Na contramão da consciência
global sobre arquitetura social e urbanismo
Por Alessandra Leles Rocha
Não, não dá para o Brasil discutir seus problemas
sociais por recortes fotográficos! Eles precisam ser analisados na inteireza de
um filme de pouco mais de 500 anos, para que não haja dissociações factuais oportunistas
impedidoras de uma reflexão objetiva e bem balizada.
Como me refiro a um conjunto diversificado em
formas e conteúdos, quando falo dos problemas sociais brasileiros, mesmo que promova
o debate em torno de um aspecto específico, direta ou indiretamente os demais
estarão imersos no contexto.
Assim, em razão da estarrecedora notícia de que “Campinas lança casa popular de 15 metros
quadrados” 1, decidi trazer
minhas considerações sobre a questão habitacional brasileira. Então, vamos lá! Essa
história é secular e demarca muito bem um dos vieses da desigualdade nacional;
sobretudo, a partir do processo de urbanização.
Sim, o déficit e a precariedade das moradias começam
a partir do momento em que acontece o deslocamento da vida social do campo para
as cidades e o movimento abolicionista ganha impulso e robustez para se
consolidar.
Não é preciso ser nenhum expert em arquitetura e
urbanismo para reconhecer que o desafio habitacional nunca fez parte do
cotidiano das elites. Quanto mais abastadas, mais distantes ficam desse assunto.
De modo que eram as camadas menos privilegiadas e
mais negligenciadas da sociedade, formadas principalmente pelos contingentes de
escravos libertos, que se depararam com a impossibilidade de acesso à uma moradia
capaz de lhes trazer dignidade para sua sobrevivência.
Afinal, o fim da escravatura emergiu totalmente
desprovido de amparo social. As senzalas foram abertas e os escravos colocados
na conta de sua própria sorte, sem um vintém no bolso, sem nenhuma perspectiva.
Bem, não é difícil de imaginar, então, que um processo
decorrente da ausência de método e planejamento adequados, tende a desfrutar de
todo tipo de desdobramentos e consequências nefastas. Na medida em que os ajustes
vão surgindo e apontando sua urgência, diante de circunstâncias agravadas pela própria
imprevidência, quase sempre eles acabam ineficazes ou muito piores do que o
problema em si.
Algo que não é ruim só pela perspectiva da não
solução; mas, pelo fato do desperdício de tempo, de dinheiro, de recursos, em
uma roda-viva de remendos que, de fato, não parecem ter fim.
E somando-se a tudo isso, estão dois pontos
cruciais que são o crescimento populacional e o desenvolvimento socioeconômico dos
espaços urbanos. Seja pela manifestação dos índices de natalidade local ou dos
fluxos migratórios nacionais e internacionais, fato é que a população cresce ao
longo do tempo e impõe, de maneira contundente, as suas demandas sociais.
E justamente por esse contexto, há um incremento
no desenvolvimento socioeconômico dos espaços urbanizados, o que acaba por
restringir a oferta de áreas disponíveis para a habitação. Um fenômeno que veio,
inclusive, colaborar com a chamada especulação imobiliária.
Ora, o fato de o deslocamento da vida social do
campo para as cidades não alterou, em absolutamente nada, a organização socioeconômica
brasileira. A urbanização aconteceu, e permanece majoritariamente acontecendo,
pelas mãos das elites dominantes, as quais sempre puseram e dispuseram de recursos
e poderes no país.
Portanto, a geografia das cidades espelha os
recortes da aquisição de terras por parte dos membros dessas elites. A
princípio, as áreas eram escolhidas, segundo os interesses e intenções dos
proprietários e registradas em cartório de imóveis.
Com o tempo, as negociações passaram também a
envolver o pagamento de valores ajustados entre as partes negociantes. O que
significa, algo bem distante da realidade das camadas sociais menos favorecidas
e privilegiadas.
De modo que essa dinâmica, que se estende ainda em
pleno século XXI, no Brasil, é que promoveu o surgimento de um sistema habitacional
precarizado e desumanizado, cujos principais modelos foram as favelas e os
cortiços.
Quem já leu a obra “O Cortiço” (1890), de Aluísio Azevedo, teve a exata dimensão do
que representa uma moradia em condições indignas, ou seja, diante da superlotação,
da insalubridade, da miséria, da fome e da marginalidade. A ineficiência e a insuficiência
das políticas públicas, em razão das ingerências das elites dominantes nos
espaços de poder, é que vem levando por séculos a reafirmação desse padrão
abjeto de desigualdade cidadã.
É curioso como as elites têm uma visão totalmente equivocada
da realidade. A crença de que vivem isolados em suas bolhas de regalias e privilégios,
distantes anos luz, daqueles que julgam inferiores e desimportantes, não passa
de engano.
Pois é, suas vidas são atravessadas a todo
instante por essa gente que move as engrenagens garantidoras dos seus benefícios
e vantagens, e podem trazer, à revelia de seus elitismos, as marcas da indignidade
cidadã dessa gente.
Ou você nunca pensou, por exemplo, como um deslizamento
de encosta pode destruir a casa onde mora seu (a) funcionário (a) e impedi-lo
(a) de ir trabalhar? Ou como um confronto entre policiais e bandidos onde ele
(a) mora pode impedi-lo (a) de chegar ao trabalho? Ou uma greve do transporte público? Ou um
surto epidemiológico na região onde ele (a) vive? ...
Quando se olha para qualquer centro urbano
brasileiro, seja ele classificado como pequeno, médio ou grande porte, a
primeira ideia que passa pela cabeça das pessoas é de desenvolvimento, de
progresso. Especialmente, por conta da imensa verticalização presente na
geografia das cidades. Muito embora, o fenômeno da verticalização tenha surgido
para enfrentar os desafios da insuficiência territorial, já descritos acima,
ele também tem o traço da especulação imobiliária.
O que quer dizer que essa imagem urbanizada, cheia
de edificações diversas, não traduz a igualdade e a equidade ao direito à
moradia determinado pelo artigo 6º, da Constituição Federal (1988), na medida
em que está inacessível por razões históricas de ordem predominantemente ideológicas
e econômicas.
Portanto, a matéria sobre as tais casa de 15
metros quadrados reflete bem o que foi impregnado secularmente no inconsciente
coletivo nacional. O que fizeram foi trocar seis por meia dúzia, na medida em que
retiraram um grupo de famílias que haviam invadido uma área e as realocaram em
condições semelhantes de indignidade. Inclusive, desconsiderando, por completo,
a impossibilidade dessas famílias arcarem com o pagamento dessa moradia dentro
do seu atual contexto socioeconômico.
Verdade seja dita, nenhuma das justificativas
apresentadas pelo município, para tamanho absurdo, se sustentam. Além disso, só
fazem expor a dimensão da repulsa, do desprezo, do escárnio, do preconceito,
com aqueles cidadãos em condições socioeconômicas de extrema vulnerabilidade.
Enfim, nada mais nada menos do que um exemplo clássico
sobre o quanto a Aporofobia2 está presente
no tecido social brasileiro; bem como, o quanto o país insiste em transitar na
contramão da consciência global sobre arquitetura social e urbanismo
sustentável.