Dois
pesos e um milhão de medidas!
Por
Alessandra Leles Rocha
Com o decantar da perplexidade, a
qual tomou o Brasil e o mundo no último domingo, camadas de reflexões começam a
emergir e a trazer à tona questões indigestas para muita gente por aí. A consciência
de que houve uma falha gigantesca na condução da vigilância e da punição aos
atos antidemocráticos, que vieram se estabelecendo no país, ao longo dos
últimos quatro anos, os quais culminaram, agora, com a depredação violenta dos prédios
dos poderes na capital federal, embora consensual, não diz tudo.
Há um detalhe que diz muito e
merece uma ampla e profunda reflexão, ou seja, os acampamentos montados a
serviço da ultradireita nacional, em frente aos quarteis generais do Exército. Por
incrível que pareça, eles não se resumem a linguagem objetiva da anticidadania
e antidemocracia. Essa é só uma camada superficial! Os acampamentos e o modo
como as autoridades lidaram com eles foram um espelho claro de como se estabelecem
as relações sociais no Brasil.
Quantas vezes já não assistimos,
através dos veículos de comunicação e informação, reportagens a respeito de reintegração
de posse ocorridas com violência e desumanidade? Bem, a reintegração enquanto
instrumento jurídico que faz justiça ao proprietário do espaço imobiliário,
infelizmente, apaga através do direito de uns a necessidade de garantia do
direito à dignidade de outros. O que move as invasões e ocupações dos espaços geográficos
no país é um misto de inacessibilidade aos direitos sociais básicos e um
gigantesco déficit habitacional que se arrasta pelo tempo, em razão de
políticas públicas que propiciam a manutenção das desigualdades sociais no
país.
Sendo assim, as populações que
são despejadas pelas medidas de reintegração de posse são aquelas pertencentes
as parcelas mais vulneráveis e desassistidas. De modo que é muito fácil
perceber como a questão é tratada no âmbito do “vale quanto pesa”. Parece ao Estado ser muito fácil impor-lhes o
terror da força e da violência para garantir o direito do proprietário, que
figura numa posição social capaz de garantir-lhe, por si só, vez e voz. Daí as
imagens serem sempre tão chocantes, tão brutais. Forças policiais munidas de bombas
de gás lacrimogênio, de cassetete em punho, que entram quebrando barracos, destruindo
os parcos bens das pessoas, humilhando e agredindo, diante do choro e do desespero
de homens, mulheres, crianças e idosos entregues à mercê da própria sorte.
Mas, não para por aí esse
movimento. Recentemente foi aprovada a lei n. º 14489/2022, popularmente
conhecida como Lei Padre Júlio Lancellotti, que trata da proibição à
arquitetura hostil, cujo objetivo principal reside no emprego de estruturas,
equipamentos e materiais com o objetivo de afastar as pessoas em situação de
rua dos espaços urbanos – praças, viadutos, calçadas e jardins. Simpatizantes da
direita e seus matizes, no Brasil, queriam a todo custo lançar a existência dessas
pessoas ao submundo da invisibilidade, para que não precisassem pensar em
políticas públicas para atendê-las e, sobretudo, investir recursos para operacionalizá-las.
Mas, por sorte, a ideia abjeta, desprezível, desumana, não perseverou.
Aliás, essa é só uma lei para
mitigar a injustiça, a desumanidade. Afinal, a indignidade humana, no Brasil,
demanda um caminho longo e difícil para ser efetivamente superada. Enquanto as
desigualdades socioeconômicas prevalecerem como medidas de governo, ainda que sutilmente
omitidas, os espaços públicos urbanos estarão repletos de pessoas vulnerabilizadas,
desassistidas, desamparadas, precisando de um lugar para se abrigar, para minimamente
sobreviver.
Portanto, tudo isso esfacela o princípio
constitucional da igualdade. Enquanto, os grupos antidemocráticos e terroristas
propagavam a ilegalidade dentro de acampamentos em espaços públicos urbanos,
pelo simples fato de estarem sob as bênçãos da ultradireita nacional e de não configurarem
elementos das camadas menos favorecidas e preteridas da população, não houve
quem ousasse removê-los de lá ou os tratassem de maneira indigna e violenta. Ao
contrário, só faltaram ser tratados a pão de ló, como se sua presença ali não
estivesse afrontando as leis, desrespeitando explicitamente os princípios
constitucionais. Dois pesos, um milhão de medidas!
Pois é, não há igualdade; mas,
também, não há equidade no Brasil! E não há, porque o ranço histórico colonial é
insistentemente fomentado para manter as desigualdades nos limites adequados
aos interesses das elites e pseudoelites, ao longo dos séculos. Sem perceber,
talvez, as autoridades ao exercerem a sua inação diante dos fatos colaboraram
sim, na reafirmação dessa verdade inconteste. No Brasil a equidade está longe
de ser conquistada, por isso, a igualdade soa, tantas vezes, como escárnio,
como piada de mau gosto.
No frigir dos ovos, a grande
ameaça à imagem do país, ao seu patrimônio histórico-cultural, à sua
civilidade, mostrou a sua cara. Nunca foram as parcelas mais vulneráveis e
desassistidas da população. Aquelas que padecem o descaso, a violência
gratuita, o asco, a repulsa, a invisibilização por diferentes formas e conteúdos.
A ameaça veio de quem se autointitula “gente
de bem”, “patriota”, de quem tem
o poder capital ou se enquadra nas regras estabelecidas, por uns e outros, para
transitar sem restrições pelos espaços sociais. O que significa que há um erro
crasso de avaliação no país que permite perpetuar os absurdos, os
obscurantismos, presentes na nossa história. Como dizia Bertolt Brecht, “Apenas quando somos instruídos pela
realidade é que podemos mudá-la”. Pensemos, a partir de agora, sobre isso.