segunda-feira, 10 de julho de 2023

Comparando o incomparável


Comparando o incomparável

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Um deputado, em evento apoiado pela indústria armamentista, comparou professores “doutrinadores” à traficantes 1. No entanto, até o momento, não vi nos veículos de informação e comunicação, tradicionais ou alternativos, uma manifestação de repúdio de toda a coletividade docente a respeito.

Bem, não há nada, absolutamente nada, que escape ao rótulo do absurdo repugnante nesse acontecimento; mas, é preciso pontuar os aspectos fundamentais para compreender a dimensão desse terreno movediço que tenta capturar o país.

Já faz tempo que o desprezo pela classe docente se faz presente na realidade brasileira. Sem grandes surpresas, o movimento de depreciação e desvalorização do professorado coincide com os Anos de Chumbo, quando as figuras de formação intelectual foram lançadas ao rol de ameaças de subversão e silenciadas de diferentes maneiras.

Antes dessas duas décadas de total obscurantismo educacional, os docentes pertenciam ao rol de importância e de profunda respeitabilidade social. Mas, como o governo precisava controlar e vigiar o cidadão, em nome da sua concepção de ordem e de progresso, disciplinas foram subtraídas da grade curricular, outras acrescidas, materiais didáticos foram revisados e reescritos, e, do ponto de vista da carreira docente, houve um flagrante desestímulo aos que porventura se interessassem em seguir o caminho.

No entanto, apesar de a Democracia ter sido reestabelecida no país, esse cenário educacional já havia se cristalizado no campo político-partidário. De certo modo a precarização da atividade docente mostrou-se uma estratégia importante aos gestores públicos, no sentido de estabelecer uma sociedade constituída por uma frágil e estreita visão crítico-reflexiva sobre os caminhos do país, ou seja, ela não teria êxito no seu papel contestador, opositor ou reivindicador.

E tamanho desestímulo no setor, advindo das próprias políticas públicas, agregado por outras variáveis sociais importantes, tais como a violência, a ingerência de terceiros nas práxis didático-pedagógicas e a tecnologização contemporânea, vem refletindo cada vez menos interesse dos jovens pela carreira docente no país.

Portanto, não foi por acaso a escolha do professor para essa fala abjeta e criminosa. Acontece que a necessidade de reafirmar a desimportância dada à Educação no país, mostrou-se ainda mais abissal, quando o deputado ao tentar comparar professores “doutrinadores” e traficantes incorreu no erro de estabelecer uma falsa equivalência.  

Ora, a figura do traficante é um ente tipificado pela lei n.º 11.343/06 2, ou seja, existe no contexto social. Agora, professor “doutrinador” não é uma tipificação válida no contexto social, porque se trata simplesmente de uma opinião, de uma percepção, atribuída por terceiros e motivada por razões de divergência ideológica.

Ao trazer a luz o debate, a discussão, a reflexão, o contraditório, para uma sala de aula, nenhum professor comete crime. A não ser que esteja fazendo, de fato, apologia de assuntos já criminalmente tipificados pela legislação nacional, como é caso do nazismo, por exemplo. Porque o papel de qualquer, bom professor, é materializar a compreensão de que “o principal objetivo da educação é criar pessoas capazes de fazer coisas novas e não simplesmente repetir o que outras gerações fizeram” (Jean Piaget – biólogo, psicólogo e epistemólogo suíço).

Mas, feita essa explanação sobre a referida comparação, então, qual a verdadeira razão submersa nessa depreciação do professor? Elementar, caro (a) leitor (a)! Fomentar o ódio contra alguém que esteja em franca desvantagem social, quando se olha do ponto de vista da corrida armamentista. Afinal, a única arma do ambiente escolar é a educação.

Lamento, mas não é só fruto da desimportância dada a classe! Considerando que o maior contingente de professores no país é do sexo feminino 3, há uma misoginia flagrante impressa nesse episódio. Eles querem alvos visivelmente vulneráveis para desferir o seu desprezo em uma demonstração de poder bélico. E com tantos exemplos recentes de violência em escolas, a ideia cai como uma luva.

No entanto, isso ainda não é tudo! Estimular o ódio contra professores significa também fomentar o questionamento sobre a escola brasileira e perguntar se vale a pena continuar investindo no modelo que se tem. Com todas as suas inconsistências, precariedades, impossibilidades, enfim.

Aliás, a Direita e seus matizes trouxeram à tona o debate, por exemplo, da aprovação do homeschooling 4, no país. Sem contar que, ao tornar o ambiente escolar tensionado pelo medo da violência, se estabelece uma rotina de insegurança constante que afugenta e amplia, cada vez mais, a evasão escolar docente e discente.  

Diante disso, confesso que é sempre muito triste ter que exercitar reflexões tão amargas. Mas, apesar dessa breve melancolia, lembrei-me da sabedoria de Rubem Alves, quando escreveu que “Ensinar é um exercício de imortalidade. De alguma forma continuamos a viver naqueles cujos olhos aprenderam a ver o mundo pela magia da nossa palavra. O professor, assim, não morre jamais...” . Ainda que ressalvadas as suas diferenças em nossa lembrança, ou seja, “O professor medíocre conta. O bom professor explica. O professor superior demonstra. O grande professor inspira” (William A. Ward).



2 Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – Sisnad e dá outras providências. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm

3 ROCHA, A. L.; OLIVEIRA, M. M. C. A feminização e a docência: Uma reflexão com base nas pesquisas em Educação a partir do século XXI no Brasil. Revista Olhares e Trilhas, v.19, p.38-53, 2017. https://seer.ufu.br/index.php/olharesetrilhas/article/view/31720