Sobre
as pegadas da nossa desumanização inteligente
Por
Alessandra Leles Rocha
A recente notícia de uma
ferramenta de Inteligência Artificial (IA) capaz de gerar textos escritos com
algum nível de naturalidade e coerência 1,
trouxe para muitos uma imensa euforia. Entretanto, particularmente, fui
preenchida por uma imensa reflexão.
Afinal, a vida não é um amontoado
de acontecimentos desconexos e independentes. E as tecnologias merecem uma
análise no campo ético e moral, na medida em que pertencem ao universo das
relações humanas.
Quando a Revolução industrial
ocorreu, na segunda metade do século XVIII, o que se prometia para o mundo,
além do avanço científico e tecnológico, era uma maior disponibilidade de tempo,
uma vida passível de ser desfrutada sem maiores sobressaltos e atribulações.
Tarefas cotidianas não ocupariam
mais tanto tempo das pessoas. Os deslocamentos seriam facilitados. O convívio
seria oportunizado. ... Bastava que o indivíduo tivesse poder aquisitivo para
adquirir as engenhocas mágicas produzidas pelas indústrias.
Contudo, o tempo provou que entre
bônus e ônus, a Revolução Industrial, na verdade, não cumpriu suas promessas
como desejavam seus entusiastas. Olhando apenas para a questão do tempo, ele
nunca foi tão escasso como após a industrialização. Sem contar que a vida
passou a circular em torno de um único objetivo, o consumo.
O tempo em função do consumo. A
vida em função do consumo. As relações humanas em função do consumo. O trabalho
em função do consumo. E aí se iniciou a desumanização da humanidade, na medida
em que ela foi totalmente absorvida por esse movimento. Corpo, mente e alma
condicionados para satisfazer aos objetivos da sociedade de consumo que emergia.
De modo que não demorou muito
para se perceber o surgimento de pessoas individualistas, narcisistas, egoístas,
enfastiadas, desmotivadas. Afinal, lentamente o consumo foi fazendo com que elas
abdicassem dos seus papeis humanos e sociais em favor da mecanização do
cotidiano.
Carros para não precisar andar.
Eletrodomésticos para realizar as atividades domésticas. Tecidos que não
precisam passar. Alimentos pré-cozidos, pré-assados ou desidratados. Tecnologias
da Informação e Comunicação (TICs) para agilizar e facilitar o encurtamento das
distâncias. Computadores para minimizar os desgastes cognitivos.
Enquanto o ser humano dava vida
às máquinas, ele não percebeu que perdia seu espaço e função social.
Atualmente, apesar de ele viver sob o frenesi cotidiano, conduzido pelo chicote
do consumo, há uma lacuna existencial imensa que ele não consegue preencher.
Algo que se manifesta pelas
diferentes formas de insalubridade mental. Depressão. Transtorno afetivo
bipolar. Demência. Compulsões. Abuso de entorpecentes. Transtornos alimentares.
...
O ser humano enquanto máquina
biológica programada para executar uma infinidade de tarefas e funções se
deparou com uma realidade para qual não consegue se ajustar. E uma máquina em
desajuste, logicamente, tende a manifestar problemas.
Assim, quando isso alcança o
campo neurológico, onde reside a capacidade intelectual, cognitiva, os
resultados acabam repercutindo em tensões e distúrbios sociais. O recente
episódio da depredação dos espaços de poder, em Brasília, no dia 8 de janeiro,
ajuda a explicar esse fenômeno.
A manipulação ideológica
político-partidária que se desenvolveu no país nos últimos anos, que muitos
tendem a classificar como mera polarização, nasce desse tipo de fastio, de
desmotivação, de insatisfação, presente na realidade contemporânea.
O excesso de facilidades acenada
pelo consumo contínuo ou pela impossibilidade de consumir, leva as pessoas a um
nível de esgotamento e desarranjo emocional.
Desse modo, a fugacidade do
prazer cria ciclos de privação e carência cada vez mais intensos e recorrentes,
como acontece com o uso de drogas, por exemplo.
Portanto, esse cenário tende a expor
o indivíduo a buscar sempre alguma motivação capaz de lhe fazer sentido e lhe
trazer alguma satisfação. O que explica a fácil adesão às manipulações do
pensamento coletivo.
Ora, imersas em uma situação de
pertencimento, de participação ativa, as pessoas sentem como se as lacunas
existenciais estivessem sendo preenchidas, o que lhes dá um certo alívio.
No entanto, quem pratica essa
manipulação sabe muito bem que é preciso um árduo e contínuo trabalho para não
deixar arrefecer esse sentimento nos outros, para que eles não retornem ao
ponto de desmotivação.
Daí a necessidade de se refletir
profundamente sobre os assombrosos avanços produzidos pelas Revoluções
Industriais. Queiram ou não admitir, elas não só nos brindaram com a
automatização industrial e cotidiana; mas, nos trouxeram a infeliz realidade de
uma sociedade autômata.
Isso significa que estamos diante
de uma sociedade que não só vem abrindo mão das suas habilidades, talentos e
competências humanas em favor das máquinas; mas, também, de suas emoções,
sentimentos, valores e princípios.
Como no filme 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968) 2, de Stanley Kubrick, a pergunta a se
fazer é: estarão, de fato, os instrumentos criados e utilizados pela humanidade
a favor da sua sobrevivência e prosperidade?
Em linhas gerais, até aqui, as
tais Revoluções Industriais não foram tudo aquilo que se esperava delas. O
tempo ainda nos domina. A paz nos desafia. O mundo melhor é só um ideário
individual.
Portanto, temos girado à revelia
de nossa vontade na sua espiral de loucura. E como resultado disso, permitindo
que elas nos extraíssem a essência mais genuína, até nos deixar vazios, ocos,
improdutivos, para assistir sem resistência ao apogeu e à glória das máquinas
que ajudamos a criar e que, cada vez mais, chegam para nos substituir
literalmente.