segunda-feira, 14 de agosto de 2023

O lado nada Hollywoodiano da história


O lado nada Hollywoodiano da história

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A recente greve do segmento cinematográfico dos EUA, por conta dos avanços tecnológicos promovidos pela Inteligência Artificial (I.A.), não pode ser encarada sob a mesma perspectiva das transformações socioeconômicas produzidas pelas primeiras etapas da Revolução Industrial. Dessa vez, os impactos são sim, devastadores.

E não estou falando apenas sobre a perda de milhares de oportunidades de trabalho, ou da deterioração da criatividade na elaboração dos roteiros, ou do uso indiscriminado de corpos modulados pela tecnologia. Se muitos já se esqueceram, o planeta tem hoje aproximadamente 761 milhões de idosos, ou seja, pessoas com 65 anos ou mais. Acontece que as projeções científicas dão conta de que esse número pode dobrar até a metade deste século, alcançando a cifra de 1,6 bilhão de pessoas em 2050.

Diante desse cenário, são essas pessoas as que serão mais afetadas pelo processo de tecnologização contemporânea. Primeiro, porque o envelhecimento não acontece de maneira uniforme na sociedade. Há diferenças marcantes em relação ao gênero, à segurança alimentar, à qualidade de vida e salubridade, ao grau de escolaridade, ao status socioeconômico, ao papel social desempenhado, que torna bastante complexa a construção de um protocolo único a ser aplicado em favor desse contingente populacional.

Segundo, porque a maioria dos países, mesmo de posse de conhecimentos técnico-científicos sobre o envelhecimento, ainda relutam na elaboração de políticas públicas capazes de satisfazer a essa realidade em curso. São bastante restritas as iniciativas voltadas a garantir a manutenção da dignidade das populações idosas, apesar de elas representarem, em muitas sociedades, um alicerce economicamente ativo para a sobrevivência de suas famílias. Seja através do mísero valor de sua aposentadoria e/ou pela permanência no mercado de trabalho formal ou informal.

Aliás, esse é um aspecto importantíssimo de análise que não pode ser romantizado, como fazem uns e outros, por aí. Nem todos os idosos que permanecem atuantes no mercado de trabalho o fazem por escolha e podendo tomar certos cuidados em relação à sua saúde física e mental. Na verdade, a imensa maioria cai nas armadilhas da própria conjuntura social, política e econômica de seus países. Não tem opção. É a lei da sobrevivência que move esse processo.

E nesse sentido, os limites naturais do corpo são colocados à prova de diferentes maneiras, as quais acabam repercutindo na deflagração de doenças, as quais em longo prazo, tornam-se bastante graves e onerosas. Como máquina, o corpo também alcança a exaustão e o desgaste de seus componentes, exteriorizando um funcionamento degradado decorrente de processos degenerativos diversos que se somam aos efeitos do próprio ambiente, tais como as poluições, o estresse, as violências, os efeitos extremos do clima.

No Brasil já se sabe, por exemplo, que o “Aumento dos casos de demência pode chegar a 5,5 milhões até 2050” [1] . Algo extremamente importante para se atentar porque “A demência é uma das principais causas de incapacitação de idosos e gera um impacto físico, psicológico, social e econômico tanto para as pessoas com a doença como para quem cuida delas. De acordo com a OMS, em 2019 foi gasto no mundo US$1,3 trilhão para atender a pessoas com demência” 2.

Assim, considerando que a velocidade de inovação tecnológica já afeta a dinâmica social das novas gerações, o que dizer, então, daqueles que já são idosos ou que estão em curso de envelhecimento? Afinal, o ser humano é o centro da dinâmica do mundo, de modo que todos os assuntos que afetam e atravessam a sua existência não podem ser vistos e entendidos de maneira dissociada do pragmatismo de suas demandas.

A grande revolução trazida pela Inteligência Artificial (I.A.) não faz distinção entre esse ou aquele indivíduo, ela chega para substituir a raça humana. O que ocorre é que a criatura inevitavelmente submete o criador à sua fúria; pois, ela não está programada para se debruçar sobre os efeitos nefastos decorrentes disso. Simplesmente, porque nos bastidores de todo esse processo de inovação reside o Biopoder.

Isso significa que “É na articulação da anatomopolítica dos corpos (que caracteriza os mecanismos disciplinares) com a biopolítica das populações (enquanto mecanismos de regulação e segurança) que teriam se produzido esse poder e esse saber sobre a vida, o investimento maciço sobre a vida e seus fenômenos, a partir de uma tecnologia refletida e calculada e da introdução da população como objeto de intervenção política, de gestão e de governo” (MARTINS; PEIXOTO JUNIOR, 2009, p.162) 3.

Desse modo, enquanto a humanidade é habilmente manipulada a se envolver pelo deslumbramento com a criatividade engenhosa da inovação tecnológica, há questões éticas e humanitárias ansiando por uma discussão urgente. A impressão que se tem é de que a tecnologização silenciosamente já colocou o ser humano no fim da fila das prioridades. E este nem se deu conta disso! Acontece que a displicência, a negligência, o descaso, são estratégias sociais de altíssimo risco e custo. Quando menos se espera a conta chega. Resta saber se estaremos aptos a pagar por ela ou não.



2 Idem 1.

3 MARTINS, L. A. M.; PEIXOTO JUNIOR, C. A. Genealogia do Biopoder. Psicologia & Sociedade, Belo Horizonte, v.21, n.2. p.157-165, 2009.