domingo, 8 de janeiro de 2023

Gordofobia...


Gordofobia...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Para os que ainda não se deram conta, segundo o que apontou a Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2022, “Mais de 1 bilhão de pessoas no mundo são obesas – 650 milhões de adultos, 340 milhões de adolescentes e 39 milhões de crianças” 1 e considerando que as razões para esse fenômeno são múltiplas, a tendência natural é que os números continuem aumentando. Daí a morte de um jovem brasileiro obeso na porta de um hospital 2 faz emergir, ou pelo menos deveria, uma série de reflexões sociais importantíssimas.

Sobre o ocorrido em si, cabe as autoridades, incluindo policiais e judiciárias, investigar e cumprir a lei cabível. Mas, enquanto cidadãos, todos temos o dever de encarar certos aspectos da obesidade, os quais tendem por força das resistências sociais parecerem desconfortáveis e invisibilizados, como é o caso da gordofobia.

Por definição, a gordofobia é o “Repúdio ou aversão preconceituosa a pessoas gordas, que ocorre nas esferas afetiva, social e profissional” 3. Como em quaisquer outras manifestações de ódio dentro das sociedades, a gordofobia pune sumariamente o indivíduo obeso, demonstrando uma total ignorância e desrespeito humano. Afinal, muitas vezes, a obesidade por si só já é profundamente desafiadora para aquele indivíduo. Só alguém nessa situação para saber os desafios para cumprir tarefas simples do cotidiano como dormir, acordar, caminhar, correr, vestir, calçar, ...

O que pouca gente se dá conta é que no contexto da realidade contemporânea qualquer um pode se tornar obeso. Seja por estresse. Seja por doenças metabólicas. Seja por doenças preexistentes ou por predisposição genética. Seja por distúrbios do sono. Seja por excesso de consumo calórico. Seja por alimentos industrializados. Seja por sedentarismo. Ou pelo conjunto desses fatores. De repente, quando menos se espera a situação se consolida. Pode ser temporária. Mas, também, pode ser definitiva, com todos os desdobramentos e sequelas conhecidos.

Agora, vejamos quem, de fato, tem acesso à prevenção, controle e tratamento regular da obesidade, no Brasil? E tudo começa pela fragilidade da prevenção, quando o cidadão acaba não dispondo de uma alimentação saudável e equilibrada nutricionalmente, por conta do custo que isso representa. Basta ir aos empórios, supermercados e hipermercados, para verificar in loco que uma compra de produtos in natura se torna economicamente inviável se comparada aos produtos industrializados e processados.

Desse modo, por mais que o cidadão queira se alimentar de maneira saudável, ele é compelido pelas forças econômicas a não o fazer, sob pena do seu salário demonstrar toda a sua insuficiência mensal. Sua cesta de compras acaba recheada de produtos à base de gordura hidrogenada, de excesso de sódio ou de açúcar, de corantes, de acidulantes, de conservantes, de aromatizantes, emulsificantes, estabilizantes, espessantes, que tentam enganar o paladar do consumidor com uma falsa ideia de similaridade com o natural.

Mas, isso é só a ponta do iceberg. Que cidadão consegue viver sem estresse na contemporaneidade? Longas e extenuantes jornadas de trabalho. A geografia desfavorável dos deslocamentos urbanos. A precariedade habitacional. A beligerância social. A fragilização da dignidade cidadã expressa pela insuficiência salarial. Enfim... Esse cidadão, portanto, dorme mal. Dorme pouco. E, muitas vezes, não tem como repor as horas de descanso para atenuar os efeitos deletérios do estresse sobre o seu corpo. Nem tampouco, ele tem oportunidade de aliviar as tensões, de relaxar, de praticar uma atividade física regular que lhe traga benefícios corporais e mentais. Então, ele vive no limite. Vive mal. Vive por um triz.

Sem contar, que a realidade econômica nacional tem conduzido milhões de brasileiros à dependência do Sistema Único de Saúde (SUS), dada a impossibilidade real de arcar com o custo de um plano privado de assistência médico-hospitalar. Assim, tendo em vista a notória sobrecarga e precarização do SUS, a impossibilidade de receber o cuidado e o tratamento adequado às demandas se torna um desestímulo real para a procura de atendimento. Inclusive, porque esse paciente geralmente necessita de uma atenção multidisciplinar, nem sempre existente e disponível na rede SUS.

Logo, é dentro das conjunturas emergenciais que a obesidade, quase sempre, acaba sendo lembrada dentro dos serviços de saúde, ou seja, quando o paciente dá entrada com quadro hipertensivo, com infarto agudo do miocárdio, com Acidente Vascular Cerebral (AVC), com insuficiência de oxigênio e dificuldade respiratória, com restrição de locomoção, e/ou com doenças hepáticas e ou renais. Porque a prevenção foi negligenciada. O prevenir que seria melhor e mais barato, cede espaço para o tratamento, para uma tentativa de cura quase sempre impossível de alcançar.

Isso tudo nos traz, então, a dimensão de como a obesidade no Brasil reflete as desigualdades. Deveríamos nos perguntar por que a obesidade não faz parte da nossa roda de conversas, de discussões, de debates? Acontece que a resposta pode constranger. Afinal, queiramos ou não admitir, a sociedade brasileira é historicamente contaminada por um excesso de egoísmo, que não permite exercer a empatia, a alteridade, em relação ao outro.  Como se bastasse o fato de que se eu posso, se eu tenho acesso, pouco me importa se outro não pode, não tem.

Acontece que esse tipo de comportamento é sim, uma expressão da gordofobia. Mas, como se pode perceber, ela não é tão inofensiva como querem tentar fazer parecer. A gordofobia faz o caminho mais perverso e cruel que é desapropriar o indivíduo da sua identidade, dos seus direitos, da sua capacidade, dos seus talentos, das suas virtudes, da sua beleza. Contudo, ela não se restringe a orbitar só o espaço da ofensa, da discriminação, da ridicularização e/ou do banimento. No fundo o que ela quer é matar, extinguir, eliminar. Lenta e gradualmente, pelo silêncio, pela omissão, pela invisibilização, pela negligência, pela falta de políticas públicas e, sobretudo, pela ausência de consciência cidadã.

A premissa de que “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade” (art. 1º, DUDH, 1948) não surgiu amparada por nenhuma exceção, ou estratifica seus beneficiários em posição de importância. Ela serve para mim, para você, para todo mundo, sem distinção.

Simplesmente, porque “A pluralidade é a condição da ação humana pelo fato de sermos todos os mesmos, isto é, humanos, sem que ninguém seja exatamente igual a qualquer pessoa que tenha existido, exista ou venha a existir” (Hannah Arendt). Portanto, nada e nem ninguém pode nos subjugar, nos dominar, nos manipular, nos ofender, nos humilhar, nos espezinhar, quando temos essa consciência viva e pulsante dentro de nós.