sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

Da covardia ao beija-mão


Da covardia ao beija-mão

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Nem cômico, nem trágico. Apenas, nauseante. É o que significa as demonstrações explícitas de hipocrisia deslavada, que uns e outros tentam empregar, agora. Traços desesperados de quem imagina poder se dissociar a todo custo da areia movediça do golpismo, na qual mergulharam ostentando tão livre e espontânea vontade.

Coisas do Brasil! Coisas da sua maldita herança colonial, em que da covardia ao beija-mão bastava um piscar de olhos. Relações sociais movidas pela mais absoluta falta de ética, de moral, para satisfazer, a qualquer preço, aos interesses de certos indivíduos. Interesses muitas vezes inconfessáveis e nada republicanos.

Os atos de 8 de janeiro, em Brasília, escalpelaram a história nacional, revelando através de um exame minucioso e profundo as entranhas desse modus operandi secular. Sob camadas mal cicatrizadas de revanchismo, de inconformismo, de autoritarismo, de Supremacismo, o país era, de fato, uma bomba-relógio prestes a explodir. Afinal, a dissimulação é um tecido muito frágil, não resiste muito tempo às investidas do efeito cumulativo das forças de esgarçamento.

Mas, há uma explicação lógica para esse cenário. Tudo começa pela Revolução Francesa, lá no século XVIII, quando há, pela primeira vez, na história da humanidade, a ascensão das camadas populares ao poder. O que parecia impossível, dadas as forças de resistência a quaisquer mínimos sinais de mobilidade social, aconteceu e desestabilizou as zonas de conforto das elites sociais da época.

Em polvorosa, diante do assombroso acontecimento francês, as demais cortes europeias se viram obrigadas a tomar providências urgentes e enérgicas para que não fossem também contaminadas.  De modo que a ideia emergida para se tentar colocar o gênio de volta ao interior da lâmpada foi a Revolução Industrial. Era preciso criar condições sociais que ocupassem essas camadas insurgentes, a tal ponto que não tivessem espaços para se organizar, reivindicar e consolidar a sua presença no poder. Pois, este era um direito que deveria permanecer restrito às elites, ou seja, aqueles que detinham o capital.

A partir daí se constituiu uma disputa de forças entre o proletariado e os donos dos meios de produção, os quais também representavam o poder político-partidário e econômico. Porém, a franca ausência de isonomia entre os polos de força devolveu e garantiu por algum tempo o imobilismo social e, por consequência, as zonas de conforto dessas elites e pseudoelites, que vieram a se estabelecer no mundo, foram preservadas.

Acontece que o efeito cumulativo das forças de esgarçamento é fatal. De modo que as próprias conjunturas foram estabelecendo novas realidades para as relações socioeconômicas que impuseram novas dinâmicas às estratificações sociais, permitindo que outras vozes, ainda que tidas na perspectiva minoritária, pudessem ser ouvidas. As camadas populares não estavam mais tão invisibilizadas como certos grupos gastariam que estivessem. O que acirrou as tensões.

Talvez, tenham se esquecido do que manifestou Heráclito, ou seja, que “Ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio, pois quando nele se entra novamente, não se encontra as mesmas águas, e o próprio ser já se modificou”. O mundo gira, a história avança e as realidades se transformam. Não adianta tentar fazer caber a vida dentro de idealizações, de quereres e vontades particulares, porque não funciona.

Então, nesses pouco mais de 500 anos de história do Brasil, o que se deu foi exatamente isso, uma queda de braços inútil entre o retrógrado e o progresso, permeada por tentativas golpistas que só nos deixaram desgastes e perdas incalculáveis. O país da Casa Grande e Senzala, do século XVI, repaginada com o máximo da high tech contemporânea, é um delírio descabido, é surreal. Há uma lacuna geracional intransponível e que não pode ser mudada porque está na própria essência da evolução humana.

Por isso cada movimento de conquista e afirmação das minorias sociais brasileiras é sempre contestada, combatida, agredida, golpeada. É preciso entender que as elites e pseudoelites nacionais não toleram a ideia de perder a hegemonia do discurso, das decisões, das leis, das regras, dos poderes, porque elas acreditam se tratar de um direito divino, absoluto, que lhes foi concedido desde o nascimento desse país. Vejam, é mais um traço desse negacionismo que anda vigorando em tantas outras instâncias sociais.

Então, quando percebem que fracassaram nos seus golpismos, nas suas empreitadas ardis, nas suas covardias beligerantes, eles recuam, temporariamente, tentando aplicar o velho estratagema do beija-mão. Quem sabe, valendo-se de uma boa dose de reverência, quase humilhante, não consigam angariar alguma mercê, no que tange a minimizar eventuais punições e represálias relacionadas aos seus maus hábitos e comportamentos sociais? Só que não. Afinal, qualquer um já sabe que isso não passa do mais puro oportunismo de ocasião, que não engana nem o mais crédulo dos viventes.