terça-feira, 15 de agosto de 2023

Andando em círculos


Andando em círculos

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Pois é, demorou muito para que a mídia se dispusesse a parar de personalizar a denominação do ex-governo, a partir do nome do ex-Presidente da República, e passasse a se referir a ele como o que é exatamente, ou seja, a representação da ultradireita nacional. Afinal de contas, não estávamos diante de nenhuma novidade no campo político, ninguém havia tecido uma nova ideologia revolucionária. Era somente a matriz ultradireitista se apresentando no Brasil.

Aliás, a expansão da ultradireita na contemporaneidade acontece com base em uma reapropriação dos protocolos nazistas e fascistas já amplamente conhecidos. Portanto, absolutamente nada de novo, a não ser as personagens. De modo que as práxis e o modus operandi empregados sempre deixaram claras as sombras do passado que aterrorizou o mundo nas primeiras décadas do século XX.

Slogans. Palavras de ordem. Discursos. Políticas públicas. Motociatas. Forças militares arregimentadas dentro dos espaços de poder. Enfim... Daqui e dali era possível traçar comparações fidedignas com o passado do governo nazista, na Alemanha de Hitler, e o governo fascista, da Itália de Benito Mussolini. 

Portanto, por que tanta surpresa e perplexidade diante do caso da apropriação indébita de presentes recebidos de outros países, por parte do ex-Presidente da República e seu entorno 1? Ora, os nazistas também se apropriaram, de maneira ainda mais acintosa e devastadora, do patrimônio da população judaica. Obras de arte. Joias. Imóveis. Empresas. Comércios. Recursos financeiros.

Com o auxílio da SS, a Polícia do Estado Nazista, o governo alemão se apoderou desses recursos em benefício do próprio enriquecimento, especialmente, no que diz respeito à elite da sua hierarquia. Algo tão abjeto que, mesmo em pleno século XXI, os relatos que chegam à imprensa a esse respeito dão conta de que “Judeus roubados por nazistas na 2ª Guerra não conseguem recuperar seus bens” 2, “Polônia barra restituição de bens de vítimas do Holocausto” 3, “Sérvia começa a devolver bens a judeus vítimas do Holocausto” 4.

A apropriação indébita se apresenta, então, como um traço do ideário da ultradireita. Sem fazer distinção entre o que é público e o que é privado, o governo de ultradireita usurpa dos bens capitais, seja em maior ou em menor escala. Não como mecanismo de fortalecimento do poder político; mas, de fortalecimento das lideranças simbólicas desse poder. E para manter estável o apoio nessa empreitada, parte desses recursos costuma ser distribuído entre os representantes das forças mais graduadas de sustentação.

De modo que as recentes descobertas, advindas dos desdobramentos decorrentes do campo das investigações relacionadas aos Atos Antidemocráticos, merecem uma análise especial de comparação histórica, capaz de revelar os vieses motivadores do ex-governo federal. Afinal, há um conjunto de pistas já bastante robusto para sustentar essa ideia e desconstruir definitivamente a narrativa de uma empreitada, pensada e planejada, por iniciativa e criatividade próprias ou, no máximo, inspiradas por teorias conspiratórias de grupos ultradireitas internacionais contemporâneos.

Acontece que nada disso respira originalidade! Aliás, no século XVIII, Antoine-Laurent de Lavoisier já nos alertava de que “Na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. Assim, ainda que a semente da ultradireita seja o nazifascismo, gestado nas primeiras décadas do século XX, a verdade é que suas raízes foram fiadas ao longo das histórias de dominação e poder do ser humano que lhe antecederam.

O que ocorre é que, de tempos em tempos, mediante as necessidades político-partidárias da ultradireita, ela revira os baús da história para resgatar os velhos ideários e tentar fazer com que, finalmente, consigam o tão sonhado êxito de afirmação. De modo que o ex-governo não foi vanguarda, não estabeleceu quaisquer pioneirismos. Fez mais de um mesmo já conhecido.

E ao não se importar em repetir padrões, também não deveria se importar em ter que lidar com os erros, os insucessos e os fracassos contidos nessa reprodução. Porque, de um jeito ou de outro, isso acaba sendo inevitável. Daí a importância de aprender com as antigas lições! O que começa errado vai errado até o fim. Não basta substituir as personagens quando se mantém o mesmo enredo. 

Diante dos acontecimentos, o que se põe como prioridade, então, é definir as responsabilidades e os limites, a fim de não abrir precedentes. O fato de parte do acervo apropriado indevidamente ter sido devolvido, não muda o ato delituoso. Devolver só faz estabelecer a materialidade da consciência sobre o delito. Então, se não houver responsabilização, dentro da esfera judicial, qualquer um pode incorrer no mesmo, na esperança de que, caso seja descoberto, uma simples devolução encerraria a questão.

Acontece, que nomeando corretamente os fatos, a apropriação indébita é um crime doloso praticado contra o patrimônio e que, nesse caso, desemboca na corrupção, na medida em que faz desse delito praticado, por uma pessoa ou organização, a quem é confiada uma posição de autoridade, o meio para se obter benefícios ilícitos ou abusar de poder para ganho pessoal. Assim, não dá para fazer vistas grossas, passar pano, fingir que não viu, contemporizar, porque isso esgarça e enfraquece quaisquer pretensões de fortalecimento democrático e de uma identidade conscientemente cidadã.