Para o
meu pai...
Por Alessandra
Leles Rocha
Cada vez mais me convenço de que
o excesso de idealizações que o ser humano estabelece no seu cotidiano é a
grande chave para explicar as suas dores e frustrações. Principalmente, quando estas
dizem respeito ao outro.
Pois é, tenho lugar de fala nessa
questão. Posso dizer, de cadeira, meu pai foi para mim uma Esfinge. Passei pouco
mais de quatro décadas, tentando decifrá-lo sem sucesso. Tudo porque eu
precisava fazê-lo caber nas minhas expectativas, nas minhas idealizações. Que loucura!
Logo com o meu pai?!
Um sujeito incrível; mas, por
alguma razão inexplicada, insistia em esconder dentro da concha o seu lado A,
mostrando-o raramente, em ocasiões bastante ímpares. Na maior parte do tempo, o
que se via era o seu lado B. Extremamente desafiador e controverso. Como
qualquer ser humano que se preze, não foi uma unanimidade. Teceu simpatias e
antipatias, ao longo das suas quase oito décadas de existência.
Ora, estar ao seu lado era uma
verdadeira montanha-russa de emoções e de sentimentos. Tudo porque ele não se
permitia arroubos nessa seara. Tudo era medido, pesado e ajustado de acordo com
as conjunturas. Meu pai era um capricorniano legítimo! Prático. Determinado. E muitas
vezes, frio e calculista para alcançar os seus objetivos.
E nesse sentido, não lhe faltava
disposição para o trabalho. Meu pai era literalmente um workaholic. Se necessário fosse, ele acordava de
madrugada, enfrentava chão de terra batida, sol escaldante, carro atolado pela
chuva, enfim... Não raros eram os momentos em que ele parecia fazer da vida um
jogo. Adorava se vangloriar das vitórias; mas, não tinha constrangimento para
falar sobre as perdas. Talvez, porque jamais lhe passasse pela cabeça desistir
das disputas.
Contrariando as expectativas do
seu pai, ele não quis levar os estudos adiante. Tinha uma autoestima tão
elevada, que apostava em suas habilidades e competências, na arte do comércio,
todas as fichas que dispunha. Só posso dizer que ele tinha razão! Meu pai
nasceu talhado para negociar. Tinha um charme persuasivo inexplicável e,
praticamente, encantava os seus clientes.
Tanto que muitos destes
tornaram-se seus amigos. Amigos de conversas. Amigos de pescarias. Amigos do
cafezinho. Amigos que movimentavam a sua caverna. Pois é, quem diria que o
mesmo sujeito comunicativo era um grande apreciador da sua clausura doméstica. Sério!
Meu pai levou o escritório para dentro de casa para não ter que sair.
De modo que a vida era intensa;
mas, dentro dos moldes que ele definiu. Se tem uma característica notável do meu
pai é a sua personalidade. Ele não fazia questão de agradar ao mundo, de caber
nos protocolos alheios. Ele era ele e ponto final. E com tamanha ousadia ele
foi longe, sem comprometer as suas escolhas, os seus valores, as suas crenças,
as suas convicções.
É claro, que ele quebrou muitos
ovos para fazer essa omelete! A dose de individualismo foi, em muitos momentos,
além da conta. E quanto mais próximo dele o outro estivesse, mais intensos e devastadores
poderiam ser os efeitos disso. Sobretudo, se outro fosse diametralmente oposto
a ele.
O que era exatamente o meu caso. Quanto
mais eu tentava enquadrá-lo, mais eu entendia que ele não sabia ser diferente
para caber nas minhas expectativas, nas minhas idealizações. Era nessa
organização identitária que ele se protegia de tudo aquilo que ele não
conseguia lidar. Afinal, a subjetividade humana era algo muito maluco para
alguém tão pragmático, como ele.
Quando li a crônica “Não pode
tocar” (2004), de Martha Medeiros, eu depurei melhor essa minha percepção. Através
da ideia, “Mantenha-se atrás da faixa amarela, não chegue muito perto, não
acerque-se de meus traumas, não invada meus mistérios, não atrite-se com o meu
passado, não tente entender nada: é proibido tocar no sagrado de cada um. Todas
as relações do mundo possuem sua prateleira de cristais. Há sempre um suspense,
uma delicadeza ao transitar pela fragilidade do outro”, descobri uma materialidade
para o modo do meu pai lidar com suas relações humanas.
Ele não sabia estar só; mas,
também, não sabia estar acompanhado. Foi demasiadamente cuidadoso com seus
cristais. Mas, isso lhe custou um preço existencial que nem ele sabia quanto. Por
isso se mantinha em constante vigilância, de guarda em tempo integral,
ocupando-se mais e mais do cotidiano prático da vida para invisibilizar as suas
subjetividades. Muitos cigarros. Muitos remédios para dormir. Muitos doces e
chocolates. ...
Até que o corpo reverberou
silenciosamente as suas dores, as suas tristezas, as suas decepções, as suas
frustrações, ... Quando atingiu seu limite de tolerabilidade mergulhou em um
casulo, numa última tentativa de preservar a si mesmo, de preservar seus cristais.
Abriu mão da pressa, da adrenalina, do frenesi das horas, porque resistir
demandava uma força física que ele já não dispunha mais.
Então, no último domingo, ele partiu.
Ele, agora, não precisa mais ser super-herói, invencível, imortal, indestrutível.
Ele, agora, pode ser só energia, luz, paz. Sua alma rompeu o casulo para ganhar
a imensidão do universo. Pulsar nas memórias. Não, meu pai não virou anjo (e
nem demônio)! Ele simplesmente se libertou para rasgar a tal faixa amarela e
lidar, sem temores e ressalvas, com o seu sagrado. Não precisa mais se
preocupar com seus cristais e, nem tampouco, com o que pensa ou idealiza o
mundo.
Não o teremos aqui; mas, teremos
a certeza de que ele está em um outro momento. Com muito mais capacidade de nos
conhecer, de nos entender, de nos amar, de nos enxergar na profundidade
necessária. E pensando a respeito, lembrei-me de um trecho de uma canção de
Chico Buarque que diz: “Depois de te perder / Te encontro, com certeza/
Talvez num tempo da delicadeza / Onde não diremos nada / Nada aconteceu /
Apenas seguirei, como encantado / Ao lado teu” 1.
1 Todo sentimento (Cristovao da Silva Bastos Filho / Francisco Buarque de Holanda), 1987 - https://www.youtube.com/watch?v=ieuSKa4Vw5k