BULLYING...
Por
Alessandra Leles Rocha
Olhando para a efervescência que
consome a contemporaneidade, não tenho como não lembrar da personagem antropomórfica,
Coelho Branco, de Alice no País das Maravilhas (1865).
Afinal, nada mais representativo para os tempos atuais do que aquele ser
imaginário vestido de colete, carregando nas mãos um relógio e gritando, “Tenho pressa! Eu tenho pressa à beça! É tarde!
É tarde! É tarde! ”.
Assim, como milhões de seres humanos
ele padecia da ansiedade, da afobação; mas, quando arguido a respeito, não
sabia apresentar os motivos da sua inquietude. O que significa que, assim como
o tempo, a nos escorrer entre os dedos, cada vez mais veloz, não dispomos de
quaisquer controles sobre os mecanismos que nos envolvem nesse frenesi. Somos simplesmente
arrastados, carreados, à revelia de nossas vontades e quereres.
Até que, de repente, um belo dia,
nos damos conta de que todo esse movimento esgarçou nossa capacidade reflexiva
e crítica, porque houve uma deterioração no uso do tempo, fazendo com que a sua
escassez nos levasse a evitar consumi-lo com análises e divagações profundas. Pois
é, o pensamento humano tornou-se superficializado! Não importa o assunto. Do mais simples ao mais
complexo, ele passa sempre por uma dinâmica de sintetização que dilacera a sua significância,
o seu sentido.
E tecendo essas observações, me
dei conta do quanto isso tem afetado e comprometido a resolução de demandas contemporâneas
importantes, na medida em que as soluções acabam metendo os pés pelas mãos em
razão da incapacidade de ponderação. O imediatismo tem queimado as etapas do raciocínio
a tal ponto de impedir que os indivíduos se debrucem sobre uma leitura do mundo
que contemple de maneira equivalente as suas linhas e entrelinhas.
Eis, então, que surge a seguinte
manchete: “Governo do Mato Grosso do Sul
vai combater bullying nas escolas com cirurgia plástica” 1. Bem, que a questão das violências,
incluindo o bullying, é uma emergência
social, disso ninguém discorda! Mas, antes de qualquer juízo de valor, é
fundamental dissecar o assunto.
Para quem ainda não se deu conta,
o bullying é uma expressão exacerbada
do assédio moral; portanto, uma violência praticada individual ou coletivamente
com o propósito de intimidar, humilhar, desqualificar e agredir, física e/ou moralmente,
uma pessoa ou grupo de pessoas.
Pelo fato de, geralmente,
acontecer em idade e ambiente escolar, ele atinge indivíduos em fase de
construção identitária e, por isso, se torna tão perigoso e exige respostas
assertivas por parte das autoridades e da sociedade, em geral.
Ora, nessa faixa etária, tudo é
pretexto para a ocorrência do bullying,
ou seja, altura, peso, aparência, voz, hábitos de consumo, ... Algo curioso de se
pensar, considerando que ao mesmo tempo em que o bullying é uma tentativa arbitrária de homogeneização de padrões e de
comportamentos, esses jovens estão imersos em uma jornada de construção da sua própria
individualidade, da descoberta da sua essência, dos seus valores, das suas crenças.
Diante disso, a ideia de oferecer
cirurgia plástica para combater o bullying me parece o mesmo que tratar a violência
com mais violência. Ninguém é igual a ninguém. Ninguém precisa de permissão ou
autorização do outro para ser quem é. Sempre haverá um senão imposto pela
sociedade para excluir, segregar, invisibilizar, preterir, ...
Mais do que nunca, então, a
humanidade precisa desenvolver habilidades e competências não só para conviver
com as diferenças, as pluralidades, as individualidades que cruzam seu caminho;
mas, para perceber que as imperfeições e deformidades éticas e morais são muito
mais graves do que as estéticas. Sim, porque estas acentuam os conflitos, as
tensões, os desequilíbrios sociais. Sem esquecer de que para esse tipo de imperfeição
e deformidade não existe cirurgia plástica disponível no mercado!
Isso significa que as autoridades
competentes acabam sim, com esse tipo de proposta, reafirmando a sua anuência à
prática do bullying. Ao propor
colocar sobre uma mesa de cirurgia, crianças e adolescentes, para satisfazer os
humores perversos e cruéis de indivíduos infelizes e frustrados, que projetam, sem
quaisquer pudores, a sua autoinsatisfação na figura do outro, elas estão
consentindo que a vítima é culpada pela violência que sofre. Que ela precisa
ser submetida à uma cirurgia, ou seja, um procedimento agressivo e perigoso, para
não sofrer violência.
Imagine, então, uma criança ou
adolescente com deficiência física, mental ou cognitiva e que, geralmente, é
alvo preferencial de bullying na
escola. Não há cirurgia plástica nesse caso. Trata-se de uma condição do
indivíduo que não pode ser ajustada a padrões estéticos. O que fazer nesses
casos? O que propõem as autoridades a esse respeito? Homeschooling? Escola especial? Salas separadas? ...
Diante do exposto, em que momento,
então, a sociedade pretende discutir o bullying,
que é, de fato, o objeto em questão? Lamento, mas quanto mais postergarmos o
assunto piores serão os desdobramentos. Mais pessoas serão vítimas dessa violência
e das reafirmações que dela emergem, no país. Aliás, é bom que se diga que o bullying acontece em maior frequência no
ambiente escolar, mas ele não está restrito a ele. Onde há pessoas há
manifestações de bullying, em maior
ou menor escala.
Então, me lembrei das palavras da
personagem Auggie Pullman, no filme Extraordinário (Wonder), de 2017: “Seja
gentil, pois cada pessoa que você encontra está travando uma grande batalha”.
Afinal, elas completam perfeitamente a ideia trazida por José Saramago, de que “O problema não está em sermos diferentes. Está
em que, quando falamos de diferença, de diferentes, estamos involuntariamente a
introduzir um outro conceito, o conceito de superior e de inferior. É aí que as
coisas se complicam” (entrevista para o El Mundo, 1998).
Daí não ser possível se abster de agir em prol de ações afirmativas de combate ao bullying que se estendam por todos os espaços sociais, por diferentes formas e conteúdos capazes de promover uma desconstrução paradigmática em nome da formação de novos valores, crenças e princípios humanos, ou seja, da formação de uma nova era social. Afinal de contas, queiram ou não admitir, quando o assunto é o bullying qualquer um pode ser a bola da vez!