Comparando
o incomparável
Por
Alessandra Leles Rocha
Um deputado, em evento apoiado
pela indústria armamentista, comparou professores “doutrinadores” à traficantes 1.
No entanto, até o momento, não vi nos veículos de informação e comunicação,
tradicionais ou alternativos, uma manifestação de repúdio de toda a
coletividade docente a respeito.
Bem, não há nada, absolutamente
nada, que escape ao rótulo do absurdo repugnante nesse acontecimento; mas, é
preciso pontuar os aspectos fundamentais para compreender a dimensão desse
terreno movediço que tenta capturar o país.
Já faz tempo que o desprezo pela
classe docente se faz presente na realidade brasileira. Sem grandes surpresas, o
movimento de depreciação e desvalorização do professorado coincide com os Anos
de Chumbo, quando as figuras de formação intelectual foram lançadas ao rol de
ameaças de subversão e silenciadas de diferentes maneiras.
Antes dessas duas décadas de
total obscurantismo educacional, os docentes pertenciam ao rol de importância e
de profunda respeitabilidade social. Mas, como o governo precisava controlar e
vigiar o cidadão, em nome da sua concepção de ordem e de progresso, disciplinas
foram subtraídas da grade curricular, outras acrescidas, materiais didáticos
foram revisados e reescritos, e, do ponto de vista da carreira docente, houve
um flagrante desestímulo aos que porventura se interessassem em seguir o
caminho.
No entanto, apesar de a
Democracia ter sido reestabelecida no país, esse cenário educacional já havia
se cristalizado no campo político-partidário. De certo modo a precarização da
atividade docente mostrou-se uma estratégia importante aos gestores públicos,
no sentido de estabelecer uma sociedade constituída por uma frágil e estreita
visão crítico-reflexiva sobre os caminhos do país, ou seja, ela não teria êxito
no seu papel contestador, opositor ou reivindicador.
E tamanho desestímulo no setor,
advindo das próprias políticas públicas, agregado por outras variáveis sociais
importantes, tais como a violência, a ingerência de terceiros nas práxis didático-pedagógicas
e a tecnologização contemporânea, vem refletindo cada vez menos interesse dos
jovens pela carreira docente no país.
Portanto, não foi por acaso a
escolha do professor para essa fala abjeta e criminosa. Acontece que a necessidade
de reafirmar a desimportância dada à Educação no país, mostrou-se ainda mais abissal,
quando o deputado ao tentar comparar professores “doutrinadores” e traficantes
incorreu no erro de estabelecer uma falsa equivalência.
Ora, a figura do traficante é um
ente tipificado pela lei n.º 11.343/06 2,
ou seja, existe no contexto social. Agora, professor “doutrinador” não é uma
tipificação válida no contexto social, porque se trata simplesmente de uma
opinião, de uma percepção, atribuída por terceiros e motivada por razões de divergência
ideológica.
Ao trazer a luz o debate, a
discussão, a reflexão, o contraditório, para uma sala de aula, nenhum professor
comete crime. A não ser que esteja fazendo, de fato, apologia de assuntos já criminalmente
tipificados pela legislação nacional, como é caso do nazismo, por exemplo. Porque
o papel de qualquer, bom professor, é materializar a compreensão de que “o principal objetivo da educação é criar
pessoas capazes de fazer coisas novas e não simplesmente repetir o que outras
gerações fizeram” (Jean Piaget – biólogo, psicólogo e epistemólogo suíço).
Mas, feita essa explanação sobre
a referida comparação, então, qual a verdadeira razão submersa nessa
depreciação do professor? Elementar, caro (a) leitor (a)! Fomentar o ódio
contra alguém que esteja em franca desvantagem social, quando se olha do ponto
de vista da corrida armamentista. Afinal, a única arma do ambiente escolar é a
educação.
Lamento, mas não é só fruto da
desimportância dada a classe! Considerando que o maior contingente de
professores no país é do sexo feminino 3,
há uma misoginia flagrante impressa nesse episódio. Eles querem alvos
visivelmente vulneráveis para desferir o seu desprezo em uma demonstração de poder
bélico. E com tantos exemplos recentes de violência em escolas, a ideia cai
como uma luva.
No entanto, isso ainda não é
tudo! Estimular o ódio contra professores significa também fomentar o
questionamento sobre a escola brasileira e perguntar se vale a pena continuar
investindo no modelo que se tem. Com todas as suas inconsistências,
precariedades, impossibilidades, enfim.
Aliás, a Direita e seus matizes
trouxeram à tona o debate, por exemplo, da aprovação do homeschooling 4, no país.
Sem contar que, ao tornar o ambiente escolar tensionado pelo medo da violência,
se estabelece uma rotina de insegurança constante que afugenta e amplia, cada
vez mais, a evasão escolar docente e discente.
Diante disso, confesso que é sempre
muito triste ter que exercitar reflexões tão amargas. Mas, apesar dessa breve
melancolia, lembrei-me da sabedoria de Rubem Alves, quando escreveu que “Ensinar é um exercício de imortalidade. De alguma
forma continuamos a viver naqueles cujos olhos aprenderam a ver o mundo pela
magia da nossa palavra. O professor, assim, não morre jamais...” . Ainda
que ressalvadas as suas diferenças em nossa lembrança, ou seja, “O professor medíocre conta. O bom professor
explica. O professor superior demonstra. O grande professor inspira” (William
A. Ward).
1 https://www.cartacapital.com.br/cartaexpressa/eduardo-bolsonaro-compara-professores-doutrinadores-a-traficantes/
2 Institui o
Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – Sisnad e dá outras
providências. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm
3 ROCHA, A. L.; OLIVEIRA, M. M. C. A feminização e a docência: Uma reflexão com base nas pesquisas em
Educação a partir do século XXI no Brasil. Revista Olhares e Trilhas, v.19,
p.38-53, 2017. https://seer.ufu.br/index.php/olharesetrilhas/article/view/31720