terça-feira, 13 de junho de 2023

Entre a vida e a morte


Entre a vida e a morte

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Faz parte do jogo que os planos privados de saúde promovam reajustes anuais 1. O que me parece importante trazer à reflexão, nesse momento, é o modo como tem se estabelecido a relação entre eles e seus usuários, na medida das contrapartidas oferecidas.

Lá se vai o tempo em que os planos de saúde se dividiam entre individuais e coletivos, sempre por gradação etária, com os valores a serem estabelecidos a partir de uma mensuração sobre o grau de utilização e complexidade. De repente, por força das conjunturas sociais contemporâneas, os planos passaram a se decompor ainda mais, porém, no sentido de fracionar os serviços oferecidos a fim de possibilitá-los caber dentro de mensalidades compatíveis ao orçamento do cidadão.

Tudo para criar mecanismos capazes de captar, de alguma forma, segmentos da população que, diante do seu cenário socioeconômico, acabariam inevitavelmente batendo às portas do Sistema Único de Saúde (SUS) e desequilibrando, ainda mais, a capacidade de atendimento do serviço público.

Acontece que isso se traduz em algo terrivelmente cruel e perverso. Ora, traduzindo em miúdos, isso significa que a doença precisa ser compatível ao que oferece o plano de saúde contratado. Caso contrário, o indivíduo não receberá o atendimento necessário e, por essa razão, terá que arcar com os custos via particular ou, simplesmente, se deslocar para o atendimento na rede pública.

Mas, não bastasse esse viés, por trás dessas limitações burocráticas está, também, um atendimento desumanizado, o que significa que a qualidade e a eficiência acabam condicionadas à o que determina o plano de saúde do usuário. Tem sido recorrente, por exemplo, que muitos estabelecimentos privados de saúde – clínicas, hospitais, laboratórios – disponham nos seus canais de informação ao público, uma lista genérica dos planos de saúde credenciados; mas, sem oferecer as especificações dos mesmos, por eles atendidas.

Muitas vezes, então, o paciente chega no local e só descobre que o seu tipo de plano não está credenciado quando vai apresentar a carteirinha. Por outro lado, os planos de saúde também não oferecem ao usuário, com a devida clareza e precisão, tais informações, obrigando o mesmo a uma verdadeira peregrinação para descobrir qual estabelecimento de saúde poderá atendê-lo. É por essas e por outras que não são raras as situações em que o cidadão acaba obrigado a recorrer à judicialização da saúde; sobretudo, quando o objetivo é preservar a vida.

Isso sem contar, a drástica redução de profissionais e serviços credenciados. A grande maioria dos médicos tem evitado de atuar por convênios, o que limita o poder de escolha e decisão do paciente, na medida em que se perde a possibilidade da construção de uma relação estreita de confiança entre as partes. O usuário acaba caindo na loteria da disponibilidade e sendo atendido, muitas vezes, por quem ele jamais ouviu falar a respeito.

Quanto às clínicas e laboratórios, a situação não é diferente. Apenas a arbitrariedade dos planos é, ainda mais, flagrante. Quando menos se espera, os serviços que se tem por hábito procurar estão descredenciados, e o usuário é constrangido a procurar por aqueles predeterminados pelo o seu plano de saúde. Ou então, terá que arcar com os custos via particular, ou simplesmente, se deslocar para o atendimento na rede pública e aguardar, quando possível, nas imensas listas de espera.

Bem, enquanto a inflação, os valores dos serviços e insumos (VCMH) e a frequência e complexidade de utilização dos mesmos (sinistralidade) impõem os reajustes para corrigir as defasagens operacionais dos planos de saúde privados, os custos têm se tornado cada vez mais inversamente proporcionais à qualidade e eficiência que são oferecidas aos usuários. Em muitos casos, pode-se dizer, inclusive, que tem havido uma equiparação da precarização do setor, entre a rede pública e a privada.

É desalentador pensar que adoecer, no Brasil, tornou-se uma impossibilidade real. Sim, porque as opções disponíveis estão cada vez mais distantes de satisfazer as demandas. E nesse sentido, o adoecimento populacional vai adquirindo formas e conteúdos alarmantes, porque a obstaculização do acesso à saúde leva milhares de pessoas a postergar a busca pelo atendimento. De modo que doenças tratáveis e facilmente evitáveis, transformam-se em uma complexa teia de comorbidades. Doenças cardiovasculares. Doenças metabólicas. Doenças renais. Doenças hepáticas. Doenças pulmonares. Cânceres. Parasitoses. Enfim...

No frigir dos ovos, como dizem por aí, há uma clara separação entre o joio e o trigo, mais precisamente entre “quem pode permanecer vivo ou deve morrer” 2. E se pensarmos que “Para 2100, as projeções da ONU indicam 185 milhões de habitantes, sendo 23 milhões de jovens (representando 13% do total), 88 milhões de pessoas de 15 a 59 anos (representando 48% do total e 73 milhões de idosos (representando 40% do total)” 3, o cenário a esse respeito fica bastante claro.

Portanto, anunciar o reajuste dos planos privados de saúde é só a ponta de um gigantesco iceberg. Quando é que os brasileiros e as brasileiras irão colocar no campo do debate que “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (art. 196, CF de 1988)? Sem essa discussão, a relação custo/ benefício refletida na saúde do corpo e do bolso estará sempre em um contínuo desequilíbrio.