Onde
estão as garantias???
Por
Alessandra Leles Rocha
Quando assistimos ao total
despojamento de suas responsabilidades pelos seres humanos, na verdade, não
paramos para observar quão mais profunda é a questão, do que simplesmente a
abstenção de uma obrigação ou o lançamento dela sobre os ombros de terceiros. Pois
é, por mais estarrecedor que possa parecer, o mundo contemporâneo criou um
subterfúgio bastante exótico para escapar das consequências e desdobramentos de
seus deveres e incumbências, o qual eu chamo de terceirização capital.
Vou explicar. Muitos devem se
lembrar do desabamento de um edifício de alto padrão, no Rio de Janeiro, em
1998, que não só vitimou 8 pessoas como arruinou a vida das famílias que ali
residiam. As investigações, na época, apontaram para falhas estruturais gravíssimas,
em uma flagrante irresponsabilidade da construtora. Acontece que esse é um
exemplo apropriado para mostrar como a terceirização capital acontece
despercebida, quase sorrateiramente no cotidiano social.
Infelizmente a sociedade de
consumo costuma balizar as suas escolhas e decisões pelo dinheiro empregado
para fazê-las e, por consequência imediata, deposita sua confiança
integralmente em pessoas, as quais, na maioria das vezes, ela nem conhece.
Assim, quem diria que um apartamento de alto padrão, cujo valor do metro
quadrado era uma exorbitância, poderia cair de uma hora para outra? O preço
pago lhes pareceu a garantia de que nenhuma excepcionalidade poderia acontecer.
Mas, aconteceu. A terceirização capital falhou.
Daqui e dali as pessoas pagam por
bens, produtos e serviços de maneira totalmente displicente aos cuidados que
deveriam ter. Não leem contratos. Não leem manuais. Não se atentam a qualidade
do produto. Não cumprem as visitas de inspeção, no caso de imóveis. Enfim,
entregam seu sossego nas mãos do valor pago e de quem mais possa interessar. Até
que o imprevisível cruze o seu caminho e altere a realidade prazerosa do
consumo em tragédia que poderia ter sido evitada.
Uma verdade inconveniente, mas
que está se tornando comum na dinâmica contemporânea. Sob o manto de argumentos
como pressa, excesso de afazeres, impaciência e etc., as pessoas tentam
contemporizar para si mesmas o risco voluntário que assumem ao se expor a esse
movimento. Acontece que segurança e bem-estar não podem ser postergados. Há situações
em que não permitem reparos, ajustes ou retornos. As pessoas que morreram no
desabamento do edifício não tiveram uma segunda chance.
É esse tipo de situação que desconstrói
a arrogância, a vaidade, a prepotência, de muita gente por aí. O fato de se pagar,
por isso ou aquilo, não é sinônimo de garantia de coisa alguma. Se na outra
ponta dessa história não existir alguém ético, responsável, cuidadoso,
previdente, compromissado, você estará inevitavelmente vulnerável ao que possa
acontecer. Um pequeno deslize, uma desatenção, um desconhecimento, ... é o
suficiente para destruir ou obstaculizar a vida, os sonhos, as pretensões de
alguém.
Já se foi o tempo em que um fio
de bigode, ou um diploma na parede, era razão suficiente para ficar em paz.
Hoje, somos obrigados a ter o pé atrás com a própria sombra, dada a intensidade
com que a terceirização capital deteriorou as relações sociais. Amontoando
pelas prateleiras das instâncias judiciais, pilhas de processos em busca de
ressarcimento e reparação, que se arrastam anos a fio até alcançar uma decisão
final.
Basta uma olhada pelos veículos de
comunicação e de informação para se ter uma breve ideia desse fenômeno. Sob
diferentes formas, conteúdos, intensidades, os prejuízos causados pela
terceirização capital se proliferam. O curioso é que, apesar disso, as pessoas
permanecem não refutando essa práxis. Como se o sossego e a inação pudessem ser
comprados no intuito de poupar tempo, poupar energia, poupar desgaste social, e
ainda por cima, render uma pseudovisibilidade em relação ao status
proporcionado pelo poder capital.
Portanto, algo que merece sim,
uma profunda análise e reflexão, na medida em que expõe um modo de adoecimento
ético da sociedade contemporânea. Uma visão, um tanto quanto assustadora, do
tipo de relação que o ser humano vem tecendo consigo, com o outro e com as
materialidades do mundo, o que inclui o consumo e o capital. Afinal, não diz
respeito só ao macro, mas ao micro do universo cotidiano, transitando desde
questões simples até aquelas extremamente complexas.
E quando me coloco a tecer minhas considerações a esse respeito, sempre me recordo de uma citação de Carlos Drummond de Andrade, muito interessante, que diz “O cofre do banco contém apenas dinheiro. Frustrar-se-á quem pensar que nele encontrará riqueza”. Não é à toa que a sociedade contemporânea, ao atribuir importâncias, significados e significâncias de maneira inadvertida, perde a capacidade de gerir efetivamente a própria vida, tornando-se vulnerável ao insólito.