segunda-feira, 3 de julho de 2023

As tormentas da Caravela


As tormentas da Caravela

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Parafraseando Hemingway, Lisboa é uma festa 1. Afinal, o que trouxeram as manchetes nacionais sobre um evento, em tese, de caráter jurídico ocorrido na capital portuguesa 2, na última semana, tem algo de semelhante e até, de certa forma, biográfico que coaduna com a célebre obra “Paris é uma festa” 3 do referido escritor norte-americano.

Devo dizer que as notícias em si não me surpreenderam. O que causou espanto foi a hábil estratégia de um evento de natureza forense para ofuscar a intimidade dos bastidores entre figuras que deveriam, pela ética profissional e institucional, manter apenas a cordialidade e o respeito do protocolo social. Mas, talvez, esse tenha sido o grande deslize.

Como já discuti em outros textos, a natureza direitista brasileira remonta das suas raízes coloniais, das elites das Casa Grandes que sempre detiveram os poderes sociais nas mãos, podendo assim, definir os rumos do país segundo seus desejos e interesses pessoais. Por essa razão secular, a presença da Direita, em todo os seus matizes, acabou incorporada e, lamentavelmente, naturalizada no país, dando a falsa impressão de que a organização social, política e econômica refletia a mais plena harmonia.

Aliás, era frequente ouvir que no Brasil não havia racismo. Que o brasileiro era um povo feliz e sem preconceitos. Que o brasileiro era afável e cordial com os estrangeiros. Enfim... coisas do gênero! Como se tais discursos não estivessem construídos sob vieses distorcidos e barbaramente equivocados; mas, que permaneciam sendo reafirmados e legitimados por uma força invisivelmente manipuladora fomentada pelo conservadorismo direitista.  

E a Direita, de fato, acreditava que tudo transcorreria dessa maneira para sempre. Mas, como já dizia a Legião Urbana, “[...] o pra sempre / sempre acaba [...]” 4. Eis que, um belo dia, o inesperado aconteceu, ou seja, a esquerda rompeu a bolha, venceu a eleição e chegou ao poder. Subverteram a lógica e mostraram que o país poderia seguir por outros caminhos, por outras ideias, por outras perspectivas.

Acontece que essa novidade foi demasiadamente indigerível para muita gente, que viu a sua zona de conforto, as suas regalias e privilégios, sob ameaça de deixarem de existir. De modo que a Direita, em todos os seus matizes, se colocou sob um viés opositor que lhe era mais adequado e menos impositivo, considerando o fato do país saber sobre a sua participação no mais simbolicamente degradante episódio que afastou a democracia do cenário nacional.

Então, optaram pelo verniz da construção retórica desqualificante promovida por uma justiça de araque para afastar a Esquerda do poder e impedir quaisquer pretensões de voltar. De modo que usando desse estratagema, por vias democráticas, retomaram o poder; mas, mostraram-se ainda mais ávidos nas suas obstinações narcísicas e surrealistas.

Tinham, até aquele momento, uma certeza absoluta de que o plano era infalível. Só que não. Talvez, pelos excessos nutridos por suas convicções e idealizações delirantes, de repente, a Lava Jato ruiu. Os reis ficaram nus. As manhas e as artimanhas vieram à tona. As máscaras caíram ao chão e as personagens foram lentamente sendo identificadas.   

Não havia mais como negar quem era quem na história. Os acontecimentos separaram, literalmente, o joio do trigo. Agora, todos sabem quem é a Direita, quem faz parte dela, quem simpatiza, quem financia, quem a fundamenta ideologicamente, ... Perdeu-se a razão do disfarce, da dissimulação, da ocultação. Com as cartas na mesa o constrangimento, o pudor, a vergonha, saíram pela janela.

Por isso, o tal evento, conforme trazem os veículos de informação, pode dizer que reuniu a fina flor da Direita brasileira em solo português. Haja vista a lista dos participantes. Freud diria que há algo no inconsciente identitário dessas pessoas que lhes fez resgatar os tempos coloniais, quem sabe os saraus da Corte, as reuniões políticas das elites, a ratificação amistosa dos apoios, ... tudo com muita pompa e circunstância, como nos tempos do Imperador. Verdades que certamente nos chegarão ao conhecimento, em algum momento, ofertadas gota a gota. É só esperar!

Sim, porque o que os levou à Lisboa não está no fato em si. Seria muita ingenuidade acreditar que por puro aprimoramento acadêmico, no campo jurídico, esses indivíduos de contextos cotidianos tão diferentes, plurais, se moveriam além-mar. Tampouco seria para ampliar os laços diplomáticos e comerciais no cenário internacional. Por trás dos sorrisos, dos cumprimentos, dos brindes, dos flashes, há um ponto comum que os agrega, ou seja, a Direita e seus interesses, suas intenções, seus objetivos, seus poderes. Sinal de que o desconforto está a incomodá-los mais uma vez. E isso merece muita atenção.