quinta-feira, 15 de junho de 2023

A vida imitando a arte...


A vida imitando a arte...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Há quem diga que a arte imita a vida; mas, não são raras as vezes em que a vida imita a arte. Aliás, nesse sentido, pode-se dizer que o Brasil é expert no assunto! Ontem mesmo, aprovado a toque de caixa pela Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei que “tipifica crimes de discriminação contra pessoas politicamente expostas” 1 (PL 2720/23), mais parece um arroubo da personagem Rainha de Copas, da obra Alice no País das Maravilhas (1865), de Lewis Carroll.

Para quem não se recorda, a tal personagem é o retrato do déspota que entende ter o poder absoluto nas mãos e, por isso, governa sob o domínio do medo autoritário e inquestionável, subvertendo a justiça na desqualificação total das leis. Alguém que, portanto, se vê no direito de impor a insegurança e a subserviência a quem ousar cruzar o seu caminho.

Embora uma criação aspergida pelas influências do período Vitoriano inglês, a Rainha de Copas diz muito sobre a sanha da Direita contemporânea. Sobretudo, nos comportamentos, valores e atitudes dos representantes de seus vieses e matizes mais radicais e extremistas.

Não é à toa quem assinou pela autoria do referido Projeto de Lei, tampouco, o fato de o mesmo ter sido aprovado por 252 votos a favor e 163 contrários 2, considerando a relação político-partidária destes com a ideologia direitista nacional. Mas isso não diz tudo, é preciso dissecar o assunto com bastante lucidez.

Assim, partindo do fato de que a Direita é árdua defensora de interpretações, um tanto quanto, estranhas sobre liberdade, de repente amanheceu “de ovo virado”, e decidiu que nenhum cidadão pode gozar do seu direito de expressar sua opinião sobre fatos e comportamentos, de conhecimento público e notório.

Por quê? Porque os autores desses fatos e comportamentos são “ministros de Estado, presidentes; vices e diretores de autarquias da administração pública indireta; indicados para cargos de Direção e Assessoramento Superior (DAS) que são cargos comissionados, de nível 6 ou equivalente; ministros do Supremo Tribunal Federal e de outros tribunais superiores; procurador-geral da República; integrantes do Tribunal de Contas da União (TCU); presidentes e tesoureiros de partidos políticos; governadores e vice-governadores; prefeitos, vice-prefeitos e vereadores”3.  

Considerando-se que muitos deles foram escolhidos pela força direta do sufrágio ou pelos desdobramentos indiretos desse, causa, de fato, muita estranheza, deparar com o seguinte argumento do relator do Projeto: “O preconceito, que se origina da prévia criação de conclusões negativas e intolerâncias injustificáveis quanto a certo conjunto de indivíduos, possui significativo potencial lesivo, na medida em que tem o condão de acarretar, em última análise, a violação de direitos humanos” 4.

Como pode ele falar sobre preconceito, tomando por base uma elite já historicamente constituída de regalias e de privilégios? Se é para falar sobre preconceito, então, que se fale sobre todas as suas expressões que marcam o cotidiano brasileiro, nos mais diferentes espaços da sociedade, e que reafirmam os vieses da desigualdade nacional. Ou o preconceito no país não se faz bem mais perverso e cruel, quando da inversão dos posicionamentos sociais entre essa elite e as camadas menos assistidas da população?

Afinal, usar de maneira equivocada e distorcida as palavras preconceito e direitos humanos, me parece uma tentativa apenas para castrar o exercício cidadão, constitucionalmente definido, silenciando-o em um de seus aspectos mais importantes que é a liberdade de expressão.

Ora, fato de se tentar impedir, por força de lei, a manifestação livre de opiniões e pensamentos, emergidos a partir de informações públicas e notórias, não irá comprometer o fato de que estas continuem sendo nutridas no âmbito da privacidade cognitiva do indivíduo.

