A
conta, senhor (a)!
Por
Alessandra Leles Rocha
Ranço da nossa herança colonial,
a gastança desordenada do dinheiro público é um elemento constitutivo da nossa
anticidadania. A pergunta a se fazer é quando o país vai parar de rasgar dinheiro
à toa ou de jogá-lo pelas janelas e ralos, como se habituou a fazer em razão da
ausência de responsabilização que legitima tais atitudes?
As notícias mais recentes a esse
respeito vêm dos dados divulgados sobre os gastos dos cartões corporativos da
Presidência da República, durante a gestão anterior, que somaram R$27,6 milhões
em quatro anos de governo 1. Demandas
importantes para empregar esses recursos não faltaram nesse período, como é de
conhecimento público. Mas, abstendo-se totalmente dos parâmetros éticos e
morais que sustentam as obrigações dos cargos governamentais, se preferiu
gastar com todo tipo de futilidade e desimportância.
Informação que chega simultaneamente
ao recém-episódio de depredação dos palácios federais, o qual representa o
desapreço total pela coisa pública, na medida em que permite destruir aquilo
que existe e está em plena funcionalidade para ter que se investir na
reconstrução. Afinal, o exemplo vem de cima e acabou contaminando o
inconsciente coletivo, a tal ponto, que muita gente acredita mesmo, que dinheiro
nasce em árvores. Então, é como se não residisse no exercício cidadão a responsabilidade
do zelo, do cuidado, da manutenção do patrimônio público.
Como já disse, esse comportamento
é histórico. O Brasil, desde seus áureos tempos coloniais, sempre esbanjou o
que tinha e o que não tinha, porque nunca cobrou dos responsáveis pela gastança
o ressarcimento ao erário. A práxis encontrada foi sempre lançar sobre os
ombros das camadas populares o ônus dos prejuízos, através de taxas, impostos,
contribuições e afins. O que se pode chamar de um modelo Robin Hood à brasileira,
ou seja, retira dos pobres para dar aos ricos.
Acontece que isso não tem a menor
graça! São práxis assim que nos colocam no campo de países distantes de uma
efetiva consolidação de civilidade, de desenvolvimento, pois sempre faltam
recursos para investir nas mais diferentes áreas. Afinal, esse dinheiro nunca
tem um caminho de volta aos cofres públicos. É, literalmente, um dinheiro
perdido dada a obscena legitimidade que se constituiu nesse sentido.
Enquanto, lá fora, as pessoas
fazem conta de centavos, aqui esbanja-se como se fosse o fim do mundo. Lembro-me,
quando li a biografia da ex-primeira dama norte-americana Michelle Obama, Minha História 2,
que me surpreendi ao descobrir, por exemplo, que a composição da despensa da
Casa Branca, durante o governo Obama, era pago por eles e não pelo Estado. Ou que
eles evitavam sair informalmente dado o custo que isso representava não só em
termos logísticos e de segurança; mas, orçamentário. Além do que, isso traria
para eles duras cobranças pela mídia e oposição.
Algo que nos faz refletir sobre o
senso de cidadania, de responsabilidade, que a investidura de certos cargos impõe,
ou deveria impor. Considerando todos os discursos feitos até aqui, pela nova
gestão federal, no sentido de mitigar as desigualdades socioeconômicas no país,
se não houver uma mudança profunda nos princípios e valores que regem o trato
da coisa pública, permaneceremos fadados ao insucesso nessa empreitada.
Basta de perplexidades repentinas
a cada nova notícia do perdularismo nacional! Os abusos, os excessos, os
absurdos, devem ser punidos e restituídos a contento. Chega de normalizar, de
trivializar, a gastança pública! Seja de que forma ou conteúdo ela se
apresentar. Por que os menos favorecidos têm sempre que pagar a conta dos desvarios
e das irresponsabilidades dos mais abastados poderosos?
Dizia José Saramago, “Se a ética não governar a razão, a razão
desprezará a ética...”. Portanto, não basta que a verdade indigesta da
gastança venha à tona. Saber implica em agir a respeito, em tomar as providências
cabíveis e necessárias, sem demora. Caso contrário, o país reflete uma posição
de condescendência com o malfeito, com a corrupção, que é muito ruim tanto para
a sua imagem interna quanto externa.
Afinal, é como se o país tendesse
sempre a reafirmar uma flexibilização demasiada dos seus princípios e dos seus
valores sociocomportamentais, comprometendo a sua credibilidade. O que, segundo Rui Barbosa, nos aponta para a
seguinte reflexão: “Política e
politicalha não se confundem, não se parecem, não se relacionam com a outra,
antes se negam, se repulsam mutuamente. A política é a higiene dos países
moralmente sadios. A politicalha, a malária dos povos de moralidade estragada”
(Obras Completas de Rui Barbosa).
1 https://g1.globo.com/politica/noticia/2023/01/12/veja-a-lista-completa-de-gastos-do-cartao-corporativo-de-bolsonaro-liberada-pelo-governo-federal.ghtml
2 OBAMA, M. Minha História. Traduzido por Débora Landsberg, Denise Bottmann e Renato Marques. Rio de Janeiro: Objetiva, 2018. 440p.