Mais um
degrau na monetização humana
Por
Alessandra Leles Rocha
Sangue é vida. Mas foi preciso
muita luta, muito empenho, muito sacrifício, para que houvesse no Brasil um
controle e fiscalização satisfatórios, a fim de evitar que, através desse
líquido sagrado, milhares de pessoas viessem a ser contaminadas por inúmeras
doenças, incluindo a AIDS. De modo que de 1993 até 2016 foram publicadas
portarias pelo Ministério da Saúde com o objetivo de garantir cada vez mais a
segurança do receptor dos hemocomponentes.
Assim, cada bolsa de doação, que
representa 450ml do volume total de sangue de um indivíduo, de acordo com a
Portaria n.º 158 de 4 de fevereiro de 2016, ainda em plena vigência, passa por
uma tríplice triagem, ou seja, uma triagem clínica, hematológica e sorológica
1. Afinal de contas, esse precioso
líquido pode atender as demandas médicas de até 4 pacientes, tendo em vista que
após a coleta ele é fracionado em quatro componentes distintos – Concentrado de
Hemácias, Concentrado de Plaquetas, Plasma e Crioprecipitado.
E o que vem vigorando como uma
atitude altruísta, voluntária, sigilosa e vetada ao doador de receber qualquer
benefício advindo do seu ato, está prestes a mudar. Segundo informações do
Senado Federal, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) pode votar, hoje,
uma proposta de emenda constitucional (PEC), 10/2022, estabelecendo novas
regras para coleta, processamento e comercialização do plasma humano.
Sim, estamos diante de mais um
processo de monetização, que está acontecendo sem alardes nos bastidores da
República. Ora, isso é gravíssimo! Começam monetizando o plasma sanguíneo e, de
repente, estarão fazendo o mesmo com outros órgãos. Essa não é somente uma
afronta aos princípios éticos e morais; mas, também, à Bioética2 .
Dentro desse contexto, estamos
diante de uma proposta que traz aspectos extremamente preocupantes, tais como a
banalização da segurança dos hemoderivados que serão utilizados, o
estabelecimento de mecanismos que inviabilizam a acessibilidade desses produtos
pelas camadas mais frágeis e vulneráveis da população, o aceno com a
possibilidade de renda eventual para cidadãos em situação de dificuldade
financeira, a criação de lobbies da indústria farmacêutica para atuarem em
favor de seus interesses no Congresso, enfim.
Além disso, a falta de um debate
com a sociedade cria mais um ponto de questionamento significativo, na medida
em que ela é a doadora em potencial desse material. Por que não consultá-la?
Por que não conhecer os seus pontos de vista a esse respeito? Por que lançá-la
a eventuais riscos e custos sem informá-la de que eles existem? A falta de
transparência no trato de assuntos importantes, como a saúde, leva a situações
seríssimas e, muitas vezes, sem reversão.
Recentemente, li uma matéria no
site da BBC News Brasil 3, que
tratava de um método contraceptivo utilizado no Brasil, em hospitais públicos,
e que acabou sendo proibido mundialmente, em razão da intensidade e da
severidade dos efeitos colaterais apresentados pelas pacientes, as quais não
foram previamente informadas a respeito. Só depois da situação sair fora de
controle, de não ser possível, em muitos casos, resolver satisfatoriamente os
problemas, é que as autoridades responsáveis tomaram providências, fazendo-nos
pensar como a vida humana vale cada vez menos.
Sinceramente, gostaria que tudo
isso não passasse de roteiro de ficção, como nos filmes “Cobaias” (1997), “O
Jardineiro Fiel” (2005) e “Não me abandone jamais” (2010), que problematizam uma
série de questões envoltas por implicações morais e jurídicas desencadeadas pelos
interesses econômicos das grandes farmacêuticas ou empresas ligadas às biociências.
Afinal de contas, parece que a humanidade
se encontra em um nível de torpor “que nem tudo o que acontece de grotesco e
perverso no mundo, é verdadeiramente permitido enxergar. A forma como os
indivíduos são usados e manipulados diariamente por outros seres humanos, há
tempos, vem sendo justificada por uma ultrajante naturalização, que tem como
objetivo principal conduzir a uma abstenção do peso e do sofrimento de lutar
contra essa corrente de interesses degenerados” 4.
Não acredito nos rompantes da
vida. Sempre penso que por trás de uma situação há um fio de acontecimentos que
culminaram naquele desfecho. Portanto, olhando para o filme e não para a
fotografia, tenho comigo de que a PEC 10/2022 é só mais um movimento para
abalar as estruturas do Sistema Único de Saúde (SUS) nacional. A ideia
fomentada pela direita e seus matizes, mais ou menos radicais, nos últimos
anos, é acabar com o SUS a partir da privatização da saúde.
Coisas da necropolítica associada
ao liberalismo capitalista; mas, que levariam milhares de pessoas à desassistência
pela inacessibilidade financeira. Algo que choca profundamente, porque mostra
como a sociedade brasileira não aprendeu nada durante a pandemia. Não fosse
essa rede de proteção implantada pela Constituição Federal de 1988, muito mais
pessoas teriam morrido pela COVID-19. Mas, esse é só um exemplo.
O SUS representa muito mais na
vida de qualquer brasileiro, seja ele de qualquer gênero, cor, raça,
escolaridade, status. Engana-se redondamente quem pensa que o SUS é de graça! Não,
cada fração dos impostos pagos por mim, por você, por ele ou por qualquer
cidadão brasileiro, é que mantém o sistema funcionado 24h por dia, 365 dias ao
ano.
E no meio dessa sanha capital, eis
que surge a proposta de monetizar o sangue, ou parte dele. Há alguns anos, vi em
um livro, da década de 90, a imagem que ilustra essa minha reflexão. Algumas
cabeças raspadas, de costas, com um código de barras em cada uma e um texto que
dizia “In a consumer society everything becomes a commodity” (Em uma
sociedade de consumo tudo vira mercadoria). Jamais me esqueci dessa imagem
e, talvez, nunca esquecerei, pelo simples fato de que é isso mesmo o que vem
acontecendo, uma monetização humana totalmente desprovida de ética e de moral.
2 Em linhas
gerais, a Bioética representa a área de estudo que fundamenta os princípios
éticos que regem a vida quando esta é colocada em risco pela Medicina ou pelas
ciências. Fonte: https://brasilescola.uol.com.br/filosofia/bioetica.htm#:~:text=o%20texto%20abaixo!-,A%20Bio%C3%A9tica%20%C3%A9%20uma%20%C3%A1rea%20de%20estudo%20interdisciplinar%20que%20envolve,pela%20Medicina%20ou%20pelas%20ci%C3%AAncias.