quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Há muitas léguas para percorrer nesse caminho...


Há muitas léguas para percorrer nesse caminho...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

No mundo patriarcal contemporâneo, a velha ideia do Barão de Coubertin de que “Uma olimpíada com mulheres seria impraticável, desinteressante, inestética e imprópria” ecoa pela força de retrógradas ideologias conservadoras que tentam, a todo custo, ressurgir e se expandir mundo afora. O que explica o nível de obstáculos que as mulheres desportistas precisam enfrentar para se firmarem no apogeu da glória e do sucesso, seja em Jogos Olímpicos, Copas do Mundo e Grandes Torneios.  

Portanto, sem essa de país do futebol! De lançar sobre os ombros das nossas mulheres a obrigação condicionada ao sucesso nesse desporto. A força do patriarcado nessa terra é bruta e não faz muita questão de ser diferente. Meninas aqui não são devidamente acolhidas e incentivadas a desenvolver suas habilidades e competências no esporte. Tudo para elas é mais difícil, é mais desafiador, é mais inatingível, para que suas perspectivas e expectativas não vinguem com facilidade.

Ora, não é necessário ser expert para saber que em qualquer esporte de alto rendimento, em qualquer lugar do mundo, precisa-se de planejamento, de investimento, de vontade, de respeito, ... E diferentemente do cenário masculino, o feminino não encontra incentivos e facilidades para fazer emergir grandes desportistas. É preciso entender que a estrada da glória é um caminho longo, são anos e anos repletos de altos e baixos. Então, é claro que o resultado de hoje entristece! Mas, ele não define nada.

Longe dos oportunismos e das hipocrisias, o Brasil precisou que uma mulher extraordinária brilhasse no cenário mundial do futebol para que ele começasse a dar seus primeiros passos, no sentido de descobrir novos talentos femininos nos gramados. Ao contrário dos meninos que nascem com uma bola dentro do berço, as meninas não são bem-vindas nos espaços de futebol, em pleno século XXI.

Traduzindo em miúdos, isso significa que não há para elas uma formação de base, capaz de lustrar seus fundamentos, suas habilidades, seus traços marcantes. Então, quando conseguem uma oportunidade, elas precisam recuperar um tempo perdido, o que inevitavelmente compromete extrair delas todo o seu potencial. O futebol feminino, no Brasil, vive de dar um passo para frente e dez para trás, o que resulta em avanços muito mais lentos do que se gostaria.

De modo que, por mais que elas se esforcem não se mostram em pé de igualdade com jogadoras de países em que o futebol, ou qualquer outro desporto, já é uma prioridade e desfruta de toda a infraestrutura e investimentos para obtenção dos melhores resultados. Porque não se trata apenas de questões técnicas, físicas, financeiras; mas, particularmente, identitárias. Mais do que qualquer outro cidadão brasileiro, elas são assombradas pelo peso do que Nelson Rodrigues definiu como Complexo de vira-lata.

E nesse sentido, as boas intenções enchem o inferno nacional. Lamento, mas não basta trazer uma treinadora internacional renomada e nem oferecer uma estrutura equivalente aquela que sempre foi oferecida ao masculino. Porque o ponto nevrálgico diz respeito ao inconsciente, aos valores, às crenças, às convicções que pulsam nas meninas do Brasil. Elas precisam se descobrir protagonistas da própria história. Capazes de tudo o que quiserem. Com coragem correndo pelas veias.

Assim, para que esse peso vira-lata seja extirpado, leva tempo! Leva uma ruptura profunda de paradigmas, de preconceitos, de conservadorismos clichês. Em tempos em que se fala tanto da misoginia, esquecem-se muitos de que ela é nascida e amparada pelo patriarcado. E infelizmente, ele ainda é muito forte e presente na tecitura das relações sociais brasileiras. É ele que manda e desmanda nesse inconsciente coletivo.

Por isso, o meu pesar, hoje, não foi necessariamente pela eliminação precoce da seleção feminina de futebol; mas, pela consciência desse cenário conjuntural do esporte brasileiro e pela despedida melancólica da nossa camisa 10, a Marta. É difícil entender; mas, de repente, estava nas linhas do seu destino, como de qualquer outro mortal, a certeza de que não se pode ter tudo! Ela se despede sem o título mundial; mas, não sem história, sem legado.  Marta brilhou e marcou a sua predestinação na história do futebol mundial.

Só espero que não façam com ela, o mesmo que fizeram com o Pelé, quando ficaram procurando alguém para assumir o seu reinado de genialidade. Gênios não precisam ser substituídos, reproduzidos ou copiados. Gênios são para definir um tempo, uma história, uma identidade. O bacana é que surjam outros grandes talentos, cada qual com a sua própria capacidade de deixar uma marca extraordinária. Não, não precisamos de outra Marta! A Marta já existe! Precisamos sim, que despontem outras meninas incríveis nos gramados, nas piscinas, nas quadras, nos tatames e onde mais elas quiserem estar.

Assim, enquanto o tempo cumpre a sina de curar nossas dores momentâneas, lembremo-nos do que escreveu Fernando Sabino, em seu “O Encontro Marcado” (1967): “De tudo ficaram três coisas... A certeza de que estamos sempre começando ... A certeza de que é preciso continuar ... A certeza de que podemos ser interrompidos antes de terminar ... Façamos da interrupção um caminho novo ... Da queda, um passo de dança ... Do medo, uma escada ... Do sonho, uma ponte ... Da procura, um encontro! ”. Porque é nessa certeza que o esporte feminino brasileiro irá nos encontrar, esperando por ele, de braços abertos e coração aquecido pelo entusiasmo fraterno e empático.

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