sábado, 11 de fevereiro de 2023

Rumo à falência civilizatória


Rumo à falência civilizatória

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Enquanto a humanidade assiste perplexa ao terremoto que atingiu severamente a Turquia e a Síria, com repercussões menos graves em outros países, é estranho que ela não perceba como, à margem da Natureza, caminha com os próprios pés rumo à sua falência civilizatória.

A ganância que sempre existiu no ser humano, com o passar do tempo e da evolução social, adquiriu contornos ainda mais cruéis e perversos, os quais sinalizam um abandono severo do senso humanitário e uma negligência total em relação ao futuro da própria espécie.

A crise Yanomami 1 é só um exemplo. A ganância sobre o espaço geográfico pertencente aos povos originários é só um viés desse potencial destrutivo que tomou conta da humanidade. Porque a ambição tem agido como um rolo compressor sobre qualquer indivíduo que represente algum obstáculo aos seus interesses.

As recentes falências e reduções drásticas de funcionários dão a dimensão desse cenário 2. Nada disso é por acaso. Depois de o ser humano trabalhar com afinco, conscientemente ou não, para o progresso científico e tecnológico do mundo, ele caiu na armadilha. Tornou-se facilmente descartável. O mundo dos negócios, do capital, precisa cada vez menos dele, porque as máquinas, as tecnologias, suprem com mais eficiência e menos custos a realização das atividades.

Não bastará criatividade, inventividade ou resiliência, por parte do ser humano para enfrentar esse movimento. Afinal de contas, serão legiões de indivíduos nas mesmas, ou piores, condições, disputando com unhas e dentes por um fiapo de estabilidade para manter a sua dignidade. Basta olhar para a realidade atual para entender que o seu traçado desigual, desarmônico, tenderá a ficar ainda pior.

Queiram ou não admitir, a ganância intrínseca ao ser humano gestou outras formas de si mesma. Criou monstros que hoje não sabe como lidar e padece o medo e o horror de acabar devorado, destruído, por eles. O ser humano não percebeu que “Nada é suficiente para quem o suficiente é pouco” (Epicuro).

Aliás, isso me faz recordar a obra FRANKENSTEIN: or The Modern Prometheus 3; sobretudo, quando Mary Shelley escreve que a “Mente calma, a salvo de paixões perturbadoras, é a condição do ser humano em seu estado normal. Não pode a busca do saber ser levada à conta de exceção a essa regra. Se o estudo, por qualquer forma, tende a debilitar nossas afeições, nosso gosto pelos prazeres simples, trata-se então de uma atividade ilícita, que não se ajusta ao espírito humano. Se essa norma fosse sempre observada, se todo homem estabelecesse um limite entre seus misteres e sua vida afetiva, a Grécia não teria sido escravizada, César teria poupado sua pátria, a América teria sido colonizada sem maiores conflitos, e os impérios dos astecas e dos incas não teriam sido aniquilados” (p.54).  

Infelizmente, a raça humana inverteu a lógica e o peso da vida. Por trás de palavras como sucesso, realização, poder, conquista, ... lê-se nas entrelinhas a ganância, essa vontade incontrolável de ter, de possuir, de acumular, que afeta de maneira brutal a mente, os sentimentos, as emoções e os comportamentos.  Que desumaniza sem pedir licença.

E nessa toada, o ser humano foi levado a abandonar lenta e gradualmente todo o seu potencial intelectual e cognitivo, a caminhar em passos largos na sua autodestruição. Começando pela perda da sua dignidade, diante de um flagrante empobrecimento global decorrente da ganância de uma ínfima minoria em detrimento da maioria. Ele vive tempos em que a insuficiência tende a ser cada vez mais devastadora; embora, o mundo pareça ser de plena eficiência.

Afinal, tudo foi mercantilizado pela ganância, inclusive o próprio ser humano. Quem leu o poema “Eu, etiqueta” 4, de Carlos Drummond de Andrade, percebe como essa dinâmica social não só impõe a condição sine qua non da competição entre os viventes; mas, da obrigação de provar, enquanto possível, o seu valor humano, existencial, através de bens e produtos. Na moenda da ganância, faz-se do ser o sumo do ter, do mundo dos extremos, das desigualdades, das polarizações capitais.

 


3 SHELLEY, M. [1817]. Frankenstein: or The Modern Prometheus. Tradução de Pietro Nassetti. Disponível em: http://lelivros.love/book/frankestein-mary-shelley/ . Acesso em: 1º jul. 2019.