sábado, 17 de junho de 2023

Na contramão da consciência global sobre arquitetura social e urbanismo


Na contramão da consciência global sobre arquitetura social e urbanismo

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Não, não dá para o Brasil discutir seus problemas sociais por recortes fotográficos! Eles precisam ser analisados na inteireza de um filme de pouco mais de 500 anos, para que não haja dissociações factuais oportunistas impedidoras de uma reflexão objetiva e bem balizada.

Como me refiro a um conjunto diversificado em formas e conteúdos, quando falo dos problemas sociais brasileiros, mesmo que promova o debate em torno de um aspecto específico, direta ou indiretamente os demais estarão imersos no contexto.

Assim, em razão da estarrecedora notícia de que “Campinas lança casa popular de 15 metros quadrados” 1, decidi trazer minhas considerações sobre a questão habitacional brasileira. Então, vamos lá! Essa história é secular e demarca muito bem um dos vieses da desigualdade nacional; sobretudo, a partir do processo de urbanização.

Sim, o déficit e a precariedade das moradias começam a partir do momento em que acontece o deslocamento da vida social do campo para as cidades e o movimento abolicionista ganha impulso e robustez para se consolidar.

Não é preciso ser nenhum expert em arquitetura e urbanismo para reconhecer que o desafio habitacional nunca fez parte do cotidiano das elites. Quanto mais abastadas, mais distantes ficam desse assunto.

De modo que eram as camadas menos privilegiadas e mais negligenciadas da sociedade, formadas principalmente pelos contingentes de escravos libertos, que se depararam com a impossibilidade de acesso à uma moradia capaz de lhes trazer dignidade para sua sobrevivência.

Afinal, o fim da escravatura emergiu totalmente desprovido de amparo social. As senzalas foram abertas e os escravos colocados na conta de sua própria sorte, sem um vintém no bolso, sem nenhuma perspectiva.

Bem, não é difícil de imaginar, então, que um processo decorrente da ausência de método e planejamento adequados, tende a desfrutar de todo tipo de desdobramentos e consequências nefastas. Na medida em que os ajustes vão surgindo e apontando sua urgência, diante de circunstâncias agravadas pela própria imprevidência, quase sempre eles acabam ineficazes ou muito piores do que o problema em si.

Algo que não é ruim só pela perspectiva da não solução; mas, pelo fato do desperdício de tempo, de dinheiro, de recursos, em uma roda-viva de remendos que, de fato, não parecem ter fim.

E somando-se a tudo isso, estão dois pontos cruciais que são o crescimento populacional e o desenvolvimento socioeconômico dos espaços urbanos. Seja pela manifestação dos índices de natalidade local ou dos fluxos migratórios nacionais e internacionais, fato é que a população cresce ao longo do tempo e impõe, de maneira contundente, as suas demandas sociais.

E justamente por esse contexto, há um incremento no desenvolvimento socioeconômico dos espaços urbanizados, o que acaba por restringir a oferta de áreas disponíveis para a habitação. Um fenômeno que veio, inclusive, colaborar com a chamada especulação imobiliária.

Ora, o fato de o deslocamento da vida social do campo para as cidades não alterou, em absolutamente nada, a organização socioeconômica brasileira. A urbanização aconteceu, e permanece majoritariamente acontecendo, pelas mãos das elites dominantes, as quais sempre puseram e dispuseram de recursos e poderes no país.

Portanto, a geografia das cidades espelha os recortes da aquisição de terras por parte dos membros dessas elites. A princípio, as áreas eram escolhidas, segundo os interesses e intenções dos proprietários e registradas em cartório de imóveis.

Com o tempo, as negociações passaram também a envolver o pagamento de valores ajustados entre as partes negociantes. O que significa, algo bem distante da realidade das camadas sociais menos favorecidas e privilegiadas.

De modo que essa dinâmica, que se estende ainda em pleno século XXI, no Brasil, é que promoveu o surgimento de um sistema habitacional precarizado e desumanizado, cujos principais modelos foram as favelas e os cortiços.

Quem já leu a obra “O Cortiço” (1890), de Aluísio Azevedo, teve a exata dimensão do que representa uma moradia em condições indignas, ou seja, diante da superlotação, da insalubridade, da miséria, da fome e da marginalidade. A ineficiência e a insuficiência das políticas públicas, em razão das ingerências das elites dominantes nos espaços de poder, é que vem levando por séculos a reafirmação desse padrão abjeto de desigualdade cidadã.

É curioso como as elites têm uma visão totalmente equivocada da realidade. A crença de que vivem isolados em suas bolhas de regalias e privilégios, distantes anos luz, daqueles que julgam inferiores e desimportantes, não passa de engano.

Pois é, suas vidas são atravessadas a todo instante por essa gente que move as engrenagens garantidoras dos seus benefícios e vantagens, e podem trazer, à revelia de seus elitismos, as marcas da indignidade cidadã dessa gente.

Ou você nunca pensou, por exemplo, como um deslizamento de encosta pode destruir a casa onde mora seu (a) funcionário (a) e impedi-lo (a) de ir trabalhar? Ou como um confronto entre policiais e bandidos onde ele (a) mora pode impedi-lo (a) de chegar ao trabalho?  Ou uma greve do transporte público? Ou um surto epidemiológico na região onde ele (a) vive? ...

Quando se olha para qualquer centro urbano brasileiro, seja ele classificado como pequeno, médio ou grande porte, a primeira ideia que passa pela cabeça das pessoas é de desenvolvimento, de progresso. Especialmente, por conta da imensa verticalização presente na geografia das cidades. Muito embora, o fenômeno da verticalização tenha surgido para enfrentar os desafios da insuficiência territorial, já descritos acima, ele também tem o traço da especulação imobiliária.

O que quer dizer que essa imagem urbanizada, cheia de edificações diversas, não traduz a igualdade e a equidade ao direito à moradia determinado pelo artigo 6º, da Constituição Federal (1988), na medida em que está inacessível por razões históricas de ordem predominantemente ideológicas e econômicas.

Portanto, a matéria sobre as tais casa de 15 metros quadrados reflete bem o que foi impregnado secularmente no inconsciente coletivo nacional. O que fizeram foi trocar seis por meia dúzia, na medida em que retiraram um grupo de famílias que haviam invadido uma área e as realocaram em condições semelhantes de indignidade. Inclusive, desconsiderando, por completo, a impossibilidade dessas famílias arcarem com o pagamento dessa moradia dentro do seu atual contexto socioeconômico.

Verdade seja dita, nenhuma das justificativas apresentadas pelo município, para tamanho absurdo, se sustentam. Além disso, só fazem expor a dimensão da repulsa, do desprezo, do escárnio, do preconceito, com aqueles cidadãos em condições socioeconômicas de extrema vulnerabilidade.

Enfim, nada mais nada menos do que um exemplo clássico sobre o quanto a Aporofobia2 está presente no tecido social brasileiro; bem como, o quanto o país insiste em transitar na contramão da consciência global sobre arquitetura social e urbanismo sustentável.