Entre
a vida e a morte
Por
Alessandra Leles Rocha
Faz parte do jogo que os planos
privados de saúde promovam reajustes anuais 1.
O que me parece importante trazer à reflexão, nesse momento, é o modo como tem
se estabelecido a relação entre eles e seus usuários, na medida das
contrapartidas oferecidas.
Lá se vai o tempo em que os
planos de saúde se dividiam entre individuais e coletivos, sempre por gradação
etária, com os valores a serem estabelecidos a partir de uma mensuração sobre o
grau de utilização e complexidade. De repente, por força das conjunturas
sociais contemporâneas, os planos passaram a se decompor ainda mais, porém, no
sentido de fracionar os serviços oferecidos a fim de possibilitá-los caber
dentro de mensalidades compatíveis ao orçamento do cidadão.
Tudo para criar mecanismos
capazes de captar, de alguma forma, segmentos da população que, diante do seu
cenário socioeconômico, acabariam inevitavelmente batendo às portas do Sistema
Único de Saúde (SUS) e desequilibrando, ainda mais, a capacidade de atendimento
do serviço público.
Acontece que isso se traduz em
algo terrivelmente cruel e perverso. Ora, traduzindo em miúdos, isso significa
que a doença precisa ser compatível ao que oferece o plano de saúde contratado.
Caso contrário, o indivíduo não receberá o atendimento necessário e, por essa
razão, terá que arcar com os custos via particular ou, simplesmente, se
deslocar para o atendimento na rede pública.
Mas, não bastasse esse viés, por
trás dessas limitações burocráticas está, também, um atendimento desumanizado,
o que significa que a qualidade e a eficiência acabam condicionadas à o que
determina o plano de saúde do usuário. Tem sido recorrente, por exemplo, que
muitos estabelecimentos privados de saúde – clínicas, hospitais, laboratórios –
disponham nos seus canais de informação ao público, uma lista genérica dos
planos de saúde credenciados; mas, sem oferecer as especificações dos mesmos, por
eles atendidas.
Muitas vezes, então, o paciente
chega no local e só descobre que o seu tipo de plano não está credenciado
quando vai apresentar a carteirinha. Por outro lado, os planos de saúde também
não oferecem ao usuário, com a devida clareza e precisão, tais informações,
obrigando o mesmo a uma verdadeira peregrinação para descobrir qual
estabelecimento de saúde poderá atendê-lo. É por essas e por outras que não são
raras as situações em que o cidadão acaba obrigado a recorrer à judicialização
da saúde; sobretudo, quando o objetivo é preservar a vida.
Isso sem contar, a drástica
redução de profissionais e serviços credenciados. A grande maioria dos médicos
tem evitado de atuar por convênios, o que limita o poder de escolha e decisão
do paciente, na medida em que se perde a possibilidade da construção de uma
relação estreita de confiança entre as partes. O usuário acaba caindo na
loteria da disponibilidade e sendo atendido, muitas vezes, por quem ele jamais
ouviu falar a respeito.
Quanto às clínicas e
laboratórios, a situação não é diferente. Apenas a arbitrariedade dos planos é,
ainda mais, flagrante. Quando menos se espera, os serviços que se tem por
hábito procurar estão descredenciados, e o usuário é constrangido a procurar por
aqueles predeterminados pelo o seu plano de saúde. Ou então, terá que arcar com
os custos via particular, ou simplesmente, se deslocar para o atendimento na
rede pública e aguardar, quando possível, nas imensas listas de espera.
Bem, enquanto a inflação, os
valores dos serviços e insumos (VCMH) e a frequência e complexidade de
utilização dos mesmos (sinistralidade) impõem os reajustes para corrigir as
defasagens operacionais dos planos de saúde privados, os custos têm se tornado
cada vez mais inversamente proporcionais à qualidade e eficiência que são
oferecidas aos usuários. Em muitos casos, pode-se dizer, inclusive, que tem
havido uma equiparação da precarização do setor, entre a rede pública e a
privada.
É desalentador pensar que
adoecer, no Brasil, tornou-se uma impossibilidade real. Sim, porque as opções
disponíveis estão cada vez mais distantes de satisfazer as demandas. E nesse
sentido, o adoecimento populacional vai adquirindo formas e conteúdos
alarmantes, porque a obstaculização do acesso à saúde leva milhares de pessoas
a postergar a busca pelo atendimento. De modo que doenças tratáveis e
facilmente evitáveis, transformam-se em uma complexa teia de comorbidades.
Doenças cardiovasculares. Doenças metabólicas. Doenças renais. Doenças
hepáticas. Doenças pulmonares. Cânceres. Parasitoses. Enfim...
No frigir dos ovos, como dizem
por aí, há uma clara separação entre o joio e o trigo, mais precisamente entre “quem pode permanecer vivo ou deve morrer” 2. E se pensarmos que “Para 2100, as projeções da ONU indicam 185
milhões de habitantes, sendo 23 milhões de jovens (representando 13% do total),
88 milhões de pessoas de 15 a 59 anos (representando 48% do total e 73 milhões
de idosos (representando 40% do total)” 3,
o cenário a esse respeito fica bastante claro.
Portanto, anunciar o reajuste dos
planos privados de saúde é só a ponta de um gigantesco iceberg. Quando é que os brasileiros e as brasileiras irão colocar
no campo do debate que “A saúde é direito
de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que
visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e
igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”
(art. 196, CF de 1988)? Sem essa discussão, a relação custo/ benefício refletida
na saúde do corpo e do bolso estará sempre em um contínuo desequilíbrio.
1 https://g1.globo.com/economia/noticia/2023/06/12/8-milhoes-serao-afetados-por-reajuste-em-plano-de-saude-entenda-como-novos-valores-serao-aplicados.ghtml