Quando
a esmola é demais, o santo desconfia ...
Por
Alessandra Leles Rocha
Na medida em que o humano é um
ser inacabado, em constante processo de transformação, não há nada demais em
rever os próprios conceitos, opiniões, pontos de vista. Só não se engane que os
processo de mudança aconteçam ao piscar dos olhos, como acontece no cinema. Metamorfoses
demandam tempo, conjunturas, razões profundas de motivação. Não é dormir e
acordar totalmente reformulado no campo das crenças, valores e princípios.
Talvez, essa percepção equivocada
tenha se dado em razão do que assistimos nos últimos cinco anos no país. No
entanto, o que aconteceu não pode ser considerado ou denominado como mudança;
mas, como uma eclosão de questões de caráter ideológico que vinham sendo reprimidas,
de certo modo, desde o período da redemocratização do país, na década de 80.
Como já escrevi várias vezes, a
presença da Direita e seus matizes nos espaços de poder político e econômico é
histórico. Majoritariamente as decisões sociais, políticas e econômicas nacionais
sempre estiveram nas mãos das elites defensoras desse ideário. Porém, depois
dos Anos de Chumbo, os quais contaram com o apoio maciço desse segmento, os
vieses mais radicais e extremistas da Direita foram abafados pelo receio de
represálias e desaprovações públicas. De modo que permaneceram invisibilizados
até o momento que conseguissem uma legitimidade narrativa e política para se
reafirmarem novamente.
E essa é uma consideração
importante, porque desconstrói a ideia que muitos analistas e debatedores, nos
veículos de comunicação tradicionais e alternativos, apresentam em relação ao
fato de distanciarem a ultradireita do restante da Direita nacional. Acontece
que há algo muito emblemático que nos impede de pensar dessa maneira, que é o
silêncio. Há um sábio ditado popular que diz: “Quem cala, consente”. Quando as pessoas se abstém de demonstrar a
sua discordância, ou a sua repulsa, ou a sua indignação, diante de fatos ou
circunstâncias, é porque de algum modo elas compactuam com aquilo.
De modo que estabelecendo um
retrospecto da história nacional a partir de 2018, quando efetivamente a Direita
reencontrou os elementos sociais e ideológicos que precisava para retornar ao
protagonismo, nunca houve quaisquer embates entre os diferentes matizes da
Direita em relação aos impetuosos ataques ultradireitistas. Não, não é a
brutalidade, a ignorância, a truculência em si, que apontam para o radicalismo,
o extremismo. Tudo começa no alinhamento ideológico, na anuência dos
pensamentos, das perspectivas, das expectativas.
Haja vista o exemplo da CPMI do
08 de janeiro. Os depoentes que lá se apresentam têm contra si uma série de elementos
comprobatórios do seu desvirtuamento democrático e, no entanto, eles se
escondem sob um manto silencioso e bem-comportado, para se tornarem
simplesmente alinhados a ideia padrão da Direita nacional. Aliás, o mesmo modus
operandi que tem sido mostrado nos depoimentos dados à Policia Federal (PF),
como se todos estivessem investidos de uma inocência absoluta, na medida em que
desconstroem a realidade factual e afrontam mais uma vez o que expressa e
determina a legislação a respeito dos acontecimentos.
Vale ressaltar, também, o quão
surpreendente é perceber como muitos fazem do seu silêncio a expressão da própria
pactuação com o extremismo. Não se vê sinal de arrependimento, ou de constrangimento,
nos depoentes. Portanto, o que temos é um recolher de âncoras, extremamente oportunista,
diante do retorno a uma condição pouco favorável para continuar sustentando a legitimidade
do ultradireitismo brasileiro.
Diante de todo o arraigamento
extremista, manifesto por atos e declarações, no campo real e virtual, não há
base para crer em nenhuma mudança repentina de comportamento dessas pessoas,
especialmente, aquelas ligadas às elites direitistas 1.
Gente que prontamente se colocou a financiar, a apoiar, a estimular as ações,
mais ou menos radicais, do ex-governo.
Lamento, mas o virar a casaca
nessa história, então, me parece bem mais associado a eventuais deslizes nas práxis
econômicas cometidas por esses indivíduos ou seus respectivos grupos econômicos.
As relações sociais brasileiras, na esfera de suas elites, sempre foram,
historicamente, corrompidas por jogos de interesses nada republicanos. E mudado
o rumo dos ventos no país, já se mostra claro como as instituições têm passado
um pente fino na história recente a fim de purgar os erros, os absurdos, e
recolocar o país nos trilhos.
Portanto, é um desconforto claro,
um eventual receio em relação aos rigores da lei, o que move as recentes
declarações e vídeos de muitos desses “lobos
em pele de cordeiros”, por aí. Vamos e convenhamos que o episódio de 08 de
janeiro foi um “tiro no pé” dessa ultradireita.
Ali, todas as vísceras do ideário ultradireitista ficaram expostas, obrigando a
uma resposta das instituições brasileiras efetivamente contundente. Tanto os radicais
e extremistas que foram a campo, quanto a sua militância de sofá, expuseram o
país não só ao escrutínio da sua população; mas, do mundo democrático.
Afinal de contas, boa parte do
planeta, viu através dos recentes acontecimentos no Brasil, a exemplificação
clara de como as “Democracias podem morrer
não nas mãos de generais, mas de líderes eleitos – presidentes ou
primeiros-ministros que subvertem o próprio processo que os levou ao poder “
(Steven Levitsky – Como as democracias morrem). Não é à toa que todos os
rumores de golpe ventilados desde antes do início do processo eleitoral, em
2022, os fizeram acompanhar o cenário brasileiro. Depois do ataque ao
Capitólio, em 6 de janeiro de 2021, por ultradireitistas norte-americanos, o Brasil
passou a ser assinalado como um bastião importante para a democracia global.
Sendo assim, não confundamos
alhos com bugalhos. Abandonemos o sentimentalismo e sejamos pragmáticos ao
olhar para o Brasil. Os atos antidemocráticos nos servem de recorte amostral
suficiente para entender e aprofundar a reflexão sobre os meandros históricos da
política nacional brasileira, sobre o peso da presença de um ideário teocrático
imerso no ultradireitismo e sobre o papel das forças militares nos caminhos do
país.
Certamente que as forças
conjunturais que movem o planeta, à revelia das vontades, dos quereres, das
certezas de uns e outros, vai alcançar uma transformação na consciência do
cidadão brasileiro. Mas, esse é um processo em longo prazo. Muita água vai
precisar passar por debaixo das pontes. Até lá, nada melhor do que observar
muito bem o desenho que se figura sobre o tabuleiro do país. Não se esqueça do
provérbio, “Quando a esmola é demais, o
santo desconfia”!