Da
covardia ao beija-mão
Por
Alessandra Leles Rocha
Nem cômico, nem trágico. Apenas, nauseante.
É o que significa as demonstrações explícitas de hipocrisia deslavada, que uns
e outros tentam empregar, agora. Traços desesperados de quem imagina poder se
dissociar a todo custo da areia movediça do golpismo, na qual mergulharam
ostentando tão livre e espontânea vontade.
Coisas do Brasil! Coisas da sua
maldita herança colonial, em que da covardia ao beija-mão bastava um piscar de
olhos. Relações sociais movidas pela mais absoluta falta de ética, de moral, para
satisfazer, a qualquer preço, aos interesses de certos indivíduos. Interesses
muitas vezes inconfessáveis e nada republicanos.
Os atos de 8 de janeiro, em
Brasília, escalpelaram a história nacional, revelando através de um exame minucioso
e profundo as entranhas desse modus
operandi secular. Sob camadas mal cicatrizadas de revanchismo, de inconformismo,
de autoritarismo, de Supremacismo, o país era, de fato, uma bomba-relógio
prestes a explodir. Afinal, a dissimulação é um tecido muito frágil, não
resiste muito tempo às investidas do efeito cumulativo das forças de esgarçamento.
Mas, há uma explicação lógica
para esse cenário. Tudo começa pela Revolução Francesa, lá no século XVIII,
quando há, pela primeira vez, na história da humanidade, a ascensão das camadas
populares ao poder. O que parecia impossível, dadas as forças de resistência a
quaisquer mínimos sinais de mobilidade social, aconteceu e desestabilizou as
zonas de conforto das elites sociais da época.
Em polvorosa, diante do
assombroso acontecimento francês, as demais cortes europeias se viram obrigadas
a tomar providências urgentes e enérgicas para que não fossem também contaminadas.
De modo que a ideia emergida para se
tentar colocar o gênio de volta ao interior da lâmpada foi a Revolução
Industrial. Era preciso criar condições sociais que ocupassem essas camadas insurgentes,
a tal ponto que não tivessem espaços para se organizar, reivindicar e
consolidar a sua presença no poder. Pois, este era um direito que deveria
permanecer restrito às elites, ou seja, aqueles que detinham o capital.
A partir daí se constituiu uma
disputa de forças entre o proletariado e os donos dos meios de produção, os
quais também representavam o poder político-partidário e econômico. Porém, a
franca ausência de isonomia entre os polos de força devolveu e garantiu por algum
tempo o imobilismo social e, por consequência, as zonas de conforto dessas
elites e pseudoelites, que vieram a se estabelecer no mundo, foram preservadas.
Acontece que o efeito cumulativo das
forças de esgarçamento é fatal. De modo que as próprias conjunturas foram
estabelecendo novas realidades para as relações socioeconômicas que impuseram
novas dinâmicas às estratificações sociais, permitindo que outras vozes, ainda
que tidas na perspectiva minoritária, pudessem ser ouvidas. As camadas
populares não estavam mais tão invisibilizadas como certos grupos gastariam que
estivessem. O que acirrou as tensões.
Talvez, tenham se esquecido do
que manifestou Heráclito, ou seja, que “Ninguém
pode entrar duas vezes no mesmo rio, pois quando nele se entra novamente, não
se encontra as mesmas águas, e o próprio ser já se modificou”. O mundo
gira, a história avança e as realidades se transformam. Não adianta tentar
fazer caber a vida dentro de idealizações, de quereres e vontades particulares,
porque não funciona.
Então, nesses pouco mais de 500
anos de história do Brasil, o que se deu foi exatamente isso, uma queda de
braços inútil entre o retrógrado e o progresso, permeada por tentativas
golpistas que só nos deixaram desgastes e perdas incalculáveis. O país da Casa
Grande e Senzala, do século XVI, repaginada com o máximo da high tech contemporânea, é um delírio descabido, é surreal. Há uma
lacuna geracional intransponível e que não pode ser mudada porque está na própria
essência da evolução humana.
Por isso cada movimento de
conquista e afirmação das minorias sociais brasileiras é sempre contestada,
combatida, agredida, golpeada. É preciso entender que as elites e pseudoelites
nacionais não toleram a ideia de perder a hegemonia do discurso, das decisões, das
leis, das regras, dos poderes, porque elas acreditam se tratar de um direito
divino, absoluto, que lhes foi concedido desde o nascimento desse país. Vejam,
é mais um traço desse negacionismo que anda vigorando em tantas outras instâncias
sociais.
Então, quando percebem que fracassaram nos seus golpismos, nas suas empreitadas ardis, nas suas covardias beligerantes, eles recuam, temporariamente, tentando aplicar o velho estratagema do beija-mão. Quem sabe, valendo-se de uma boa dose de reverência, quase humilhante, não consigam angariar alguma mercê, no que tange a minimizar eventuais punições e represálias relacionadas aos seus maus hábitos e comportamentos sociais? Só que não. Afinal, qualquer um já sabe que isso não passa do mais puro oportunismo de ocasião, que não engana nem o mais crédulo dos viventes.