Gordofobia...
Por
Alessandra Leles Rocha
Para os que ainda não se deram
conta, segundo o que apontou a Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2022, “Mais de 1 bilhão de pessoas no mundo são
obesas – 650 milhões de adultos, 340 milhões de adolescentes e 39 milhões de
crianças” 1 e considerando que as
razões para esse fenômeno são múltiplas, a tendência natural é que os números
continuem aumentando. Daí a morte de um jovem brasileiro obeso na porta de um
hospital 2 faz emergir, ou pelo menos deveria, uma
série de reflexões sociais importantíssimas.
Sobre o ocorrido em si, cabe as
autoridades, incluindo policiais e judiciárias, investigar e cumprir a lei
cabível. Mas, enquanto cidadãos, todos temos o dever de encarar certos aspectos
da obesidade, os quais tendem por força das resistências sociais parecerem
desconfortáveis e invisibilizados, como é o caso da gordofobia.
Por definição, a gordofobia é o “Repúdio ou aversão preconceituosa a pessoas
gordas, que ocorre nas esferas afetiva, social e profissional” 3. Como em quaisquer outras
manifestações de ódio dentro das sociedades, a gordofobia pune sumariamente o
indivíduo obeso, demonstrando uma total ignorância e desrespeito humano.
Afinal, muitas vezes, a obesidade por si só já é profundamente desafiadora para
aquele indivíduo. Só alguém nessa situação para saber os desafios para cumprir
tarefas simples do cotidiano como dormir, acordar, caminhar, correr, vestir,
calçar, ...
O que pouca gente se dá conta é
que no contexto da realidade contemporânea qualquer um pode se tornar obeso.
Seja por estresse. Seja por doenças metabólicas. Seja por doenças preexistentes
ou por predisposição genética. Seja por distúrbios do sono. Seja por excesso de
consumo calórico. Seja por alimentos industrializados. Seja por sedentarismo.
Ou pelo conjunto desses fatores. De repente, quando menos se espera a situação
se consolida. Pode ser temporária. Mas, também, pode ser definitiva, com todos
os desdobramentos e sequelas conhecidos.
Agora, vejamos quem, de fato, tem
acesso à prevenção, controle e tratamento regular da obesidade, no Brasil? E
tudo começa pela fragilidade da prevenção, quando o cidadão acaba não dispondo
de uma alimentação saudável e equilibrada nutricionalmente, por conta do custo
que isso representa. Basta ir aos empórios, supermercados e hipermercados, para
verificar in loco que uma compra de
produtos in natura se torna
economicamente inviável se comparada aos produtos industrializados e
processados.
Desse modo, por mais que o
cidadão queira se alimentar de maneira saudável, ele é compelido pelas forças
econômicas a não o fazer, sob pena do seu salário demonstrar toda a sua
insuficiência mensal. Sua cesta de compras acaba recheada de produtos à base de
gordura hidrogenada, de excesso de sódio ou de açúcar, de corantes, de
acidulantes, de conservantes, de aromatizantes, emulsificantes, estabilizantes,
espessantes, que tentam enganar o paladar do consumidor com uma falsa ideia de
similaridade com o natural.
Mas, isso é só a ponta do iceberg. Que cidadão consegue viver sem
estresse na contemporaneidade? Longas e extenuantes jornadas de trabalho. A
geografia desfavorável dos deslocamentos urbanos. A precariedade habitacional.
A beligerância social. A fragilização da dignidade cidadã expressa pela
insuficiência salarial. Enfim... Esse cidadão, portanto, dorme mal. Dorme
pouco. E, muitas vezes, não tem como repor as horas de descanso para atenuar os
efeitos deletérios do estresse sobre o seu corpo. Nem tampouco, ele tem
oportunidade de aliviar as tensões, de relaxar, de praticar uma atividade
física regular que lhe traga benefícios corporais e mentais. Então, ele vive no
limite. Vive mal. Vive por um triz.
Sem contar, que a realidade econômica
nacional tem conduzido milhões de brasileiros à dependência do Sistema Único de
Saúde (SUS), dada a impossibilidade real de arcar com o custo de um plano
privado de assistência
médico-hospitalar. Assim, tendo em vista a notória sobrecarga e precarização do
SUS, a impossibilidade de receber o cuidado e o tratamento adequado às demandas
se torna um desestímulo real para a procura de atendimento. Inclusive, porque
esse paciente geralmente necessita de uma atenção multidisciplinar, nem sempre
existente e disponível na rede SUS.
Logo, é dentro das conjunturas emergenciais
que a obesidade, quase sempre, acaba sendo lembrada dentro dos serviços de
saúde, ou seja, quando o paciente dá entrada com quadro hipertensivo, com
infarto agudo do miocárdio, com Acidente Vascular Cerebral (AVC), com insuficiência
de oxigênio e dificuldade respiratória, com restrição de locomoção, e/ou com
doenças hepáticas e ou renais. Porque a prevenção foi negligenciada. O prevenir
que seria melhor e mais barato, cede espaço para o tratamento, para uma
tentativa de cura quase sempre impossível de alcançar.
Isso tudo nos traz, então, a
dimensão de como a obesidade no Brasil reflete as desigualdades. Deveríamos nos
perguntar por que a obesidade não faz parte da nossa roda de conversas, de
discussões, de debates? Acontece que a resposta pode constranger. Afinal,
queiramos ou não admitir, a sociedade brasileira é historicamente contaminada
por um excesso de egoísmo, que não permite exercer a empatia, a alteridade, em
relação ao outro. Como se bastasse o
fato de que se eu posso, se eu tenho acesso, pouco me importa se outro não
pode, não tem.
Acontece que esse tipo de
comportamento é sim, uma expressão da gordofobia. Mas, como se pode perceber,
ela não é tão inofensiva como querem tentar fazer parecer. A gordofobia faz o
caminho mais perverso e cruel que é desapropriar o indivíduo da sua identidade,
dos seus direitos, da sua capacidade, dos seus talentos, das suas virtudes, da
sua beleza. Contudo, ela não se restringe a orbitar só o espaço da ofensa, da
discriminação, da ridicularização e/ou do banimento. No fundo o que ela quer é
matar, extinguir, eliminar. Lenta e gradualmente, pelo silêncio, pela omissão,
pela invisibilização, pela negligência, pela falta de políticas públicas e,
sobretudo, pela ausência de consciência cidadã.
A premissa de que “Todos os seres humanos nascem livres e
iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir
em relação uns aos outros com espírito de fraternidade” (art. 1º, DUDH, 1948)
não surgiu amparada por nenhuma exceção, ou estratifica seus beneficiários em
posição de importância. Ela serve para mim, para você, para todo mundo, sem
distinção.
Simplesmente, porque “A pluralidade é a condição da ação humana
pelo fato de sermos todos os mesmos, isto é, humanos, sem que ninguém seja
exatamente igual a qualquer pessoa que tenha existido, exista ou venha a
existir” (Hannah Arendt). Portanto, nada e nem ninguém pode nos subjugar,
nos dominar, nos manipular, nos ofender, nos humilhar, nos espezinhar, quando
temos essa consciência viva e pulsante dentro de nós.