade financeira. Algo que choca profundamente, porque mostra como a sociedade brasileira não aprendeu nada durante a pandemia. Não fosse essa rede de proteção implantada pela Constituição Federal de 1988, muito mais pessoas teriam morrido pela COVID-19. Mas, esse é só um exemplo.

O SUS representa muito mais na vida de qualquer brasileiro, seja ele de qualquer gênero, cor, raça, escolaridade, status. Engana-se redondamente quem pensa que o SUS é de graça! Não, cada fração dos impostos pagos por mim, por você, por ele ou por qualquer cidadão brasileiro, é que mantém o sistema funcionado 24h por dia, 365 dias ao ano.

E no meio dessa sanha capital, eis que surge a proposta de monetizar o sangue, ou parte dele. Há alguns anos, vi em um livro, da década de 90, a imagem que ilustra essa minha reflexão. Algumas cabeças raspadas, de costas, com um código de barras em cada uma e um texto que dizia “In a consumer society everything becomes a commodity” (Em uma sociedade de consumo tudo vira mercadoria). Jamais me esqueci dessa imagem e, talvez, nunca esquecerei, pelo simples fato de que é isso mesmo o que vem acontecendo, uma monetização humana totalmente desprovida de ética e de moral.