Rumo
à falência civilizatória
Por
Alessandra Leles Rocha
Enquanto a humanidade assiste
perplexa ao terremoto que atingiu severamente a Turquia e a Síria, com
repercussões menos graves em outros países, é estranho que ela não perceba como,
à margem da Natureza, caminha com os próprios pés rumo à sua falência civilizatória.
A ganância que sempre existiu no
ser humano, com o passar do tempo e da evolução social, adquiriu contornos
ainda mais cruéis e perversos, os quais sinalizam um abandono severo do senso
humanitário e uma negligência total em relação ao futuro da própria espécie.
A crise Yanomami 1 é só um exemplo. A ganância sobre o
espaço geográfico pertencente aos povos originários é só um viés desse
potencial destrutivo que tomou conta da humanidade. Porque a ambição tem agido
como um rolo compressor sobre qualquer indivíduo que represente algum obstáculo
aos seus interesses.
As recentes falências e reduções drásticas
de funcionários dão a dimensão desse cenário 2.
Nada disso é por acaso. Depois de o ser humano trabalhar com afinco,
conscientemente ou não, para o progresso científico e tecnológico do mundo, ele
caiu na armadilha. Tornou-se facilmente descartável. O mundo dos negócios, do
capital, precisa cada vez menos dele, porque as máquinas, as tecnologias,
suprem com mais eficiência e menos custos a realização das atividades.
Não bastará criatividade,
inventividade ou resiliência, por parte do ser humano para enfrentar esse
movimento. Afinal de contas, serão legiões de indivíduos nas mesmas, ou piores,
condições, disputando com unhas e dentes por um fiapo de estabilidade para
manter a sua dignidade. Basta olhar para a realidade atual para entender que o
seu traçado desigual, desarmônico, tenderá a ficar ainda pior.
Queiram ou não admitir, a ganância
intrínseca ao ser humano gestou outras formas de si mesma. Criou monstros que
hoje não sabe como lidar e padece o medo e o horror de acabar devorado,
destruído, por eles. O ser humano não percebeu que “Nada é suficiente para quem o suficiente é pouco” (Epicuro).
Aliás, isso me faz recordar a
obra FRANKENSTEIN: or The Modern Prometheus 3;
sobretudo, quando Mary Shelley escreve que a “Mente calma, a salvo de paixões perturbadoras, é a condição do ser
humano em seu estado normal. Não pode a busca do saber ser levada à conta de
exceção a essa regra. Se o estudo, por qualquer forma, tende a debilitar nossas
afeições, nosso gosto pelos prazeres simples, trata-se então de uma atividade
ilícita, que não se ajusta ao espírito humano. Se essa norma fosse sempre
observada, se todo homem estabelecesse um limite entre seus misteres e sua vida
afetiva, a Grécia não teria sido escravizada, César teria poupado sua pátria, a
América teria sido colonizada sem maiores conflitos, e os impérios dos astecas
e dos incas não teriam sido aniquilados” (p.54).
Infelizmente, a raça humana
inverteu a lógica e o peso da vida. Por trás de palavras como sucesso,
realização, poder, conquista, ... lê-se nas entrelinhas a ganância, essa
vontade incontrolável de ter, de possuir, de acumular, que afeta de maneira
brutal a mente, os sentimentos, as emoções e os comportamentos. Que desumaniza sem pedir licença.
E nessa toada, o ser humano foi levado
a abandonar lenta e gradualmente todo o seu potencial intelectual e cognitivo, a
caminhar em passos largos na sua autodestruição. Começando pela perda da sua
dignidade, diante de um flagrante empobrecimento global decorrente da ganância
de uma ínfima minoria em detrimento da maioria. Ele vive tempos em que a insuficiência
tende a ser cada vez mais devastadora; embora, o mundo pareça ser de plena eficiência.
Afinal, tudo foi mercantilizado
pela ganância, inclusive o próprio ser humano. Quem leu o poema “Eu, etiqueta” 4,
de Carlos Drummond de Andrade, percebe como essa dinâmica social não só impõe a
condição sine qua non da competição
entre os viventes; mas, da obrigação de provar, enquanto possível, o seu valor
humano, existencial, através de bens e produtos. Na moenda da ganância, faz-se
do ser o sumo do ter, do mundo dos extremos, das desigualdades, das
polarizações capitais.
1 https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/direitos-humanos/audio/2023-02/yanomami-crise-humanitaria-no-coracao-da-amazonia
2 https://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2022/11/04/twitter-demitiu-50percent-dos-funcionarios-apos-ser-adquirido-por-musk-diz-executivo.ghtml
https://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2023/01/05/amazon-demissao.ghtml
https://exame.com/brasil/como-o-aumento-dos-juros-esta-causando-a-onda-de-demissoes-em-massa/
3 SHELLEY, M.
[1817]. Frankenstein: or The Modern
Prometheus. Tradução de Pietro Nassetti. Disponível em: http://lelivros.love/book/frankestein-mary-shelley/
. Acesso em: 1º jul. 2019.