sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

Cidadania. História. Identidade nacional.


Cidadania. História. Identidade nacional.

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

É, no mínimo, curiosa a relação que a sociedade brasileira mantém com as suas bases históricas, com o seu patrimônio artístico-cultural, com o seu conjunto arquitetônico e paisagístico, como se não merecessem o mesmo apreço e significância daqueles presentes em outras partes do planeta 1.

Aliás, não foram raras as vezes em que ouvi de certos brasileiros, amantes das viagens, que era preciso sair do país para se ter acesso ao conhecimento, a cultura e as belezas da história, desdenhando por completo aquilo que lhe pertence enquanto cidadão brasileiro. Não é à toa que conhecemos pouco e mal o nosso próprio país. O que favorece enormemente ao descaso com a sua manutenção e preservação.

Lá fora, se os patrimônios artísticos-culturais e os conjuntos arquitetônicos e paisagísticos são melhor cuidados, a explicação é um tanto quanto óbvia, ou seja, senso identitário, consciência cidadã, educação e cultura, os quais juntos movimentam as ações governamentais para manterem os investimentos necessários para o zelo desses bens.

Ninguém cogita a hipótese de permitir destruir, ou degradar, ou lançar ao abandono, as suas bases históricas para não ter que custear a sua manutenção regular. Porque ao contrário, do que uns e outros pensam, a história de um país tem um impacto gigantesco no retorno de divisas, por conta do turismo nacional e estrangeiro, o qual se desdobra em uma cadeia imensa de agregação econômica.

Hotelaria. Transporte. Restaurantes. Souvenires. Teatros. Exposições. ... Que acabam por desempenhar um efeito multiplicador incomensurável na atração de novos visitantes, fazendo as engrenagens da história se manterem em franco movimento. Sem contar que é através dessas páginas vivas das camadas do passado nacional que se propicia a construção de novas perspectivas a respeito do país, desconstruindo velhos e deturpados rótulos advindos de um entendimento equivocado, raso e bastante limitado sobre a identidade nacional.

Quando não se conhece um país com mais profundidade, se abre a possibilidade de interpretações muito particulares de cada um, levando a prejuízos e estigmatizações desnecessárias.  Mas, só entende isso, o cidadão verdadeiramente consciente a respeito da sua identidade nacional, da dimensão que isso significa para ele, tanto individual quanto coletivamente.

É isso o que explica porque tantos acervos se perderam nesses pouco mais de 500 anos de história brasileira, entre incêndios, desabamentos, furtos, depredações, inundações. Essa consciência praticamente não existe no Brasil. Afinal, não basta uma dose de boa vontade dos governos, das autarquias, das autoridades, para extrair leite de pedra em termos de recursos orçamentários, quando o país já tem tantas outras prioridades para resolver, se a própria população não manifesta o seu apreço, a sua preocupação, a sua relação de afeto quanto à preservação e manutenção da sua própria história.

O Brasil carece de mudar esse olhar. Afinal, esse também é um reflexo nocivo da sua herança colonial, quando impôs como referência ao povo brasileiro a cultura eurocêntrica, num flagrante descaso, invisibilização e negação de quaisquer outras culturas. E isso está impregnado no inconsciente coletivo nacional. O que é de fora é sempre melhor, mais bonito, mais interessante, mais chique, enfim... Sobretudo, porque também está atrelado ao aspecto econômico que contribui para a reafirmação das desigualdades socioeconômicas nacionais, restringindo o acesso histórico-cultural às camadas mais privilegiadas da população.

É compreensível que em um país, onde mais da metade da população enfrente a inacessibilidade aos direitos sociais, embora previstos constitucionalmente, não se reconheça plenamente a importância da preservação e manutenção das suas bases históricas, do seu patrimônio artístico-cultural, do seu conjunto arquitetônico e paisagístico. Afinal, isso é entendido por muitas dessas pessoas como omissão, descaso e negligência do Estado, em relação às suas mazelas e dificuldades cotidianas.

Em contrapartida, as classes mais abastadas, justamente por se sentirem e se entenderem detentoras do poder e da riqueza, enxergam a questão pelo ponto de vista dos seus interesses, passando a preservar e manter segundo os seus próprios critérios de escolha. Sem quaisquer bases técnicas, científicas e, muito menos, de interesse coletivo nacional. Portanto, há um enviesamento da identidade histórico-cultural do país.

Assim, o Brasil vai se perdendo de si mesmo sem nunca, de fato, ter sabido quem é. Nossas pistas sobre o que fomos, porque agimos assim ou assado, porque resultamos nesse ou naquele desdobramento, vão se apagando pelo caminho, entregues às lacunas silenciosas e especulativas. Por isso, é essencial resgatar, ainda em tempo, nossas bases históricas, nosso patrimônio artístico-cultural, nosso conjunto arquitetônico e paisagístico, que sintetizam a essência e os matizes da nossa identidade nacional.

Não nos esqueçamos das palavras de Sérgio Buarque de Holanda, “Para estudar o passado de um povo, de uma instituição, de uma classe, não basta aceitar ao pé da letra tudo quanto nos deixou a simples tradição escrita. É preciso fazer falar a multidão imensa dos figurantes mudos que enchem o panorama da história e são muitas vezes mais interessantes e mais importantes do que os outros, os que apenas escrevem a história”.