Dedos
em riste ... Assim começa a inquisição contemporânea.
Por
Alessandra Leles Rocha
A efervescência de certos
assuntos na contemporaneidade acaba nos conduzindo a um mergulho reflexivo,
mais profundo, na busca por encontrar uma justificativa que faça sentido. E o
exemplo da vez é a homofobia/transfobia, tendo em vista o fato de que, de
repente, essa questão emerge pelo caminho que poderia ser considerado o menos
provável, ou seja, a religião. Vejam só! Daí a necessidade de entender onde tudo isso
se encontra na perspectiva histórica atual.
Não imagino que alguém possa
desconhecer o movimento teocrático que vem se disseminando pelo mundo, com
farto apoio das pautas conservadoras da Direita e de seus matizes; sobretudo,
os mais radicais e extremistas. O que significa um importante viés de consolidação
de poder, na medida em que um sistema de governo teocrático legitima suas ações
políticas, jurídicas e policiais através dos dogmas e fundamentos de uma
religião.
Portanto, trata-se de algo muito
forte, impactante, considerando a importância que as religiões desempenham na
construção social, sob as mais diversas formas e conteúdos. A expressão da
religiosidade, da crença, da fé, está intimamente relacionada ao mais profundo
da subjetividade humana, o que explica a dimensão da pluralidade dessa manifestação
pelas pessoas. Afinal, cada um entende, sente, percebe, traduz esses valores,
sentimentos e emoções, de maneira muito particular, ainda que, dentro de um
determinado recorte religioso coletivo.
Sendo assim, vejamos que a
teocracia não é, então, nenhuma novidade na história da humanidade. Exemplos sobre
ela, em suas diferentes demonstrações, estão aí para apreciação e críticas.
Mas, há um detalhe importante, considerando o cenário contemporâneo, que me
parece ser a guia que poderá nos conduzir ao entendimento em relação a
exacerbação da homofobia/transfobia por alguns segmentos religiosos.
Quando surgem no horizonte, as
novidades sempre cumprem papéis importantes nas relações sociais do mundo. Não
foi diferente, então, com a Revolução Industrial que, inclusive, emergiu por
força das necessidades político-econômicas de controle e vigilância social após
o impacto retumbante da Revolução Francesa, a qual certamente desencadearia a
inspiração para uma reverberação continental do movimento liderado pelas massas
populares.
Então, a Revolução Industrial acontece
não só para ampliar o enriquecimento da classe burguesa em ascensão; mas,
particularmente, para ocupar as mentes e os braços das camadas populares, a
partir de jornadas extenuantes, insalubres e mal remuneradas, impedindo que
tivessem ânimo e força para lutar por seus direitos sociais e dignidade, ou
seja, que se insurgissem contra as elites dominantes. E a princípio a ideia
funcionou.
Mas, dada a impulsividade de
ousadia do processo revolucionário industrial, os avanços da tecnização foram
determinantes para demandar cada vez menos da mão de obra humana, formando-se,
então, legiões de desempregados, desalentados e trabalhadores informais. Por outro
lado, o próprio processo produtivo voltou-se para um verdadeiro assombro da
criação científica e tecnológica que colocou a sociedade em uma posição de acessibilidade
de informações e conhecimentos, jamais pensada.
Repetindo a história, lá estavam
as camadas populares escapulindo entre os dedos das elites dominantes. Porém,
dessa vez, modeladas pelas forças da própria ciência e tecnologia traduzidas na
materialidade dos bens, produtos e serviços oferecidos pelas recentes fases da
Revolução Industrial. O que significa que os hábitos, os comportamentos, as
ideologias, as identidades, as culturas, tudo foi impactado por essa onda progressista
devastadora que as próprias elites se permitiram criar.
Assim, diante do assombro dessa
realidade social contemporânea tornou-se imperioso encontrar mecanismos para
conter a fúria dessa metamorfose social. Tamanho individualismo, egoísmo,
narcisismo, não trouxe à baila somente a sua definição básica. Trouxe um senso
de liberdade sem limites para todos os campos da existência humana, o que torna
as pessoas muito menos aptas a aceitar limites, regras, controles, vigilância, subordinação,
...
Como escreveu o sociólogo Zygmunt
Bauman, “os grupos de amigos ou as
comunidades de bairro não te aceitam sem dar razão, mas ser membro de um grupo
no Facebook é facílimo. Você pode ter mais de 500 contatos sem sair de casa, você
aperta um botão e pronto” 1.
Portanto, a sociedade percebeu
que não precisava perder a sua liberdade incondicional para pertencer, seja em
que situação fosse. Nesse contexto, então, todas as minorias sociais, incluindo
os LGBTQIA+, passaram a se aglutinar, a se organizar, a se fortalecer, em nome
das suas ideias, crenças, valores, princípios, sem ao menos precisar compatibilizá-las
com o tempo e o espaço geográfico.
De repente, as minorias vieram
gradualmente conseguindo romper alguns grilhões da opressão, do controle e da vigilância
social que não só lhes eram impostos; mas, visavam objetivamente mantê-las à
margem, segregadas, invisibilizadas. Diante disso, as elites dominantes, poupando
tempo e ideias, buscaram nas próprias páginas da história o antídoto para o
problema, ou seja, a teocracia.
Emergiram daí, então, as pautas
conservadoras da Direita e de seus matizes; sobretudo, os mais radicais e
extremistas, que se disseminaram como rastilhos de pólvora pelo planeta. Recrudescidas,
é óbvio, pelo apoio de certas correntes religiosas que vinham observando um
distanciamento e um abandono por parte de seus seguidores e simpatizantes. Entende,
agora, essa engenharia da expansão do projeto teocrático em países como o
Brasil e os EUA, por exemplo?
Ora, apesar de todos os esforços pela
liberdade, ela, no fundo, ainda permanece um sentimento menor e acanhado diante
do medo de tudo o que mexe e remexe intimamente com a subjetividade humana. E
como escreveu Zygmunt Bauman, “Um medo
genuína e irremediavelmente insustentável é o da invencibilidade do mal” 2. E é nesse temor que certas religiões
encontram o espaço, o grande filão, para persuadir e implantar a sua base teocrática,
fazendo com que seus fiéis e discípulos acabem, inadvertidamente, trocando a
sua árdua conquista pela liberdade em nome de uma pseudossegurança. Haja vista,
por exemplo, a recente pesquisa, realizada no Brasil, que apontou 52% dos
entrevistados temerários em relação ao país se tornar comunista 3.