Andando
em círculos
Por
Alessandra Leles Rocha
Pois é, demorou muito para que a
mídia se dispusesse a parar de personalizar a denominação do ex-governo, a
partir do nome do ex-Presidente da República, e passasse a se referir a ele
como o que é exatamente, ou seja, a representação da ultradireita nacional.
Afinal de contas, não estávamos diante de nenhuma novidade no campo político,
ninguém havia tecido uma nova ideologia revolucionária. Era somente a matriz
ultradireitista se apresentando no Brasil.
Aliás, a expansão da ultradireita
na contemporaneidade acontece com base em uma reapropriação dos protocolos
nazistas e fascistas já amplamente conhecidos. Portanto, absolutamente nada de
novo, a não ser as personagens. De modo que as práxis e o modus operandi
empregados sempre deixaram claras as sombras do passado que aterrorizou o mundo
nas primeiras décadas do século XX.
Slogans. Palavras de ordem.
Discursos. Políticas públicas. Motociatas. Forças militares arregimentadas
dentro dos espaços de poder. Enfim... Daqui e dali era possível traçar
comparações fidedignas com o passado do governo nazista, na Alemanha de Hitler,
e o governo fascista, da Itália de Benito Mussolini.
Portanto, por que tanta surpresa
e perplexidade diante do caso da apropriação indébita de presentes recebidos de
outros países, por parte do ex-Presidente da República e seu entorno 1? Ora, os nazistas também se apropriaram,
de maneira ainda mais acintosa e devastadora, do patrimônio da população judaica.
Obras de arte. Joias. Imóveis. Empresas. Comércios. Recursos financeiros.
Com o auxílio da SS, a Polícia do
Estado Nazista, o governo alemão se apoderou desses recursos em benefício do
próprio enriquecimento, especialmente, no que diz respeito à elite da sua
hierarquia. Algo tão abjeto que, mesmo em pleno século XXI, os relatos que
chegam à imprensa a esse respeito dão conta de que “Judeus roubados por
nazistas na 2ª Guerra não conseguem recuperar seus bens” 2, “Polônia barra restituição de bens
de vítimas do Holocausto” 3, “Sérvia
começa a devolver bens a judeus vítimas do Holocausto” 4.
A apropriação indébita se
apresenta, então, como um traço do ideário da ultradireita. Sem fazer distinção
entre o que é público e o que é privado, o governo de ultradireita usurpa dos
bens capitais, seja em maior ou em menor escala. Não como mecanismo de
fortalecimento do poder político; mas, de fortalecimento das lideranças
simbólicas desse poder. E para manter estável o apoio nessa empreitada, parte
desses recursos costuma ser distribuído entre os representantes das forças mais
graduadas de sustentação.
De modo que as recentes
descobertas, advindas dos desdobramentos decorrentes do campo das investigações
relacionadas aos Atos Antidemocráticos, merecem uma análise especial de
comparação histórica, capaz de revelar os vieses motivadores do ex-governo
federal. Afinal, há um conjunto de pistas já bastante robusto para sustentar
essa ideia e desconstruir definitivamente a narrativa de uma empreitada,
pensada e planejada, por iniciativa e criatividade próprias ou, no máximo,
inspiradas por teorias conspiratórias de grupos ultradireitas internacionais
contemporâneos.
Acontece que nada disso respira
originalidade! Aliás, no século XVIII, Antoine-Laurent de Lavoisier já nos
alertava de que “Na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se
transforma”. Assim, ainda que a semente da ultradireita seja o nazifascismo,
gestado nas primeiras décadas do século XX, a verdade é que suas raízes foram
fiadas ao longo das histórias de dominação e poder do ser humano que lhe
antecederam.
O que ocorre é que, de tempos em
tempos, mediante as necessidades político-partidárias da ultradireita, ela
revira os baús da história para resgatar os velhos ideários e tentar fazer com
que, finalmente, consigam o tão sonhado êxito de afirmação. De modo que o
ex-governo não foi vanguarda, não estabeleceu quaisquer pioneirismos. Fez mais
de um mesmo já conhecido.
E ao não se importar em repetir
padrões, também não deveria se importar em ter que lidar com os erros, os
insucessos e os fracassos contidos nessa reprodução. Porque, de um jeito ou de
outro, isso acaba sendo inevitável. Daí a importância de aprender com as antigas
lições! O que começa errado vai errado até o fim. Não basta substituir as
personagens quando se mantém o mesmo enredo.
Diante dos acontecimentos, o que
se põe como prioridade, então, é definir as responsabilidades e os limites, a
fim de não abrir precedentes. O fato de parte do acervo apropriado
indevidamente ter sido devolvido, não muda o ato delituoso. Devolver só faz
estabelecer a materialidade da consciência sobre o delito. Então, se não houver
responsabilização, dentro da esfera judicial, qualquer um pode incorrer no
mesmo, na esperança de que, caso seja descoberto, uma simples devolução
encerraria a questão.
Acontece, que nomeando
corretamente os fatos, a apropriação indébita é um crime doloso praticado
contra o patrimônio e que, nesse caso, desemboca na corrupção, na medida em que
faz desse delito praticado, por uma pessoa ou organização, a quem é confiada
uma posição de autoridade, o meio para se obter benefícios ilícitos ou abusar
de poder para ganho pessoal. Assim, não dá para fazer vistas grossas, passar
pano, fingir que não viu, contemporizar, porque isso esgarça e enfraquece
quaisquer pretensões de fortalecimento democrático e de uma identidade
conscientemente cidadã.
1 https://www.estadao.com.br/politica/bolsonaro-nao-poderia-receber-guardar-vender-presentes-que-recebeu-entenda-nprp/
2 https://super.abril.com.br/historia/judeus-roubados-por-nazistas-na-2o-guerra-nao-conseguem-recuperar-seus-bens