A
contemporaneidade e seus seres errantes
Por
Alessandra Leles Rocha
Migração nos EUA 1. Migração no Sudão 2.
Migração na Síria 3. Migração na Itália 4. Migração no Reino Unido 5.
Migração 6... Essa é a palavra que vem estampando
as notícias do mundo contemporâneo e promovendo discussões, tensões e violências.
Aliás, o cenário poderia ser bem diferente, se houvesse uma disposição real da
humanidade para lidar com as obviedades criadas e fomentadas por ela mesma.
Ora, começa pelo fato de que
muitos tratam a questão migratória na mesma equivalência de quem se desloca
pelo mundo fazendo turismo, ou seja, impulsionados simplesmente pelo desejo de
ir para um outro lugar e poder desfrutar das suas belezas e infraestruturas. Algo
que tem um caráter visivelmente oportunista, no sentido não só de invisibilizar
o problema, mas de se abster em resolvê-lo. A questão é que há uma razão para esse
comportamento.
A migração não é só a migração em
si, o deslocamento humano. A migração é um desdobramento, quase que inevitável,
de todas as expressões da desigualdade no mundo. Por trás dela incide um
conjunto de motivações, diretas e indiretas, que suplantam quaisquer
subjetividades existenciais que unem os indivíduos à sua identidade nacional. Fome.
Miséria. Doenças. Catástrofes climáticas. Guerras. Conflitos étnico-religiosos.
De modo que a migração se torna a única opção de sobrevivência, ainda que, em
condições mínimas de dignidade.
O que significa que o migrante é
um ser que no limite entre a vida e a morte, se despe de tudo para continuar
existindo. Muitos carregam consigo a esperança idealizada de uma maneira
intensa, abstendo-se de pensar, por completo, sobre os desafios que existirão
nessa nova jornada. Outros, são mais realistas e não contemporizam a respeito
da nova realidade; mas, sabem que isso significa uma decisão que não permite
escolha. É a lei da conservação humana, ou migram ou morrem.
Então, diante desse quadro, com
um mínimo de atenção, se percebe que a questão está desfocada. Em pleno século
XXI, a humanidade permanece invertendo a lógica da migração, ou seja, possíveis
e complexas soluções para as suas consequências ao invés de sanar, ou ao menos,
mitigar, as suas causas. A sensação que se tem é de que manter as desigualdades
é mais importante do que acabar com a migração, na medida em que não se vê um
movimento proativo em favor da justiça social no mundo.
Não adianta negar, há sim, uma
aceitação tácita em torno da existência de países desenvolvidos, em
desenvolvimento (ou emergentes) e subdesenvolvidos, que se faz mediante
critérios de avaliação econômica, tais como o Produto Interno Bruto (PIB), o
Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e o Coeficiente de Gini. O que é
curioso, na medida em que a humanidade se incomoda tanto com certas diferenças
e pluralidades sociais; mas, nesse caso, é totalmente permissiva e omissa
quanto a qualquer traço de homogeneização e equilíbrio.
Sem contar que, quanto mais ela
assiste ao avanço progressivo dos fluxos migratórios pelo mundo, mais é
possível se perceber a construção de mecanismos socioeconômicos promotores e garantidores
da manutenção das desigualdades. Vivemos tempos de um consumismo selvagem que
afeta diferentes aspectos da vida cotidiana e cria uma associação brutal e
perversa entre a sobrevivência e o consumo. De modo que a dignidade humana se
tornou condicionada a capacidade capital dos indivíduos.
Então, seja qual for o grau de
indiferença imposto pela humanidade às suas mazelas históricas, a fim de não
impactar o equilíbrio das desigualdades, a verdade é que ao agir dessa maneira
ela estabelece um processo de retroalimentação funesta das mesmas e que vai se
acirrando na medida em que o contingente populacional sofre alterações
qualitativas e quantitativas.
Aliás, um exemplo dessas
transformações é o envelhecimento populacional. Segundo a Organização das Nações
Unidas (ONU), ”O número de pessoas com 65
anos ou mais no mundo deve dobrar, passando de 761 milhoes em 2021 para 1,6
bilhão em 2050. Como o mundo continua enfrentando múltiplas crises, incluindo o
aumento do custo de vida, os direitos e o bem-estar dos idosos deve estar no
centro dos esforços coletivos para alcançar um futuro sustentável” 7. Daí a urgência de inverter essa lógica
bizarra no que diz respeito ao trato com as migrações.
Primeiro, porque a migração não é
um conceito linear e igualitário. Cada caso de migração é um caso, com suas
especificidades, particularidades e identidades envolvidas. Segundo, porque ela
impacta, sob diferentes formas, conteúdos e intensidades, a dinâmica dos países
alvos; sobretudo, quanto a ampliação de demandas básicas para o atendimento dos
direitos sociais fundamentais.
Por fim, porque ela estabelece um
enviesamento desnecessário para uma distribuição mais justa e igualitária de
recursos financeiros. Se as desigualdades socioeconômicas fossem tratadas de
maneira prioritária e gradativa no mundo, não haveria o impacto das soluções
imediatistas e irrefletidas que se vê amiúde na contemporaneidade, as quais
acabam resultando em insuficiência e ineficiência pela ausência de
planejamentos adequados.
É momento de superar os discursos
e narrativas dos países alvo da migração. Não, suas atitudes não têm traduzido
quaisquer gestos que possam ser definidos como caridade ou bondade, em relação
aos migrantes que batem à sua porta! O altruísmo empático e fraterno existiria,
de fato, se estivessem se reunindo para fortalecer caminhos de mais igualdade e
equidade socioeconômica no planeta, rechaçando práticas de corrupção que tanto
fortalecem as desigualdades sociais, debatendo a expansão desenfreada das
tecnologias que ameaçam o recrudescimento do empobrecimento global, construindo
redes de cooperação contra os eventos extremos do clima, reeditando os valores
e princípios vitais da paz mundial.
Enquanto nos permitirmos assistir a uma distribuição constrangedora e desprezível de esmolas, de donativos, de quireras públicas, que é exatamente o que fazem os países alvo da migração, estaremos reafirmando um conjunto de placebos inúteis que jamais promoverão a construção de uma sociedade global livre, justa, solidária e digna. Precisamos redescobrir o valor do humano e dar-lhe condições de florir e prosperar onde sua semente foi plantada, ao invés de expandirmos a aridez de vastos campos, cujas sementes feneceram pela inexistência da mínima consciência da compaixão.
1 https://g1.globo.com/mundo/noticia/2023/05/11/eua-mudam-regras-para-imigracao-na-fronteira-com-o-mexico-entenda.ghtml
2 https://g1.globo.com/mundo/noticia/2023/05/12/200-mil-pessoas-fugiram-do-sudao-desde-o-inicio-dos-conflitos-diz-onu.ghtml
3 https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2023/02/terremoto-na-turquia-e-na-siria-pode-levar-a-nova-onda-de-refugiados-a-europa.shtml
4 https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2023/04/italia-decreta-estado-de-emergencia-devido-a-crise-migratoria.shtml
5 https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2023/05/com-migracao-recorde-reino-unido-planeja-barrar-vistos-para-familiares-de-estudantes.shtml