segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

Sobre as pegadas da nossa desumanização inteligente


Sobre as pegadas da nossa desumanização inteligente

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A recente notícia de uma ferramenta de Inteligência Artificial (IA) capaz de gerar textos escritos com algum nível de naturalidade e coerência 1, trouxe para muitos uma imensa euforia. Entretanto, particularmente, fui preenchida por uma imensa reflexão.

Afinal, a vida não é um amontoado de acontecimentos desconexos e independentes. E as tecnologias merecem uma análise no campo ético e moral, na medida em que pertencem ao universo das relações humanas. 

Quando a Revolução industrial ocorreu, na segunda metade do século XVIII, o que se prometia para o mundo, além do avanço científico e tecnológico, era uma maior disponibilidade de tempo, uma vida passível de ser desfrutada sem maiores sobressaltos e atribulações.  

Tarefas cotidianas não ocupariam mais tanto tempo das pessoas. Os deslocamentos seriam facilitados. O convívio seria oportunizado. ... Bastava que o indivíduo tivesse poder aquisitivo para adquirir as engenhocas mágicas produzidas pelas indústrias.

Contudo, o tempo provou que entre bônus e ônus, a Revolução Industrial, na verdade, não cumpriu suas promessas como desejavam seus entusiastas. Olhando apenas para a questão do tempo, ele nunca foi tão escasso como após a industrialização. Sem contar que a vida passou a circular em torno de um único objetivo, o consumo.

O tempo em função do consumo. A vida em função do consumo. As relações humanas em função do consumo. O trabalho em função do consumo. E aí se iniciou a desumanização da humanidade, na medida em que ela foi totalmente absorvida por esse movimento. Corpo, mente e alma condicionados para satisfazer aos objetivos da sociedade de consumo que emergia.

De modo que não demorou muito para se perceber o surgimento de pessoas individualistas, narcisistas, egoístas, enfastiadas, desmotivadas. Afinal, lentamente o consumo foi fazendo com que elas abdicassem dos seus papeis humanos e sociais em favor da mecanização do cotidiano.

Carros para não precisar andar. Eletrodomésticos para realizar as atividades domésticas. Tecidos que não precisam passar. Alimentos pré-cozidos, pré-assados ou desidratados. Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) para agilizar e facilitar o encurtamento das distâncias. Computadores para minimizar os desgastes cognitivos.

Enquanto o ser humano dava vida às máquinas, ele não percebeu que perdia seu espaço e função social. Atualmente, apesar de ele viver sob o frenesi cotidiano, conduzido pelo chicote do consumo, há uma lacuna existencial imensa que ele não consegue preencher.

Algo que se manifesta pelas diferentes formas de insalubridade mental. Depressão. Transtorno afetivo bipolar. Demência. Compulsões. Abuso de entorpecentes. Transtornos alimentares.  ...

O ser humano enquanto máquina biológica programada para executar uma infinidade de tarefas e funções se deparou com uma realidade para qual não consegue se ajustar. E uma máquina em desajuste, logicamente, tende a manifestar problemas.

Assim, quando isso alcança o campo neurológico, onde reside a capacidade intelectual, cognitiva, os resultados acabam repercutindo em tensões e distúrbios sociais. O recente episódio da depredação dos espaços de poder, em Brasília, no dia 8 de janeiro, ajuda a explicar esse fenômeno.

A manipulação ideológica político-partidária que se desenvolveu no país nos últimos anos, que muitos tendem a classificar como mera polarização, nasce desse tipo de fastio, de desmotivação, de insatisfação, presente na realidade contemporânea.

O excesso de facilidades acenada pelo consumo contínuo ou pela impossibilidade de consumir, leva as pessoas a um nível de esgotamento e desarranjo emocional.

Desse modo, a fugacidade do prazer cria ciclos de privação e carência cada vez mais intensos e recorrentes, como acontece com o uso de drogas, por exemplo.

Portanto, esse cenário tende a expor o indivíduo a buscar sempre alguma motivação capaz de lhe fazer sentido e lhe trazer alguma satisfação. O que explica a fácil adesão às manipulações do pensamento coletivo.

Ora, imersas em uma situação de pertencimento, de participação ativa, as pessoas sentem como se as lacunas existenciais estivessem sendo preenchidas, o que lhes dá um certo alívio.

No entanto, quem pratica essa manipulação sabe muito bem que é preciso um árduo e contínuo trabalho para não deixar arrefecer esse sentimento nos outros, para que eles não retornem ao ponto de desmotivação.

Daí a necessidade de se refletir profundamente sobre os assombrosos avanços produzidos pelas Revoluções Industriais. Queiram ou não admitir, elas não só nos brindaram com a automatização industrial e cotidiana; mas, nos trouxeram a infeliz realidade de uma sociedade autômata.

Isso significa que estamos diante de uma sociedade que não só vem abrindo mão das suas habilidades, talentos e competências humanas em favor das máquinas; mas, também, de suas emoções, sentimentos, valores e princípios.

Como no filme 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968) 2, de Stanley Kubrick, a pergunta a se fazer é: estarão, de fato, os instrumentos criados e utilizados pela humanidade a favor da sua sobrevivência e prosperidade? 

Em linhas gerais, até aqui, as tais Revoluções Industriais não foram tudo aquilo que se esperava delas. O tempo ainda nos domina. A paz nos desafia. O mundo melhor é só um ideário individual.

Portanto, temos girado à revelia de nossa vontade na sua espiral de loucura. E como resultado disso, permitindo que elas nos extraíssem a essência mais genuína, até nos deixar vazios, ocos, improdutivos, para assistir sem resistência ao apogeu e à glória das máquinas que ajudamos a criar e que, cada vez mais, chegam para nos substituir literalmente.