As
tormentas da Caravela
Por
Alessandra Leles Rocha
Parafraseando Hemingway, Lisboa é
uma festa 1. Afinal, o que trouxeram as manchetes
nacionais sobre um evento, em tese, de caráter jurídico ocorrido na capital
portuguesa 2, na última semana, tem
algo de semelhante e até, de certa forma, biográfico que coaduna com a célebre
obra “Paris é uma festa” 3 do referido escritor norte-americano.
Devo dizer que as notícias em si não
me surpreenderam. O que causou espanto foi a hábil estratégia de um evento de
natureza forense para ofuscar a intimidade dos bastidores entre figuras que
deveriam, pela ética profissional e institucional, manter apenas a cordialidade
e o respeito do protocolo social. Mas, talvez, esse tenha sido o grande
deslize.
Como já discuti em outros textos,
a natureza direitista brasileira remonta das suas raízes coloniais, das elites
das Casa Grandes que sempre detiveram os poderes sociais nas mãos, podendo
assim, definir os rumos do país segundo seus desejos e interesses pessoais. Por
essa razão secular, a presença da Direita, em todo os seus matizes, acabou
incorporada e, lamentavelmente, naturalizada no país, dando a falsa impressão
de que a organização social, política e econômica refletia a mais plena
harmonia.
Aliás, era frequente ouvir que no
Brasil não havia racismo. Que o brasileiro era um povo feliz e sem
preconceitos. Que o brasileiro era afável e cordial com os estrangeiros. Enfim...
coisas do gênero! Como se tais discursos não estivessem construídos sob vieses distorcidos
e barbaramente equivocados; mas, que permaneciam sendo reafirmados e
legitimados por uma força invisivelmente manipuladora fomentada pelo
conservadorismo direitista.
E a Direita, de fato, acreditava
que tudo transcorreria dessa maneira para sempre. Mas, como já dizia a Legião
Urbana, “[...] o pra sempre / sempre
acaba [...]” 4. Eis que, um belo dia, o
inesperado aconteceu, ou seja, a esquerda rompeu a bolha, venceu a eleição e chegou
ao poder. Subverteram a lógica e mostraram que o país poderia seguir por outros
caminhos, por outras ideias, por outras perspectivas.
Acontece que essa novidade foi
demasiadamente indigerível para muita gente, que viu a sua zona de conforto, as
suas regalias e privilégios, sob ameaça de deixarem de existir. De modo que a
Direita, em todos os seus matizes, se colocou sob um viés opositor que lhe era
mais adequado e menos impositivo, considerando o fato do país saber sobre a sua
participação no mais simbolicamente degradante episódio que afastou a
democracia do cenário nacional.
Então, optaram pelo verniz da
construção retórica desqualificante promovida por uma justiça de araque para afastar
a Esquerda do poder e impedir quaisquer pretensões de voltar. De modo que
usando desse estratagema, por vias democráticas, retomaram o poder; mas, mostraram-se
ainda mais ávidos nas suas obstinações narcísicas e surrealistas.
Tinham, até aquele momento, uma
certeza absoluta de que o plano era infalível. Só que não. Talvez, pelos
excessos nutridos por suas convicções e idealizações delirantes, de repente, a
Lava Jato ruiu. Os reis ficaram nus. As manhas e as artimanhas vieram à tona. As
máscaras caíram ao chão e as personagens foram lentamente sendo identificadas.
Não havia mais como negar quem
era quem na história. Os acontecimentos separaram, literalmente, o joio do
trigo. Agora, todos sabem quem é a Direita, quem faz parte dela, quem
simpatiza, quem financia, quem a fundamenta ideologicamente, ... Perdeu-se a
razão do disfarce, da dissimulação, da ocultação. Com as cartas na mesa o
constrangimento, o pudor, a vergonha, saíram pela janela.
Por isso, o tal evento, conforme
trazem os veículos de informação, pode dizer que reuniu a fina flor da Direita
brasileira em solo português. Haja vista a lista dos participantes. Freud diria
que há algo no inconsciente identitário dessas pessoas que lhes fez resgatar os
tempos coloniais, quem sabe os saraus da Corte, as reuniões políticas das elites,
a ratificação amistosa dos apoios, ... tudo com muita pompa e circunstância,
como nos tempos do Imperador. Verdades que certamente nos chegarão ao conhecimento,
em algum momento, ofertadas gota a gota. É só esperar!
Sim, porque o que os levou à
Lisboa não está no fato em si. Seria muita ingenuidade acreditar que por puro
aprimoramento acadêmico, no campo jurídico, esses indivíduos de contextos cotidianos
tão diferentes, plurais, se moveriam além-mar. Tampouco seria para ampliar os
laços diplomáticos e comerciais no cenário internacional. Por trás dos
sorrisos, dos cumprimentos, dos brindes, dos flashes, há um ponto comum que os
agrega, ou seja, a Direita e seus interesses, suas intenções, seus objetivos,
seus poderes. Sinal de que o desconforto está a incomodá-los mais uma vez. E
isso merece muita atenção.
3 Ernest Hemingway.
A Moveable Feast (1964).
4 Por Enquanto (Legião Urbana) - https://www.letras.mus.br/legiao-urbana/46970/