Aliás, reconhecendo a própria alma humana; sobretudo a brasileira, tudo o que é proibido acaba caindo no gosto popular e se institucionalizando por vias tortas.  Ou já se esqueceram do “jeitinho”? Portanto, cabresto e mordaça, para o pensamento nacional, não tendem a desfrutar o sucesso esperado. Pois, ao que parece, o buraco desse assunto é bem mais embaixo.

Não é surpresa alguma a dimensão do desconforto que vem sentindo a Direita brasileira e seus matizes. Acostumados historicamente a figurar como detentora majoritária e absoluta dos poderes nacionais, ela não surgiu para ser exposta ao contraditório. Vamos lembrar, que as bases coloniais que teceram os caminhos da Direita no Brasil vieram do Absolutismo europeu, que vigorou entre os séculos XVI e XIX. De modo que ela conseguiu assegurar por muito tempo o poder decisório e organizacional do país, sem maiores tensões ou desestabilizações.

Acontece que o mundo gira não apenas ao redor do Sol; mas, sobre si mesmo. As forças conjunturais que se lançam sobre as dinâmicas dos indivíduos levam a construções e desconstruções profundas, que afetam o modo de ser e pensar social. E um dos exemplos mais importantes nesse sentido, foi o que se deu a partir da Revolução Francesa, no século XVIII, e logo em seguida, a Revolução Industrial, na Inglaterra.

Foram esses dois marcos históricos mundiais que impuseram à contestação ao poder das elites dominantes. As camadas menos privilegiadas e vulneráveis das sociedades descobriram o potencial de suas vozes para a consolidação da sua própria dignidade. Desde, então, o planeta assiste aos embates entre esses dois polos de poder político e ideológico, ou seja, a Direita e a Esquerda.

Por si só, essa dicotomia traduz a expressão genuína da desigualdade, dado o franco desequilíbrio capital que lhe é pertinente, ou seja, na medida em que a Direita permanece majoritariamente detentora das riquezas e dos meios de produção.

No entanto, a força numérica da Esquerda, que se dá além dos parlamentos; mas, nos diversos espaços ocupados pela base grandiosa da pirâmide social, eleva o tom das discussões e deixa patenteados os seus posicionamentos e reivindicações, abafando e esvaziando, em muitos momentos, o ímpeto tirânico da Direita.

Aliás, vale esclarecer que no contexto da realidade contemporânea, os termos Direita e Esquerda, no Brasil, acabaram se desviando da teoria acadêmica para adquirir uma interpretação popularesca. Onde a Direita se resume a uma fatia da população que se julga herdeira dos poderes nacionais e, por isso, legitimada a exercer todo tipo de desigualdades no país. Enquanto a Esquerda se lança na defesa de pautas centradas em uma maior igualdade social, ou seja, na busca pela redução ou abolição dessas desigualdades.

Assim, para ser alocado, neste ou naquele espectro, o cidadão não precisa necessariamente ter quaisquer tipos de vinculação político-partidária, basta apenas manifestar-se a favor deste ou daquele ponto de vista, para que um dos rótulos lhe seja sumariamente fixado.  

No fim das contas, o que se vê daqui e dali, nesse cenário, é a existência de um demasiado incômodo para a Direita, razão pela qual ela não para de formular estratagemas para aniquilar as ações da Esquerda. Vamos e convenhamos, desde o século XVIII, indivíduos tomados por esse pensamento não se conformam em ter perdido a sua hegemonia, a sua autoridade absoluta.

Por isso, se tem a nítida impressão que o desejo que pulsa em seu inconsciente grita as palavras da Rainha de Copas, “Cortem-lhe a cabeça! ”. Simplesmente, porque acreditam que a única maneira de resguardar algum vestígio de supremacia seria por meio do temor, da punição. No entanto, se pudessem observar o mundo, pensar sobre os rodopios que ele deu e dá, compreenderiam o tamanho do erro que estão a cometer. Afinal de contas, “Nunca foi sensata a decisão de causar desespero nos homens, pois quem não espera o bem não teme o mal” (Nicolau Maquiavel).