A
vida imitando a arte...
Por
Alessandra Leles Rocha
Há quem diga que a arte imita a
vida; mas, não são raras as vezes em que a vida imita a arte. Aliás, nesse
sentido, pode-se dizer que o Brasil é expert no assunto! Ontem mesmo, aprovado
a toque de caixa pela Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei que “tipifica crimes de discriminação contra
pessoas politicamente expostas” 1 (PL
2720/23), mais parece um arroubo da personagem Rainha de Copas, da obra Alice no País das Maravilhas (1865), de Lewis
Carroll.
Para quem não se recorda, a tal
personagem é o retrato do déspota que entende ter o poder absoluto nas mãos e,
por isso, governa sob o domínio do medo autoritário e inquestionável, subvertendo
a justiça na desqualificação total das leis. Alguém que, portanto, se vê no
direito de impor a insegurança e a subserviência a quem ousar cruzar o seu
caminho.
Embora uma criação aspergida
pelas influências do período Vitoriano inglês, a Rainha de Copas diz muito
sobre a sanha da Direita contemporânea. Sobretudo, nos comportamentos, valores
e atitudes dos representantes de seus vieses e matizes mais radicais e
extremistas.
Não é à toa quem assinou pela
autoria do referido Projeto de Lei, tampouco, o fato de o mesmo ter sido
aprovado por 252 votos a favor e 163 contrários 2,
considerando a relação político-partidária destes com a ideologia direitista nacional.
Mas isso não diz tudo, é preciso dissecar o assunto com bastante lucidez.
Assim, partindo do fato de que a
Direita é árdua defensora de interpretações, um tanto quanto, estranhas sobre
liberdade, de repente amanheceu “de ovo
virado”, e decidiu que nenhum cidadão pode gozar do seu direito de expressar
sua opinião sobre fatos e comportamentos, de conhecimento público e notório.
Por quê? Porque os autores desses
fatos e comportamentos são “ministros de
Estado, presidentes; vices e diretores de autarquias da administração pública
indireta; indicados para cargos de Direção e Assessoramento Superior (DAS) que
são cargos comissionados, de nível 6 ou equivalente; ministros do Supremo
Tribunal Federal e de outros tribunais superiores; procurador-geral da
República; integrantes do Tribunal de Contas da União (TCU); presidentes e
tesoureiros de partidos políticos; governadores e vice-governadores; prefeitos,
vice-prefeitos e vereadores”3.
Considerando-se que muitos deles foram
escolhidos pela força direta do sufrágio ou pelos desdobramentos indiretos
desse, causa, de fato, muita estranheza, deparar com o seguinte argumento do
relator do Projeto: “O preconceito, que
se origina da prévia criação de conclusões negativas e intolerâncias injustificáveis
quanto a certo conjunto de indivíduos, possui significativo potencial lesivo,
na medida em que tem o condão de acarretar, em última análise, a violação de
direitos humanos” 4.
Como pode ele falar sobre
preconceito, tomando por base uma elite já historicamente constituída de
regalias e de privilégios? Se é para falar sobre preconceito, então, que se
fale sobre todas as suas expressões que marcam o cotidiano brasileiro, nos mais
diferentes espaços da sociedade, e que reafirmam os vieses da desigualdade
nacional. Ou o preconceito no país não se faz bem mais perverso e cruel, quando
da inversão dos posicionamentos sociais entre essa elite e as camadas menos
assistidas da população?
Afinal, usar de maneira
equivocada e distorcida as palavras preconceito e direitos humanos, me parece
uma tentativa apenas para castrar o exercício cidadão, constitucionalmente
definido, silenciando-o em um de seus aspectos mais importantes que é a
liberdade de expressão.
Ora, fato de se tentar impedir,
por força de lei, a manifestação livre de opiniões e pensamentos, emergidos a
partir de informações públicas e notórias, não irá comprometer o fato de que estas
continuem sendo nutridas no âmbito da privacidade cognitiva do indivíduo.
Aliás, reconhecendo a própria alma
humana; sobretudo a brasileira, tudo o que é proibido acaba caindo no gosto
popular e se institucionalizando por vias tortas. Ou já se esqueceram do “jeitinho”? Portanto, cabresto e mordaça, para o pensamento
nacional, não tendem a desfrutar o sucesso esperado. Pois, ao que parece, o buraco
desse assunto é bem mais embaixo.
