O lado
nada Hollywoodiano da história
Por Alessandra
Leles Rocha
A recente greve do segmento cinematográfico
dos EUA, por conta dos avanços tecnológicos promovidos pela Inteligência
Artificial (I.A.), não pode ser encarada sob a mesma perspectiva das transformações
socioeconômicas produzidas pelas primeiras etapas da Revolução Industrial.
Dessa vez, os impactos são sim, devastadores.
E não estou falando apenas sobre
a perda de milhares de oportunidades de trabalho, ou da deterioração da
criatividade na elaboração dos roteiros, ou do uso indiscriminado de corpos modulados
pela tecnologia. Se muitos já se esqueceram, o planeta tem hoje aproximadamente
761 milhões de idosos, ou seja, pessoas com 65 anos ou mais. Acontece que as
projeções científicas dão conta de que esse número pode dobrar até a metade deste
século, alcançando a cifra de 1,6 bilhão de pessoas em 2050.
Diante desse cenário, são essas
pessoas as que serão mais afetadas pelo processo de tecnologização contemporânea.
Primeiro, porque o envelhecimento não acontece de maneira uniforme na
sociedade. Há diferenças marcantes em relação ao gênero, à segurança alimentar,
à qualidade de vida e salubridade, ao grau de escolaridade, ao status socioeconômico,
ao papel social desempenhado, que torna bastante complexa a construção de um
protocolo único a ser aplicado em favor desse contingente populacional.
Segundo, porque a maioria dos
países, mesmo de posse de conhecimentos técnico-científicos sobre o
envelhecimento, ainda relutam na elaboração de políticas públicas capazes de
satisfazer a essa realidade em curso. São bastante restritas as iniciativas
voltadas a garantir a manutenção da dignidade das populações idosas, apesar de elas
representarem, em muitas sociedades, um alicerce economicamente ativo para a sobrevivência
de suas famílias. Seja através do mísero valor de sua aposentadoria e/ou pela permanência
no mercado de trabalho formal ou informal.
Aliás, esse é um aspecto importantíssimo
de análise que não pode ser romantizado, como fazem uns e outros, por aí. Nem todos
os idosos que permanecem atuantes no mercado de trabalho o fazem por escolha e podendo
tomar certos cuidados em relação à sua saúde física e mental. Na verdade, a
imensa maioria cai nas armadilhas da própria conjuntura social, política e econômica
de seus países. Não tem opção. É a lei da sobrevivência que move esse processo.
E nesse sentido, os limites
naturais do corpo são colocados à prova de diferentes maneiras, as quais acabam
repercutindo na deflagração de doenças, as quais em longo prazo, tornam-se
bastante graves e onerosas. Como máquina, o corpo também alcança a exaustão e o
desgaste de seus componentes, exteriorizando um funcionamento degradado
decorrente de processos degenerativos diversos que se somam aos efeitos do próprio
ambiente, tais como as poluições, o estresse, as violências, os efeitos
extremos do clima.
No Brasil já se sabe, por
exemplo, que o “Aumento dos casos de demência pode chegar a 5,5 milhões até
2050” [1]
. Algo extremamente importante para se atentar porque “A demência é uma das
principais causas de incapacitação de idosos e gera um impacto físico,
psicológico, social e econômico tanto para as pessoas com a doença como para
quem cuida delas. De acordo com a OMS, em 2019 foi gasto no mundo US$1,3
trilhão para atender a pessoas com demência” 2.
Assim, considerando que a
velocidade de inovação tecnológica já afeta a dinâmica social das novas gerações,
o que dizer, então, daqueles que já são idosos ou que estão em curso de
envelhecimento? Afinal, o ser humano é o centro da dinâmica do mundo, de modo
que todos os assuntos que afetam e atravessam a sua existência não podem ser
vistos e entendidos de maneira dissociada do pragmatismo de suas demandas.
A grande revolução trazida pela Inteligência
Artificial (I.A.) não faz distinção entre esse ou aquele indivíduo, ela chega
para substituir a raça humana. O que ocorre é que a criatura inevitavelmente
submete o criador à sua fúria; pois, ela não está programada para se debruçar
sobre os efeitos nefastos decorrentes disso. Simplesmente, porque nos
bastidores de todo esse processo de inovação reside o Biopoder.
Isso significa que “É na
articulação da anatomopolítica dos corpos (que caracteriza os mecanismos
disciplinares) com a biopolítica das populações (enquanto mecanismos de
regulação e segurança) que teriam se produzido esse poder e esse saber sobre a
vida, o investimento maciço sobre a vida e seus fenômenos, a partir de uma
tecnologia refletida e calculada e da introdução da população como objeto de
intervenção política, de gestão e de governo” (MARTINS; PEIXOTO JUNIOR, 2009,
p.162) 3.
Desse modo, enquanto a humanidade
é habilmente manipulada a se envolver pelo deslumbramento com a criatividade engenhosa
da inovação tecnológica, há questões éticas e humanitárias ansiando por uma
discussão urgente. A impressão que se tem é de que a tecnologização silenciosamente
já colocou o ser humano no fim da fila das prioridades. E este nem se deu conta
disso! Acontece que a displicência, a negligência, o descaso, são estratégias sociais
de altíssimo risco e custo. Quando menos se espera a conta chega. Resta saber
se estaremos aptos a pagar por ela ou não.
[1] https://www.portaldoenvelhecimento.com.br/aumento-dos-casos-de-demencia-pode-chegar-a-55-milhoes-ate-2050/
2 Idem 1.
3 MARTINS, L. A. M.; PEIXOTO JUNIOR, C. A. Genealogia do Biopoder. Psicologia & Sociedade, Belo Horizonte, v.21, n.2. p.157-165, 2009.