Nas
asas da estupidez odiosa
Por
Alessandra Leles Rocha
Foi um absurdo tão grande que eu
precisei de um tempo para decantar a estupidez e começar a tecer uma reflexão
mais clara e precisa a respeito. O episódio lastimável ocorrido no aeroporto de
Roma, tendo como alvos da afronta um ministro do Supremo Tribunal Federal e seu
filho, não resume os fatos a si mesmos.
Para início de conversa, quando é
que o brasileiro vai entender que a cidadania é um exercício que implica na
expressão do respeito e da civilidade, hein? O brasileiro precisa entender que
a posse de um passaporte e de um visto para estar em outro país não o exime das
reponsabilidades inerentes à sua identidade nacional. De modo que o fato de
manifestar atitudes anticidadãs em espaço geográfico outro, que não o de seu
país de origem, não muda o curso da história.
Sem contar que ao agir de maneira
criminosa e com tamanho destempero e ignorância, os indivíduos reafirmaram uma
imagem pejorativa do seu país de origem, o que inevitavelmente poderá vir a estabelecer
possíveis embaraços diplomáticos para outros cidadãos que pretendam viajar ao
exterior. Em tempos contemporâneos, de alta tecnologia, as notícias correm na
velocidade da luz, não é mesmo? Depois não reclame de ser tratado com desdém,
como ‘forasteiro’, lá fora.
Sim, porque no campo dos estudos
identitários sabe-se, por exemplo, que “a
ordem social é mantida por meio de oposições binárias, tais como a divisão
entre ‘locais’ (insiders) e ‘forasteiros’ (outsiders). A produção de categorias
pelas quais os indivíduos que transgridem são relegados ao status de ‘forasteiros’,
de acordo com o sistema social vigente, garante um certo controle social. A
classificação simbólica está, assim, intimamente relacionada à ordem social”
(Woodward, 2000, p.46 1).
Portanto, o grupo de ‘forasteiros’
que estavam no aeroporto em Roma, por força de suas atitudes incivilizadas, inevitavelmente,
propiciaram, tanto aqui como lá, “problematizar
as maneiras de ler, levar o sujeito falante ou o leitor a se colocarem questões
sobre o que produzem e o que ouvem nas diferentes manifestações da linguagem. Perceber
que não podemos não estar sujeitos à linguagem, a seus equívocos, sua
opacidade. Saber que não há neutralidade nem mesmo no uso mais aparentemente
cotidiano dos signos. A entrada no simbólico é irremediável e permanente:
estamos comprometidos com os sentidos e o político. Não temos como não
interpretar” (ORLANDI, 2001 2).
E aí, então, chegamos ao cerne
dessa reflexão. O que se viu é muito mais do que as imagens e as falas em si,
porque está no subjetivo das emoções, dos sentimentos. A síntese desse e de
tantos outros episódios acontecidos, acontecendo e a acontecer, é o ódio. Algo
extremamente inflamável e poderoso, que faz o ser humano perder a razão, o bom
senso, o limite, a civilidade, retornando, como em um passe de mágica, ao tempo
da barbárie das cavernas.
Por mais estranho que possa
parecer, o ódio alimenta o sentido da vida, para o ser humano. Ele traz um
norte, uma significância, um motivo para lutar, para agir, que acaba por criar
uma sensação de importância e pertencimento social, reduzindo drasticamente a presença
da solidão que o individualismo contemporâneo tanto acentua. O ódio enviesa, de
certa forma, o narcisismo, na medida em que move o indivíduo a atos grandiosos,
exibicionistas, que funcionam como ecos de uma mesma coletividade identitária.
Sim, porque é com seus pares que
eles dividem e compartilham essas pseudoglórias. Mas, por que a sociedade
brasileira chegou a esse ponto? Bem, não há como negar que a Direita e seus
matizes, principalmente, os mais radicais e extremistas, viram na realidade socioeconômica
brasileira um terreno fértil para lançar as sementes do ódio. Segundo Sêneca, “Quando o sangue respira o ódio, não pode
dissimular-se”. Sendo assim, contando com o contexto tecnológico mundial,
foi fácil executar o efeito multiplicador desse ideário odioso, dentro dos mais
diferentes espaços sociais.
O que intriga no curso desse
processo, e acaba por desconstruir certas narrativas, é o fato de que não se
viu em ação, respostas contundentes, o bastante, para arrefecer e eliminar a
possibilidade de consolidação dessas ideias extremistas, por parte das
instituições. Houve por parte delas um excesso de condescendência, de complacência,
de gentileza, como se os fatos e os episódios não demonstrassem quaisquer
riscos, ameaças ou gravidade. Como se bastassem meia dúzia de palavras para
trazer à tona a normalidade e o equilíbrio social. O que explica muito bem o 8
de janeiro de 2023!
E esse comportamento
institucional abriu sim, precedentes para a consolidação de uma crença de
impunidade total, tendo em vista de que um dos pilares do ideário extremista contemporâneo
é a exaltação da liberdade de expressão. Eles são nutridos, pelas mídias sociais,
de exemplos factuais variados que confirmam a existência da impunidade. Por
isso, eles não se sujeitam às regras sociais, às leis, às instituições ou o que
quer que seja. Reside neles a convicção de que a sua liberdade de expressão é
superior e inegociável.
De onde vem essa convicção? Ora,
de uma construção corporativista histórica, na qual as relações sociais sempre permitiram
uma demasiada flexibilização do ordenamento jurídico, para não ferir ou
desagradar, uns e outros, dentro de uma mesma esfera de interesses. Assim, fazem vista grossa e ouvidos de
mercador, para não ter que enfrentar os espinhos e os dissabores de questões
graves e delicadas. O que faz nutrir a sanha do fascismo, do radicalismo, do
extremismo, quando não encontram um ponto final robusto no seu caminho.
Lá nos anos 2000, o senador Pedro
Simon, em certa entrevista, disse “Essa
escalada de denúncias retrata um país de ladrões impunes” 3. De modo que não há como negar que “Nada denuncia mais o grau de civilidade de
um país e de um povo do que o modo de tratar a coisa pública e a coletividade”
(Glória Kalil). Diante disso é que você entende porque “O Brasil não tem povo, tem público” (Lima Barreto).