Em
nome de Deus...
Por
Alessandra Leles Rocha
Ainda que as páginas da história
da humanidade estejam repletas de episódios terríveis marcados pela
justificativa do “Em nome de Deus”,
surpreende que tal práxis permaneça reafirmada, sem qualquer pudor ou
constrangimento. Aliás, observando com
extrema atenção, vejo nesse comportamento um viés tão imprevidentemente verborrágico,
que o indivíduo não se dá conta do abismo que separa seus discursos de suas
atitudes e se mostra contraditório em suas crenças, valores e princípios.
Daí, tentando entender os
mecanismos que têm amplificado esse processo, me deparei com certos pontos
interessantes. Apesar de a contemporaneidade pregar com todo afinco o
individualismo, os seres humanos têm estado cada vez mais ávidos pelo
pertencimento social, que é o que lhes garante visibilidade e potencial de
ostentação para suas hierarquias de consumo e de poder.
Assim, os nichos sociais, como é
o caso das igrejas ou templos religiosos, tornam-se extremamente importantes
para satisfazer a esse propósito. O que antes era motivado por uma fé genuína,
por um senso de religiosidade apurado, foi sim, substituído pelo sentimento de
uma agregação ideológica modulada por interesses mundanos.
Haja vista, o exemplo de cultos
destinados à doutrinação de corporações policiais, como tem acontecido em São
Paulo e amplamente divulgado pelos veículos de comunicação e de informação 1, tradicionais e alternativos. Algo que
fere, inclusive, o princípio do Estado laico brasileiro.
Aproveitando-se de toda uma
construção distópica da realidade, que vem sendo disseminada mundo afora, o
pretexto religioso cai como uma luva para manipular a sociedade em torno de uma
única voz, ao contrário de se deixarem confundir pelos ruídos que emergem de
tantos outros segmentos.
De certa forma, o que se vê é a
igreja, dentro de certas concepções e nomenclaturas, promovendo um resgate dos
seus áureos tempos de influência nos espaços de poder. Quando a igreja
desfrutava de uma fatia importante do controle social e da distribuição de bens
e riquezas.
Coincidência ou não, fato é que esse
contexto se assemelha muito a história contada por Margaret Atwood, em seu
livro “O conto da Aia” (1985), cuja
sociedade se torna teocrática, ou seja, o sistema de governança passa a ser
submetido às normas de certas religiões.
E isso é tão sério que, de
repente, se começa a deparar com discursos como o de um pastor que “Em nome de Deus” estimula fiéis a
matarem pessoas LGBTQIA+ 2 . Ora, e
a defesa da vida, onde é que fica? Veja como a irracionalidade tendenciosa e
oportunista dessa fala desconstrói a fundamentação religiosa, num piscar de
olhos.
No entanto, por pior que seja
esse exemplo, ele não é o primeiro e nem será o último, porque o desvirtuamento
da fé proposta por algumas denominações religiosas está acontecendo a passos
largos, em todo o mundo. Há uma clara tentativa, portanto, de homogeneização
social a fim de subordinar a população aos ditames impostos por grupos detentores
de poder, cada vez menores.
Para se manterem na posição de
superioridade hierárquica dentro da sociedade, eles não querem o dissabor de
competir com outras formas de ser, de pensar, de agir, de professar a fé;
então, eles rechaçam de todas as maneiras a presença das diferenças, das pluralidades.
Assim, eles criam um ideal de mundo que satisfaça aos seus interesses e que
possa ser justificado, ou minimamente amparado, pelos dogmas da religião.
Porém, como as ferramentas
empregadas para esse propósito são de natureza subjetiva, pois se trata das
estruturas de linguagem e comunicação, as consequências podem ser imprevisíveis.
Cada indivíduo tem um grau de sensibilidade, de afinidade, de receptividade às palavras,
diferente.
O que significa que a resposta
sempre vai depender do momento, das conjunturas, das emoções; mas,
especialmente, da intensidade e da frequência com a qual ele é exposto a esse
tipo de doutrinação. O seu nível de fé, de devoção, de entrega pode ser tão elevado
que ele se permite subverter a lógica, o bom senso, o equilíbrio, para agir
segundo o que lhe foi orientado.
E será que o mundo precisa disso? De mais violência? De mais ódio? De mais intolerância? Como escreveu Taylor Caldwell, “No dia em que permitirem que homens abomináveis tornem a confiscar-lhes a liberdade, o dinheiro, a vida, a propriedade, a hombridade, a honra sagrada em nome da ‘segurança’ ou da emergência nacional, vocês morrerão e nunca tornarão a ser livres. Pois lembrem-se, se morrerem na prisão, terão sido vocês a construí-las. ... O povo é sempre responsável por legisladores perversos, opressores, exploradores, criminosos, tiranos, ladrões, mentirosos, malfeitores e assassinos em toda parte do mundo. – Você, o homem da rua, o homem da fábrica e da loja, o homem do campo, do escritório, seja onde for, é culpado pelas criaturas que atentaram tão monstruosamente contra você, e tornarão a atentar, com o seu consentimento. Não clamem a Deus, se repetirem seus erros” 3. Cuidado, então, quando disser “Em nome Deus”!
1 https://noticias.uol.com.br/colunas/chico-alves/2023/06/25/reunioes-de-tropas-na-igreja-universal-sao-frequentes-diz-ex-pm-de-sp.htm
2 https://www.em.com.br/app/noticia/diversidade/2023/07/03/noticia-diversidade,1515595/pastor-mineiro-andre-valadao-incita-fieis-a-matarem-pessoas-lgbtqia.shtml
3 TAYLOR CALDWELL, J. M. H. A hora da verdade. Ed. Record, 1952.