terça-feira, 10 de janeiro de 2023

Dois pesos e um milhão de medidas!


Dois pesos e um milhão de medidas!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Com o decantar da perplexidade, a qual tomou o Brasil e o mundo no último domingo, camadas de reflexões começam a emergir e a trazer à tona questões indigestas para muita gente por aí. A consciência de que houve uma falha gigantesca na condução da vigilância e da punição aos atos antidemocráticos, que vieram se estabelecendo no país, ao longo dos últimos quatro anos, os quais culminaram, agora, com a depredação violenta dos prédios dos poderes na capital federal, embora consensual, não diz tudo.

Há um detalhe que diz muito e merece uma ampla e profunda reflexão, ou seja, os acampamentos montados a serviço da ultradireita nacional, em frente aos quarteis generais do Exército. Por incrível que pareça, eles não se resumem a linguagem objetiva da anticidadania e antidemocracia. Essa é só uma camada superficial! Os acampamentos e o modo como as autoridades lidaram com eles foram um espelho claro de como se estabelecem as relações sociais no Brasil.

Quantas vezes já não assistimos, através dos veículos de comunicação e informação, reportagens a respeito de reintegração de posse ocorridas com violência e desumanidade? Bem, a reintegração enquanto instrumento jurídico que faz justiça ao proprietário do espaço imobiliário, infelizmente, apaga através do direito de uns a necessidade de garantia do direito à dignidade de outros. O que move as invasões e ocupações dos espaços geográficos no país é um misto de inacessibilidade aos direitos sociais básicos e um gigantesco déficit habitacional que se arrasta pelo tempo, em razão de políticas públicas que propiciam a manutenção das desigualdades sociais no país.

Sendo assim, as populações que são despejadas pelas medidas de reintegração de posse são aquelas pertencentes as parcelas mais vulneráveis e desassistidas. De modo que é muito fácil perceber como a questão é tratada no âmbito do “vale quanto pesa”. Parece ao Estado ser muito fácil impor-lhes o terror da força e da violência para garantir o direito do proprietário, que figura numa posição social capaz de garantir-lhe, por si só, vez e voz. Daí as imagens serem sempre tão chocantes, tão brutais. Forças policiais munidas de bombas de gás lacrimogênio, de cassetete em punho, que entram quebrando barracos, destruindo os parcos bens das pessoas, humilhando e agredindo, diante do choro e do desespero de homens, mulheres, crianças e idosos entregues à mercê da própria sorte.

Mas, não para por aí esse movimento. Recentemente foi aprovada a lei n. º 14489/2022, popularmente conhecida como Lei Padre Júlio Lancellotti, que trata da proibição à arquitetura hostil, cujo objetivo principal reside no emprego de estruturas, equipamentos e materiais com o objetivo de afastar as pessoas em situação de rua dos espaços urbanos – praças, viadutos, calçadas e jardins. Simpatizantes da direita e seus matizes, no Brasil, queriam a todo custo lançar a existência dessas pessoas ao submundo da invisibilidade, para que não precisassem pensar em políticas públicas para atendê-las e, sobretudo, investir recursos para operacionalizá-las. Mas, por sorte, a ideia abjeta, desprezível, desumana, não perseverou.

Aliás, essa é só uma lei para mitigar a injustiça, a desumanidade. Afinal, a indignidade humana, no Brasil, demanda um caminho longo e difícil para ser efetivamente superada. Enquanto as desigualdades socioeconômicas prevalecerem como medidas de governo, ainda que sutilmente omitidas, os espaços públicos urbanos estarão repletos de pessoas vulnerabilizadas, desassistidas, desamparadas, precisando de um lugar para se abrigar, para minimamente sobreviver.   

Portanto, tudo isso esfacela o princípio constitucional da igualdade. Enquanto, os grupos antidemocráticos e terroristas propagavam a ilegalidade dentro de acampamentos em espaços públicos urbanos, pelo simples fato de estarem sob as bênçãos da ultradireita nacional e de não configurarem elementos das camadas menos favorecidas e preteridas da população, não houve quem ousasse removê-los de lá ou os tratassem de maneira indigna e violenta. Ao contrário, só faltaram ser tratados a pão de ló, como se sua presença ali não estivesse afrontando as leis, desrespeitando explicitamente os princípios constitucionais. Dois pesos, um milhão de medidas!

Pois é, não há igualdade; mas, também, não há equidade no Brasil! E não há, porque o ranço histórico colonial é insistentemente fomentado para manter as desigualdades nos limites adequados aos interesses das elites e pseudoelites, ao longo dos séculos. Sem perceber, talvez, as autoridades ao exercerem a sua inação diante dos fatos colaboraram sim, na reafirmação dessa verdade inconteste. No Brasil a equidade está longe de ser conquistada, por isso, a igualdade soa, tantas vezes, como escárnio, como piada de mau gosto.

No frigir dos ovos, a grande ameaça à imagem do país, ao seu patrimônio histórico-cultural, à sua civilidade, mostrou a sua cara. Nunca foram as parcelas mais vulneráveis e desassistidas da população. Aquelas que padecem o descaso, a violência gratuita, o asco, a repulsa, a invisibilização por diferentes formas e conteúdos. A ameaça veio de quem se autointitula “gente de bem”, “patriota”, de quem tem o poder capital ou se enquadra nas regras estabelecidas, por uns e outros, para transitar sem restrições pelos espaços sociais. O que significa que há um erro crasso de avaliação no país que permite perpetuar os absurdos, os obscurantismos, presentes na nossa história. Como dizia Bertolt Brecht, “Apenas quando somos instruídos pela realidade é que podemos mudá-la”. Pensemos, a partir de agora, sobre isso.