sexta-feira, 16 de junho de 2023

Os males da verborragia


Os males da verborragia

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Não sei o que é pior na sociedade contemporânea: se é o excesso de certezas ou a incapacidade de se constranger com os absurdos. Algo visível de captar, por conta de uma verborragia explícita e incontrolável. Pois é, as pessoas falam, falam, falam, ... sem exercitar nenhum tipo de reflexão, ou de ponderação, ou de filtragem dos seus pensamentos. Acontece que, em muitos casos, acabam comprometendo a liturgia das relações sociais e profissionais de maneira muito emblemática 1.

Seja por força das bolhas individualistas e/ou dos ranços histórico-sociais, fato é que esse movimento, infelizmente, tem extrapolado as fronteiras da trivialidade cotidiana para servir aos interesses do controle e da manipulação social. Haja vista um recorrente resgate de temáticas retrógradas, as quais, pelo menos, no campo científico e acadêmico já foram devidamente desconstruídas e resignificadas; mas, que impressionam bastante pelo impacto que ainda conseguem provocar.

Mesmo sabendo se tratar, incialmente, de um comportamento manifesto por indivíduos, a origem de tudo isso, e que legitima e respalda a sua propagação, está sim, no amálgama de crenças, valores, princípios e convicções, que se constituiu secularmente no inconsciente coletivo. E que, lamentavelmente, dadas as circunstâncias inerentes à própria sociedade, não conseguiu ser transformado a fim de caber nas constantes demandas emergidas pelo mundo.

De modo que o recente movimento expansionista da Direita e de seus matizes, mais ou menos radicais, tem usado dessa verborragia ideológica para reafirmar a sua sede de dominação e de poder. O que, no Brasil, fica bastante evidente na expressão de uma consciência mais tradicional e conservadora na defesa dos interesses das elites e do bem-estar individual de seus representantes. Impactante se pensarmos na realidade contemporânea do século XXI!

Vamos e convenhamos, essas são as marcas profundas do Brasil colonial. É como se os séculos tivessem passado; mas, a organização sociocultural, política e econômica brasileira permanecesse estruturada pelos mesmos pilares ideológicos. Portanto, é inevitável que as elites não levem em conta a vasta extensão territorial do país, a diversidade das identidades regionais e as práxis e consequências do processo colonial exploratório, quando decidem falar sobre os problemas e as mazelas que atravessam a realidade nacional.  

Há pouco mais de 500 anos, as elites brasileiras resistem ensimesmadas na sua concepção eurocêntrica de ser, de modo que o seu raio de visão não consegue ir além daquilo que garanta a estabilidade das suas regalias e privilégios, transmitidos historicamente de geração a geração. Isso faz, por exemplo, com que não consigam perceber que o processo de desenvolvimento do país foi determinado pelos ciclos exploratórios, de modo que a pujança socioeconômica não foi linear. Aquelas regiões que se despontaram prósperas no período colonial acabaram desfrutando de um desenvolvimento bem-sucedido, enquanto as demais permaneceram à mercê da própria sorte.  

Entretanto, é fundamental destacar que, mesmo nas regiões onde o desenvolvimento prosperou, o Brasil é um país marcado pelas desigualdades socioeconômicas. As grandes fortunas se mantêm nas mãos de uma ínfima minoria, desde os tempos coloniais, enquanto a pobreza se decompõe em camadas pelo resto da população. Infelizmente, o processo de transição de colônia para país independente não carregou consigo a consciência da transformação paradigmática social, a qual faria da sua independência um verdadeiro trampolim para o protagonismo global.

Afinal de contas, um país de dimensões continentais, com condições morfoclimáticas exuberantes, poderia facilmente se consolidar como um expoente de sucesso no mundo. Só que não. A mentalidade provinciana, estreita, tacanha, de nossas elites não conseguiu enxergar o óbvio e concentrou, ainda mais, em suas mãos, a riqueza e o poder. Um dos resultados práticos desse estrabismo nacional foi constituir um abismo de desigualdade socioeconômica que desenvolveu uma dependência crônica do Estado brasileiro.

Pois é, a miséria e a pobreza chegaram ao país pelas mãos das elites. E foram fomentadas pelo racismo, pela misoginia, pela xenofobia, pela aporofobia, pela precarização dos trabalhos e/ou práticas análogas à escravidão, que foram constituídas para servir ao ideário da necropolítica. Não perceberam que na medida em que o Estado brasileiro negligência a eficiência e a suficiência, do ponto de vista da igualdade e da equidade dos direitos sociais (art. 6º), previstos na Constituição de 1988, ele lança milhões de pessoas aos braços da dependência do assistencialismo governamental.

Caro (a) leitor (a), na medida em que a história sempre foi contada pelo viés das elites, não é de se admirar que as camadas mais vulneráveis e desassistidas da população tenham sido sumariamente rotuladas como preguiçosas, malandras, desocupadas, encostadas, indolentes. Tudo para não ter que admitir que o país jamais se preocupou em formar cidadãos e, nem tampouco, mão de obra qualificada, em razão de que a prioridade foi sempre investir pouco e capitalizar muito, como rezava a cartilha do Mercantilismo.

Por conta disso é que no Brasil acabou emergindo uma categoria de trabalho bastante curiosa, o “faz tudo”. Contrariando a pecha de vagabundo, de dependente do assistencialismo, das migalhas e das esmolas, milhões de brasileiros se viram como podem para sobreviver, diante da escassez de trabalhos formais, de salários nada condizentes à dignidade humana, da baixa qualificação, revelando um infinito de habilidades e competências luzidas pela força das necessidades. Os brasileiros e as brasileiras são verdadeiros (as) guerreiros (a), porque além de lutar contra as adversidades intrínsecas à sua sobrevivência, eles têm que driblar os obstáculos impostos pelas elites dominantes e o governo.

Aliás, talvez, nem seja coincidência o fato de que muitos deles não conseguirão se aposentar, o que contribuiria para reduzir o déficit do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). A força das bolhas individualistas e/ou dos ranços histórico-sociais presentes nas elites nacionais estão afastando, cada vez mais, as possibilidades de um desenvolvimento mais igualitário e equitativo no Brasil.

A fome retornou a patamares assustadores e trouxe com ela um empobrecimento, no que tange ao poder de compra, devastador. De modo que tanto a ausência de um emprego formal quanto o exercício da informalidade, impossibilitam o acesso dessas pessoas ao amparo futuro de uma aposentadoria, por menor que seja.  

O que pretendem as elites defensoras ardorosas da Direita e de seus matizes, eu não consigo saber, dada a total desconexão com os movimentos contemporâneos que se impõem mundo afora. Por algum tempo mais, talvez, permaneçam insistindo na sua realidade paralela, no seu mundinho idealizado, no seu saudosismo colonial.

Entretanto, de repente, o imponderável pode aparecer e virar o jogo, colocar tudo de cabeça para baixo, e fazer prevalecer a sua própria concepção de realidade. Até que isso aconteça, seria no mínimo oportuno estancar a verborragia inútil; pois, segundo o dito popular “Quem fala demais dá bom dia a cavalo! ”.