sábado, 8 de julho de 2023

Dedos em riste ... Assim começa a inquisição contemporânea.


Dedos em riste ... Assim começa a inquisição contemporânea.

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A efervescência de certos assuntos na contemporaneidade acaba nos conduzindo a um mergulho reflexivo, mais profundo, na busca por encontrar uma justificativa que faça sentido. E o exemplo da vez é a homofobia/transfobia, tendo em vista o fato de que, de repente, essa questão emerge pelo caminho que poderia ser considerado o menos provável, ou seja, a religião. Vejam só!  Daí a necessidade de entender onde tudo isso se encontra na perspectiva histórica atual.

Não imagino que alguém possa desconhecer o movimento teocrático que vem se disseminando pelo mundo, com farto apoio das pautas conservadoras da Direita e de seus matizes; sobretudo, os mais radicais e extremistas. O que significa um importante viés de consolidação de poder, na medida em que um sistema de governo teocrático legitima suas ações políticas, jurídicas e policiais através dos dogmas e fundamentos de uma religião.

Portanto, trata-se de algo muito forte, impactante, considerando a importância que as religiões desempenham na construção social, sob as mais diversas formas e conteúdos. A expressão da religiosidade, da crença, da fé, está intimamente relacionada ao mais profundo da subjetividade humana, o que explica a dimensão da pluralidade dessa manifestação pelas pessoas. Afinal, cada um entende, sente, percebe, traduz esses valores, sentimentos e emoções, de maneira muito particular, ainda que, dentro de um determinado recorte religioso coletivo.

Sendo assim, vejamos que a teocracia não é, então, nenhuma novidade na história da humanidade. Exemplos sobre ela, em suas diferentes demonstrações, estão aí para apreciação e críticas. Mas, há um detalhe importante, considerando o cenário contemporâneo, que me parece ser a guia que poderá nos conduzir ao entendimento em relação a exacerbação da homofobia/transfobia por alguns segmentos religiosos.

Quando surgem no horizonte, as novidades sempre cumprem papéis importantes nas relações sociais do mundo. Não foi diferente, então, com a Revolução Industrial que, inclusive, emergiu por força das necessidades político-econômicas de controle e vigilância social após o impacto retumbante da Revolução Francesa, a qual certamente desencadearia a inspiração para uma reverberação continental do movimento liderado pelas massas populares.

Então, a Revolução Industrial acontece não só para ampliar o enriquecimento da classe burguesa em ascensão; mas, particularmente, para ocupar as mentes e os braços das camadas populares, a partir de jornadas extenuantes, insalubres e mal remuneradas, impedindo que tivessem ânimo e força para lutar por seus direitos sociais e dignidade, ou seja, que se insurgissem contra as elites dominantes. E a princípio a ideia funcionou.

Mas, dada a impulsividade de ousadia do processo revolucionário industrial, os avanços da tecnização foram determinantes para demandar cada vez menos da mão de obra humana, formando-se, então, legiões de desempregados, desalentados e trabalhadores informais. Por outro lado, o próprio processo produtivo voltou-se para um verdadeiro assombro da criação científica e tecnológica que colocou a sociedade em uma posição de acessibilidade de informações e conhecimentos, jamais pensada.

Repetindo a história, lá estavam as camadas populares escapulindo entre os dedos das elites dominantes. Porém, dessa vez, modeladas pelas forças da própria ciência e tecnologia traduzidas na materialidade dos bens, produtos e serviços oferecidos pelas recentes fases da Revolução Industrial. O que significa que os hábitos, os comportamentos, as ideologias, as identidades, as culturas, tudo foi impactado por essa onda progressista devastadora que as próprias elites se permitiram criar.

Assim, diante do assombro dessa realidade social contemporânea tornou-se imperioso encontrar mecanismos para conter a fúria dessa metamorfose social. Tamanho individualismo, egoísmo, narcisismo, não trouxe à baila somente a sua definição básica. Trouxe um senso de liberdade sem limites para todos os campos da existência humana, o que torna as pessoas muito menos aptas a aceitar limites, regras, controles, vigilância, subordinação, ...

Como escreveu o sociólogo Zygmunt Bauman, “os grupos de amigos ou as comunidades de bairro não te aceitam sem dar razão, mas ser membro de um grupo no Facebook é facílimo. Você pode ter mais de 500 contatos sem sair de casa, você aperta um botão e pronto” 1.

Portanto, a sociedade percebeu que não precisava perder a sua liberdade incondicional para pertencer, seja em que situação fosse. Nesse contexto, então, todas as minorias sociais, incluindo os LGBTQIA+, passaram a se aglutinar, a se organizar, a se fortalecer, em nome das suas ideias, crenças, valores, princípios, sem ao menos precisar compatibilizá-las com o tempo e o espaço geográfico.  

De repente, as minorias vieram gradualmente conseguindo romper alguns grilhões da opressão, do controle e da vigilância social que não só lhes eram impostos; mas, visavam objetivamente mantê-las à margem, segregadas, invisibilizadas. Diante disso, as elites dominantes, poupando tempo e ideias, buscaram nas próprias páginas da história o antídoto para o problema, ou seja, a teocracia.

Emergiram daí, então, as pautas conservadoras da Direita e de seus matizes; sobretudo, os mais radicais e extremistas, que se disseminaram como rastilhos de pólvora pelo planeta. Recrudescidas, é óbvio, pelo apoio de certas correntes religiosas que vinham observando um distanciamento e um abandono por parte de seus seguidores e simpatizantes. Entende, agora, essa engenharia da expansão do projeto teocrático em países como o Brasil e os EUA, por exemplo?

Ora, apesar de todos os esforços pela liberdade, ela, no fundo, ainda permanece um sentimento menor e acanhado diante do medo de tudo o que mexe e remexe intimamente com a subjetividade humana. E como escreveu Zygmunt Bauman, “Um medo genuína e irremediavelmente insustentável é o da invencibilidade do mal” 2. E é nesse temor que certas religiões encontram o espaço, o grande filão, para persuadir e implantar a sua base teocrática, fazendo com que seus fiéis e discípulos acabem, inadvertidamente, trocando a sua árdua conquista pela liberdade em nome de uma pseudossegurança. Haja vista, por exemplo, a recente pesquisa, realizada no Brasil, que apontou 52% dos entrevistados temerários em relação ao país se tornar comunista 3.