domingo, 15 de janeiro de 2023

A conta, senhor (a)!


A conta, senhor (a)!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Ranço da nossa herança colonial, a gastança desordenada do dinheiro público é um elemento constitutivo da nossa anticidadania. A pergunta a se fazer é quando o país vai parar de rasgar dinheiro à toa ou de jogá-lo pelas janelas e ralos, como se habituou a fazer em razão da ausência de responsabilização que legitima tais atitudes?

As notícias mais recentes a esse respeito vêm dos dados divulgados sobre os gastos dos cartões corporativos da Presidência da República, durante a gestão anterior, que somaram R$27,6 milhões em quatro anos de governo 1. Demandas importantes para empregar esses recursos não faltaram nesse período, como é de conhecimento público. Mas, abstendo-se totalmente dos parâmetros éticos e morais que sustentam as obrigações dos cargos governamentais, se preferiu gastar com todo tipo de futilidade e desimportância.

Informação que chega simultaneamente ao recém-episódio de depredação dos palácios federais, o qual representa o desapreço total pela coisa pública, na medida em que permite destruir aquilo que existe e está em plena funcionalidade para ter que se investir na reconstrução. Afinal, o exemplo vem de cima e acabou contaminando o inconsciente coletivo, a tal ponto, que muita gente acredita mesmo, que dinheiro nasce em árvores. Então, é como se não residisse no exercício cidadão a responsabilidade do zelo, do cuidado, da manutenção do patrimônio público.

Como já disse, esse comportamento é histórico. O Brasil, desde seus áureos tempos coloniais, sempre esbanjou o que tinha e o que não tinha, porque nunca cobrou dos responsáveis pela gastança o ressarcimento ao erário. A práxis encontrada foi sempre lançar sobre os ombros das camadas populares o ônus dos prejuízos, através de taxas, impostos, contribuições e afins. O que se pode chamar de um modelo Robin Hood à brasileira, ou seja, retira dos pobres para dar aos ricos.

Acontece que isso não tem a menor graça! São práxis assim que nos colocam no campo de países distantes de uma efetiva consolidação de civilidade, de desenvolvimento, pois sempre faltam recursos para investir nas mais diferentes áreas. Afinal, esse dinheiro nunca tem um caminho de volta aos cofres públicos. É, literalmente, um dinheiro perdido dada a obscena legitimidade que se constituiu nesse sentido.

Enquanto, lá fora, as pessoas fazem conta de centavos, aqui esbanja-se como se fosse o fim do mundo. Lembro-me, quando li a biografia da ex-primeira dama norte-americana Michelle Obama, Minha História 2, que me surpreendi ao descobrir, por exemplo, que a composição da despensa da Casa Branca, durante o governo Obama, era pago por eles e não pelo Estado. Ou que eles evitavam sair informalmente dado o custo que isso representava não só em termos logísticos e de segurança; mas, orçamentário. Além do que, isso traria para eles duras cobranças pela mídia e oposição.

Algo que nos faz refletir sobre o senso de cidadania, de responsabilidade, que a investidura de certos cargos impõe, ou deveria impor. Considerando todos os discursos feitos até aqui, pela nova gestão federal, no sentido de mitigar as desigualdades socioeconômicas no país, se não houver uma mudança profunda nos princípios e valores que regem o trato da coisa pública, permaneceremos fadados ao insucesso nessa empreitada.

Basta de perplexidades repentinas a cada nova notícia do perdularismo nacional! Os abusos, os excessos, os absurdos, devem ser punidos e restituídos a contento. Chega de normalizar, de trivializar, a gastança pública! Seja de que forma ou conteúdo ela se apresentar. Por que os menos favorecidos têm sempre que pagar a conta dos desvarios e das irresponsabilidades dos mais abastados poderosos?

Dizia José Saramago, “Se a ética não governar a razão, a razão desprezará a ética...”. Portanto, não basta que a verdade indigesta da gastança venha à tona. Saber implica em agir a respeito, em tomar as providências cabíveis e necessárias, sem demora. Caso contrário, o país reflete uma posição de condescendência com o malfeito, com a corrupção, que é muito ruim tanto para a sua imagem interna quanto externa.

Afinal, é como se o país tendesse sempre a reafirmar uma flexibilização demasiada dos seus princípios e dos seus valores sociocomportamentais, comprometendo a sua credibilidade.  O que, segundo Rui Barbosa, nos aponta para a seguinte reflexão: “Política e politicalha não se confundem, não se parecem, não se relacionam com a outra, antes se negam, se repulsam mutuamente. A política é a higiene dos países moralmente sadios. A politicalha, a malária dos povos de moralidade estragada” (Obras Completas de Rui Barbosa).