Trabalho
análogo à escravidão
Por
Alessandra Leles Rocha
Não entendo a razão da
perplexidade, quando a questão gira em torno se o nosso olhar indiferente é
fruto genuíno da nossa insensibilidade humana ou abstenção induzida pelas
conjunturas sociais. Fato é que, a cada relato de trabalho análogo à escravidão,
no Brasil, não deveria haver surpresa dada a abjeta herança colonial que o país,
através das vertentes políticas da direita, faz questão de reafirmar cada vez
mais.
Na verdade, o que pede
fundamentalmente o momento atual não é somente agir juridicamente em relação ao
fato em si, ou seja, dos casos apurados de trabalho análogo à escravidão 1; mas, de depurar as camadas discursivas
que vieram à tona a respeito. Porque as palavras dizem muito, enquanto forças
motrizes para a perpetuação e a legitimação de tais comportamentos sociais.
Inclusive me chamou muita atenção
a diferença marcante de postura entre os governadores da Bahia e do Rio Grande
do Sul, no recente episódio das vinícolas brasileiras2.
Enquanto, o primeiro foi às redes sociais manifestar repúdio as declarações
proferidas contra os trabalhadores e levantar a voz em sua defesa, tendo em
vista de que em sua maioria eram trabalhadores baianos e nordestinos 3, o segundo não buscou desculpar-se,
publicamente, com nenhum daqueles submetidos aos atos deploráveis praticados no
seu estado, limitando-se a dizer que tomaria medidas de caráter administrativo
e fiscalizatório sobre o assunto 4.
O que evidencia, no Brasil, a
diferença de tratamento entre os cidadãos. Como se houvesse no país uma linha
demarcando quem pertence à primeira classe e quem pertence à última classe, ou
seja, quem é importante e merece tratamento digno e respeitoso, e quem não é. Acontece
que essa visão resultou do sistema colonial que vigorou no país desde a sua descoberta
em 1500, ou seja, o Brasil da casa grande e da senzala, sem mobilidade social e
todo o poder e capital nas mãos de uma elite.
E isso é algo tão sério, que depois
de declarada a abolição da escravatura, no século XIX, sem sequer cogitar a
ideia de assalariar os escravos para que continuassem suas atividades nos
grandes latifúndios, a elite brasileira decidiu, além de reafirmar o seu ideário
eurocêntrico no país, buscar mão de obra imigrante assalariada na Europa, que
naquela ocasião enfrentava o desemprego decorrente da Revolução Industrial.
Com a promessa de toda a viagem
paga e acomodação, o acordo previa que os trabalhadores saldassem essas dívidas
com o trabalho e feito isso participariam dos lucros da plantação. Para muitos
deles, a ideia de eventualmente conseguirem recursos para comprar seu próprio pedaço
de terra e produzir, era tentadora. No entanto, muitos dos empregadores,
acostumados com a exploração dos escravos, tornaram as condições de trabalho
totalmente desvantajosas para os imigrantes, enredando-os em tramas de
endividamento impagável que acabaram gerando total descontentamento entre eles.
Assim, só depois da intervenção
do governo brasileiro sobre essa situação é que se estabeleceu o sistema de
colonato e a imigração no país se consolidou de maneira importante e bem-sucedida.
Afinal, nenhum indivíduo pode ser submetido à trabalhos forçados, jornada exaustiva,
condições degradantes, proibição no seu direito de ir e vir, e/ou endividamento
com o empregador ou seu preposto. Uma consciência que o tempo fez manifestar formalmente
na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), na Constituição Federal
(1988) e outras legislações a respeito.
Contudo, em razão da expansão da
direita e de seus matizes, mais ou menos radicais, que representam justamente
as sucessivas gerações descendentes desse Brasil Colônia escravocrata, embora
estejamos em pleno século XXI, vemos deixarem cair as máscaras de suas mais repugnantes
crenças, valores e convicções. A cada novo caso descoberto de trabalho análogo à
escravidão, pelas equipes do Ministério do Trabalho e Previdência, percebe-se o
movimento contemporâneo de separação do joio e do trigo, na sociedade
brasileira. Afinal, lidar com as ameaças e os perigos que se escondem nas
sombras e na dissimulação das aparências é sempre muito mais desafiador do que
lidar com a verdade nua e crua.
O pensamento dessa elite e de uma
parte expressiva da sociedade brasileira, impregnada e manipulada ideologicamente
por ela, agora, não resta mais dúvidas. Há racismo, no Brasil. Mas, há também xenofobia,
aporofobia, misoginia, sexismo, homo e transfobia, etarismo, gordofobia,
capacitismo. Porque a segregação, o banimento, fazem parte da história nacional
como ferramentas de garantia das regalias e dos privilégios de certos cidadãos.
Assim, basta que essa parcela dominadora da sociedade brasileira decida a
respeito, para que a beligerância gratuita e feroz afete alguns de seus
concidadãos de maneira brutal e perversa.
Temos de prestar bastante atenção
ao que revela à contemporaneidade, em relação ao trabalho análogo à escravidão.
Afinal, como escreveu George Bernard Shaw, “A
escravatura humana atingiu o seu ponto culminante na nossa época sob a forma do
trabalho livremente assalariado”. Sim, porque a precarização do trabalho é um
dos vieses desse prisma.
Enquanto as elites globais apelam
para os números do desemprego para argumentar que é preciso socorrer e atender
às demandas dessas camadas, fragilizadas pelas conjunturas socioeconômicas, o
que fazem, na verdade, é submetê-las conscientemente à precarização trabalhista
amparadas pela lógica de que “os fins
justificam os meios”. Assim, da precarização para a consolidação do trabalho
análogo à escravidão é um piscar de olhos.
1 https://g1.globo.com/trabalho-e-carreira/noticia/2023/02/28/o-que-e-trabalho-analogo-a-escravidao-segundo-a-lei-brasileira.ghtml
2 https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2023/02/24/vinicolas-do-rs-que-usavam-mao-de-obra-analoga-a-escravidao-podem-ser-responsabilizadas-diz-mte.ghtml