sábado, 13 de maio de 2023

A contemporaneidade e seus seres errantes


A contemporaneidade e seus seres errantes

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Migração nos EUA 1. Migração no Sudão 2. Migração na Síria 3. Migração na Itália 4.  Migração no Reino Unido 5. Migração 6... Essa é a palavra que vem estampando as notícias do mundo contemporâneo e promovendo discussões, tensões e violências. Aliás, o cenário poderia ser bem diferente, se houvesse uma disposição real da humanidade para lidar com as obviedades criadas e fomentadas por ela mesma.

Ora, começa pelo fato de que muitos tratam a questão migratória na mesma equivalência de quem se desloca pelo mundo fazendo turismo, ou seja, impulsionados simplesmente pelo desejo de ir para um outro lugar e poder desfrutar das suas belezas e infraestruturas. Algo que tem um caráter visivelmente oportunista, no sentido não só de invisibilizar o problema, mas de se abster em resolvê-lo. A questão é que há uma razão para esse comportamento.  

A migração não é só a migração em si, o deslocamento humano. A migração é um desdobramento, quase que inevitável, de todas as expressões da desigualdade no mundo. Por trás dela incide um conjunto de motivações, diretas e indiretas, que suplantam quaisquer subjetividades existenciais que unem os indivíduos à sua identidade nacional. Fome. Miséria. Doenças. Catástrofes climáticas. Guerras. Conflitos étnico-religiosos. De modo que a migração se torna a única opção de sobrevivência, ainda que, em condições mínimas de dignidade.

O que significa que o migrante é um ser que no limite entre a vida e a morte, se despe de tudo para continuar existindo. Muitos carregam consigo a esperança idealizada de uma maneira intensa, abstendo-se de pensar, por completo, sobre os desafios que existirão nessa nova jornada. Outros, são mais realistas e não contemporizam a respeito da nova realidade; mas, sabem que isso significa uma decisão que não permite escolha. É a lei da conservação humana, ou migram ou morrem.

Então, diante desse quadro, com um mínimo de atenção, se percebe que a questão está desfocada. Em pleno século XXI, a humanidade permanece invertendo a lógica da migração, ou seja, possíveis e complexas soluções para as suas consequências ao invés de sanar, ou ao menos, mitigar, as suas causas. A sensação que se tem é de que manter as desigualdades é mais importante do que acabar com a migração, na medida em que não se vê um movimento proativo em favor da justiça social no mundo.

Não adianta negar, há sim, uma aceitação tácita em torno da existência de países desenvolvidos, em desenvolvimento (ou emergentes) e subdesenvolvidos, que se faz mediante critérios de avaliação econômica, tais como o Produto Interno Bruto (PIB), o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e o Coeficiente de Gini. O que é curioso, na medida em que a humanidade se incomoda tanto com certas diferenças e pluralidades sociais; mas, nesse caso, é totalmente permissiva e omissa quanto a qualquer traço de homogeneização e equilíbrio.

Sem contar que, quanto mais ela assiste ao avanço progressivo dos fluxos migratórios pelo mundo, mais é possível se perceber a construção de mecanismos socioeconômicos promotores e garantidores da manutenção das desigualdades. Vivemos tempos de um consumismo selvagem que afeta diferentes aspectos da vida cotidiana e cria uma associação brutal e perversa entre a sobrevivência e o consumo. De modo que a dignidade humana se tornou condicionada a capacidade capital dos indivíduos.

Então, seja qual for o grau de indiferença imposto pela humanidade às suas mazelas históricas, a fim de não impactar o equilíbrio das desigualdades, a verdade é que ao agir dessa maneira ela estabelece um processo de retroalimentação funesta das mesmas e que vai se acirrando na medida em que o contingente populacional sofre alterações qualitativas e quantitativas.

Aliás, um exemplo dessas transformações é o envelhecimento populacional. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), ”O número de pessoas com 65 anos ou mais no mundo deve dobrar, passando de 761 milhoes em 2021 para 1,6 bilhão em 2050. Como o mundo continua enfrentando múltiplas crises, incluindo o aumento do custo de vida, os direitos e o bem-estar dos idosos deve estar no centro dos esforços coletivos para alcançar um futuro sustentável” 7. Daí a urgência de inverter essa lógica bizarra no que diz respeito ao trato com as migrações.

Primeiro, porque a migração não é um conceito linear e igualitário. Cada caso de migração é um caso, com suas especificidades, particularidades e identidades envolvidas. Segundo, porque ela impacta, sob diferentes formas, conteúdos e intensidades, a dinâmica dos países alvos; sobretudo, quanto a ampliação de demandas básicas para o atendimento dos direitos sociais fundamentais.

Por fim, porque ela estabelece um enviesamento desnecessário para uma distribuição mais justa e igualitária de recursos financeiros. Se as desigualdades socioeconômicas fossem tratadas de maneira prioritária e gradativa no mundo, não haveria o impacto das soluções imediatistas e irrefletidas que se vê amiúde na contemporaneidade, as quais acabam resultando em insuficiência e ineficiência pela ausência de planejamentos adequados.  

É momento de superar os discursos e narrativas dos países alvo da migração. Não, suas atitudes não têm traduzido quaisquer gestos que possam ser definidos como caridade ou bondade, em relação aos migrantes que batem à sua porta! O altruísmo empático e fraterno existiria, de fato, se estivessem se reunindo para fortalecer caminhos de mais igualdade e equidade socioeconômica no planeta, rechaçando práticas de corrupção que tanto fortalecem as desigualdades sociais, debatendo a expansão desenfreada das tecnologias que ameaçam o recrudescimento do empobrecimento global, construindo redes de cooperação contra os eventos extremos do clima, reeditando os valores e princípios vitais da paz mundial.

Enquanto nos permitirmos assistir a uma distribuição constrangedora e desprezível de esmolas, de donativos, de quireras públicas, que é exatamente o que fazem os países alvo da migração, estaremos reafirmando um conjunto de placebos inúteis que jamais promoverão a construção de uma sociedade global livre, justa, solidária e digna. Precisamos redescobrir o valor do humano e dar-lhe condições de florir e prosperar onde sua semente foi plantada, ao invés de expandirmos a aridez de vastos campos, cujas sementes feneceram pela inexistência da mínima consciência da compaixão.