terça-feira, 4 de julho de 2023

Em nome de Deus...


Em nome de Deus...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Ainda que as páginas da história da humanidade estejam repletas de episódios terríveis marcados pela justificativa do “Em nome de Deus”, surpreende que tal práxis permaneça reafirmada, sem qualquer pudor ou constrangimento.  Aliás, observando com extrema atenção, vejo nesse comportamento um viés tão imprevidentemente verborrágico, que o indivíduo não se dá conta do abismo que separa seus discursos de suas atitudes e se mostra contraditório em suas crenças, valores e princípios.

Daí, tentando entender os mecanismos que têm amplificado esse processo, me deparei com certos pontos interessantes. Apesar de a contemporaneidade pregar com todo afinco o individualismo, os seres humanos têm estado cada vez mais ávidos pelo pertencimento social, que é o que lhes garante visibilidade e potencial de ostentação para suas hierarquias de consumo e de poder.

Assim, os nichos sociais, como é o caso das igrejas ou templos religiosos, tornam-se extremamente importantes para satisfazer a esse propósito. O que antes era motivado por uma fé genuína, por um senso de religiosidade apurado, foi sim, substituído pelo sentimento de uma agregação ideológica modulada por interesses mundanos.

Haja vista, o exemplo de cultos destinados à doutrinação de corporações policiais, como tem acontecido em São Paulo e amplamente divulgado pelos veículos de comunicação e de informação 1, tradicionais e alternativos. Algo que fere, inclusive, o princípio do Estado laico brasileiro.

Aproveitando-se de toda uma construção distópica da realidade, que vem sendo disseminada mundo afora, o pretexto religioso cai como uma luva para manipular a sociedade em torno de uma única voz, ao contrário de se deixarem confundir pelos ruídos que emergem de tantos outros segmentos.

De certa forma, o que se vê é a igreja, dentro de certas concepções e nomenclaturas, promovendo um resgate dos seus áureos tempos de influência nos espaços de poder. Quando a igreja desfrutava de uma fatia importante do controle social e da distribuição de bens e riquezas.

Coincidência ou não, fato é que esse contexto se assemelha muito a história contada por Margaret Atwood, em seu livro “O conto da Aia” (1985), cuja sociedade se torna teocrática, ou seja, o sistema de governança passa a ser submetido às normas de certas religiões.

E isso é tão sério que, de repente, se começa a deparar com discursos como o de um pastor que “Em nome de Deus” estimula fiéis a matarem pessoas LGBTQIA+ 2 . Ora, e a defesa da vida, onde é que fica? Veja como a irracionalidade tendenciosa e oportunista dessa fala desconstrói a fundamentação religiosa, num piscar de olhos.

No entanto, por pior que seja esse exemplo, ele não é o primeiro e nem será o último, porque o desvirtuamento da fé proposta por algumas denominações religiosas está acontecendo a passos largos, em todo o mundo. Há uma clara tentativa, portanto, de homogeneização social a fim de subordinar a população aos ditames impostos por grupos detentores de poder, cada vez menores.

Para se manterem na posição de superioridade hierárquica dentro da sociedade, eles não querem o dissabor de competir com outras formas de ser, de pensar, de agir, de professar a fé; então, eles rechaçam de todas as maneiras a presença das diferenças, das pluralidades. Assim, eles criam um ideal de mundo que satisfaça aos seus interesses e que possa ser justificado, ou minimamente amparado, pelos dogmas da religião.  

Porém, como as ferramentas empregadas para esse propósito são de natureza subjetiva, pois se trata das estruturas de linguagem e comunicação, as consequências podem ser imprevisíveis. Cada indivíduo tem um grau de sensibilidade, de afinidade, de receptividade às palavras, diferente.

O que significa que a resposta sempre vai depender do momento, das conjunturas, das emoções; mas, especialmente, da intensidade e da frequência com a qual ele é exposto a esse tipo de doutrinação. O seu nível de fé, de devoção, de entrega pode ser tão elevado que ele se permite subverter a lógica, o bom senso, o equilíbrio, para agir segundo o que lhe foi orientado.

E será que o mundo precisa disso? De mais violência? De mais ódio? De mais intolerância? Como escreveu Taylor Caldwell, “No dia em que permitirem que homens abomináveis tornem a confiscar-lhes a liberdade, o dinheiro, a vida, a propriedade, a hombridade, a honra sagrada em nome da ‘segurança’ ou da emergência nacional, vocês morrerão e nunca tornarão a ser livres. Pois lembrem-se, se morrerem na prisão, terão sido vocês a construí-las. ... O povo é sempre responsável por legisladores perversos, opressores, exploradores, criminosos, tiranos, ladrões, mentirosos, malfeitores e assassinos em toda parte do mundo. – Você, o homem da rua, o homem da fábrica e da loja, o homem do campo, do escritório, seja onde for, é culpado pelas criaturas que atentaram tão monstruosamente contra você, e tornarão a atentar, com o seu consentimento. Não clamem a Deus, se repetirem seus erros” 3. Cuidado, então, quando disser “Em nome Deus”!