Não é surpresa alguma a dimensão
do desconforto que vem sentindo a Direita brasileira e seus matizes. Acostumados
historicamente a figurar como detentora majoritária e absoluta dos poderes
nacionais, ela não surgiu para ser exposta ao contraditório. Vamos lembrar, que
as bases coloniais que teceram os caminhos da Direita no Brasil vieram do
Absolutismo europeu, que vigorou entre os séculos XVI e XIX. De modo que ela
conseguiu assegurar por muito tempo o poder decisório e organizacional do país,
sem maiores tensões ou desestabilizações.
Acontece que o mundo gira não
apenas ao redor do Sol; mas, sobre si mesmo. As forças conjunturais que se lançam
sobre as dinâmicas dos indivíduos levam a construções e desconstruções
profundas, que afetam o modo de ser e pensar social. E um dos exemplos mais importantes
nesse sentido, foi o que se deu a partir da Revolução Francesa, no século XVIII,
e logo em seguida, a Revolução Industrial, na Inglaterra.
Foram esses dois marcos
históricos mundiais que impuseram à contestação ao poder das elites dominantes.
As camadas menos privilegiadas e vulneráveis das sociedades descobriram o potencial
de suas vozes para a consolidação da sua própria dignidade. Desde, então, o
planeta assiste aos embates entre esses dois polos de poder político e ideológico,
ou seja, a Direita e a Esquerda.
Por si só, essa dicotomia traduz a
expressão genuína da desigualdade, dado o franco desequilíbrio capital que lhe
é pertinente, ou seja, na medida em que a Direita permanece majoritariamente
detentora das riquezas e dos meios de produção.
No entanto, a força numérica da
Esquerda, que se dá além dos parlamentos; mas, nos diversos espaços ocupados
pela base grandiosa da pirâmide social, eleva o tom das discussões e deixa
patenteados os seus posicionamentos e reivindicações, abafando e esvaziando, em
muitos momentos, o ímpeto tirânico da Direita.
Aliás, vale esclarecer que no
contexto da realidade contemporânea, os termos Direita e Esquerda, no Brasil,
acabaram se desviando da teoria acadêmica para adquirir uma interpretação popularesca.
Onde a Direita se resume a uma fatia da população que se julga herdeira dos
poderes nacionais e, por isso, legitimada a exercer todo tipo de desigualdades
no país. Enquanto a Esquerda se lança na defesa de pautas centradas em uma
maior igualdade social, ou seja, na busca pela redução ou abolição dessas
desigualdades.
Assim, para ser alocado, neste ou
naquele espectro, o cidadão não precisa necessariamente ter quaisquer tipos de
vinculação político-partidária, basta apenas manifestar-se a favor deste ou
daquele ponto de vista, para que um dos rótulos lhe seja sumariamente fixado.
No fim das contas, o que se vê
daqui e dali, nesse cenário, é a existência de um demasiado incômodo para a
Direita, razão pela qual ela não para de formular estratagemas para aniquilar
as ações da Esquerda. Vamos e convenhamos, desde o século XVIII, indivíduos tomados
por esse pensamento não se conformam em ter perdido a sua hegemonia, a sua autoridade
absoluta.
Por isso, se tem a nítida impressão que o desejo que pulsa em seu inconsciente grita as palavras da Rainha de Copas, “Cortem-lhe a cabeça! ”. Simplesmente, porque acreditam que a única maneira de resguardar algum vestígio de supremacia seria por meio do temor, da punição. No entanto, se pudessem observar o mundo, pensar sobre os rodopios que ele deu e dá, compreenderiam o tamanho do erro que estão a cometer. Afinal de contas, “Nunca foi sensata a decisão de causar desespero nos homens, pois quem não espera o bem não teme o mal” (Nicolau Maquiavel).
1
https://www.camara.leg.br/noticias/971608-aprovada-urgencia-para-projeto-que-tipifica-crimes-de-discriminacao-contra-pessoas-politicamente-expostas-acompanhe/
2 https://g1.globo.com/politica/noticia/2023/06/14/camara-aprova-projeto-que-propoe-criminalizar-a-discriminacao-de-politicos.ghtml
3 Idem 2.
4 Idem 2.