quarta-feira, 5 de julho de 2023

Onde estão as garantias???


Onde estão as garantias???

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Quando assistimos ao total despojamento de suas responsabilidades pelos seres humanos, na verdade, não paramos para observar quão mais profunda é a questão, do que simplesmente a abstenção de uma obrigação ou o lançamento dela sobre os ombros de terceiros. Pois é, por mais estarrecedor que possa parecer, o mundo contemporâneo criou um subterfúgio bastante exótico para escapar das consequências e desdobramentos de seus deveres e incumbências, o qual eu chamo de terceirização capital.  

Vou explicar. Muitos devem se lembrar do desabamento de um edifício de alto padrão, no Rio de Janeiro, em 1998, que não só vitimou 8 pessoas como arruinou a vida das famílias que ali residiam. As investigações, na época, apontaram para falhas estruturais gravíssimas, em uma flagrante irresponsabilidade da construtora. Acontece que esse é um exemplo apropriado para mostrar como a terceirização capital acontece despercebida, quase sorrateiramente no cotidiano social.

Infelizmente a sociedade de consumo costuma balizar as suas escolhas e decisões pelo dinheiro empregado para fazê-las e, por consequência imediata, deposita sua confiança integralmente em pessoas, as quais, na maioria das vezes, ela nem conhece. Assim, quem diria que um apartamento de alto padrão, cujo valor do metro quadrado era uma exorbitância, poderia cair de uma hora para outra? O preço pago lhes pareceu a garantia de que nenhuma excepcionalidade poderia acontecer. Mas, aconteceu. A terceirização capital falhou.

Daqui e dali as pessoas pagam por bens, produtos e serviços de maneira totalmente displicente aos cuidados que deveriam ter. Não leem contratos. Não leem manuais. Não se atentam a qualidade do produto. Não cumprem as visitas de inspeção, no caso de imóveis. Enfim, entregam seu sossego nas mãos do valor pago e de quem mais possa interessar. Até que o imprevisível cruze o seu caminho e altere a realidade prazerosa do consumo em tragédia que poderia ter sido evitada.

Uma verdade inconveniente, mas que está se tornando comum na dinâmica contemporânea. Sob o manto de argumentos como pressa, excesso de afazeres, impaciência e etc., as pessoas tentam contemporizar para si mesmas o risco voluntário que assumem ao se expor a esse movimento. Acontece que segurança e bem-estar não podem ser postergados. Há situações em que não permitem reparos, ajustes ou retornos. As pessoas que morreram no desabamento do edifício não tiveram uma segunda chance.

É esse tipo de situação que desconstrói a arrogância, a vaidade, a prepotência, de muita gente por aí. O fato de se pagar, por isso ou aquilo, não é sinônimo de garantia de coisa alguma. Se na outra ponta dessa história não existir alguém ético, responsável, cuidadoso, previdente, compromissado, você estará inevitavelmente vulnerável ao que possa acontecer. Um pequeno deslize, uma desatenção, um desconhecimento, ... é o suficiente para destruir ou obstaculizar a vida, os sonhos, as pretensões de alguém.  

Já se foi o tempo em que um fio de bigode, ou um diploma na parede, era razão suficiente para ficar em paz. Hoje, somos obrigados a ter o pé atrás com a própria sombra, dada a intensidade com que a terceirização capital deteriorou as relações sociais. Amontoando pelas prateleiras das instâncias judiciais, pilhas de processos em busca de ressarcimento e reparação, que se arrastam anos a fio até alcançar uma decisão final.

Basta uma olhada pelos veículos de comunicação e de informação para se ter uma breve ideia desse fenômeno. Sob diferentes formas, conteúdos, intensidades, os prejuízos causados pela terceirização capital se proliferam. O curioso é que, apesar disso, as pessoas permanecem não refutando essa práxis. Como se o sossego e a inação pudessem ser comprados no intuito de poupar tempo, poupar energia, poupar desgaste social, e ainda por cima, render uma pseudovisibilidade em relação ao status proporcionado pelo poder capital.

Portanto, algo que merece sim, uma profunda análise e reflexão, na medida em que expõe um modo de adoecimento ético da sociedade contemporânea. Uma visão, um tanto quanto assustadora, do tipo de relação que o ser humano vem tecendo consigo, com o outro e com as materialidades do mundo, o que inclui o consumo e o capital. Afinal, não diz respeito só ao macro, mas ao micro do universo cotidiano, transitando desde questões simples até aquelas extremamente complexas.  

E quando me coloco a tecer minhas considerações a esse respeito, sempre me recordo de uma citação de Carlos Drummond de Andrade, muito interessante, que diz “O cofre do banco contém apenas dinheiro. Frustrar-se-á quem pensar que nele encontrará riqueza”. Não é à toa que a sociedade contemporânea, ao atribuir importâncias, significados e significâncias de maneira inadvertida, perde a capacidade de gerir efetivamente a própria vida, tornando-se vulnerável ao insólito.