Cidadania.
História. Identidade nacional.
Por
Alessandra Leles Rocha
É, no mínimo, curiosa a relação
que a sociedade brasileira mantém com as suas bases históricas, com o seu patrimônio
artístico-cultural, com o seu conjunto arquitetônico e paisagístico, como se
não merecessem o mesmo apreço e significância daqueles presentes em outras
partes do planeta 1.
Aliás, não foram raras as vezes
em que ouvi de certos brasileiros, amantes das viagens, que era preciso sair do
país para se ter acesso ao conhecimento, a cultura e as belezas da história,
desdenhando por completo aquilo que lhe pertence enquanto cidadão brasileiro. Não
é à toa que conhecemos pouco e mal o nosso próprio país. O que favorece
enormemente ao descaso com a sua manutenção e preservação.
Lá fora, se os patrimônios artísticos-culturais
e os conjuntos arquitetônicos e paisagísticos são melhor cuidados, a explicação
é um tanto quanto óbvia, ou seja, senso identitário, consciência cidadã,
educação e cultura, os quais juntos movimentam as ações governamentais para
manterem os investimentos necessários para o zelo desses bens.
Ninguém cogita a hipótese de
permitir destruir, ou degradar, ou lançar ao abandono, as suas bases históricas
para não ter que custear a sua manutenção regular. Porque ao contrário, do que
uns e outros pensam, a história de um país tem um impacto gigantesco no retorno
de divisas, por conta do turismo nacional e estrangeiro, o qual se desdobra em
uma cadeia imensa de agregação econômica.
Hotelaria. Transporte.
Restaurantes. Souvenires. Teatros. Exposições. ... Que acabam por desempenhar
um efeito multiplicador incomensurável na atração de novos visitantes, fazendo
as engrenagens da história se manterem em franco movimento. Sem contar que é
através dessas páginas vivas das camadas do passado nacional que se propicia a
construção de novas perspectivas a respeito do país, desconstruindo velhos e
deturpados rótulos advindos de um entendimento equivocado, raso e bastante
limitado sobre a identidade nacional.
Quando não se conhece um país com
mais profundidade, se abre a possibilidade de interpretações muito particulares
de cada um, levando a prejuízos e estigmatizações desnecessárias. Mas, só entende isso, o cidadão
verdadeiramente consciente a respeito da sua identidade nacional, da dimensão que
isso significa para ele, tanto individual quanto coletivamente.
É isso o que explica porque
tantos acervos se perderam nesses pouco mais de 500 anos de história
brasileira, entre incêndios, desabamentos, furtos, depredações, inundações. Essa
consciência praticamente não existe no Brasil. Afinal, não basta uma dose de
boa vontade dos governos, das autarquias, das autoridades, para extrair leite
de pedra em termos de recursos orçamentários, quando o país já tem tantas outras
prioridades para resolver, se a própria população não manifesta o seu apreço, a
sua preocupação, a sua relação de afeto quanto à preservação e manutenção da
sua própria história.
O Brasil carece de mudar esse
olhar. Afinal, esse também é um reflexo nocivo da sua herança colonial, quando impôs
como referência ao povo brasileiro a cultura eurocêntrica, num flagrante
descaso, invisibilização e negação de quaisquer outras culturas. E isso está
impregnado no inconsciente coletivo nacional. O que é de fora é sempre melhor,
mais bonito, mais interessante, mais chique, enfim... Sobretudo, porque também está
atrelado ao aspecto econômico que contribui para a reafirmação das
desigualdades socioeconômicas nacionais, restringindo o acesso histórico-cultural
às camadas mais privilegiadas da população.
É compreensível que em um país,
onde mais da metade da população enfrente a inacessibilidade aos direitos
sociais, embora previstos constitucionalmente, não se reconheça plenamente a importância
da preservação e manutenção das suas bases históricas, do seu patrimônio artístico-cultural,
do seu conjunto arquitetônico e paisagístico. Afinal, isso é entendido por
muitas dessas pessoas como omissão, descaso e negligência do Estado, em relação
às suas mazelas e dificuldades cotidianas.
Em contrapartida, as classes mais
abastadas, justamente por se sentirem e se entenderem detentoras do poder e da
riqueza, enxergam a questão pelo ponto de vista dos seus interesses, passando a
preservar e manter segundo os seus próprios critérios de escolha. Sem quaisquer
bases técnicas, científicas e, muito menos, de interesse coletivo nacional. Portanto,
há um enviesamento da identidade histórico-cultural do país.
Assim, o Brasil vai se perdendo de
si mesmo sem nunca, de fato, ter sabido quem é. Nossas pistas sobre o que
fomos, porque agimos assim ou assado, porque resultamos nesse ou naquele
desdobramento, vão se apagando pelo caminho, entregues às lacunas silenciosas e
especulativas. Por isso, é essencial resgatar, ainda em tempo, nossas bases
históricas, nosso patrimônio artístico-cultural, nosso conjunto arquitetônico e
paisagístico, que sintetizam a essência e os matizes da nossa identidade
nacional.
Não nos esqueçamos das palavras de Sérgio Buarque de Holanda, “Para estudar o passado de um povo, de uma instituição, de uma classe, não basta aceitar ao pé da letra tudo quanto nos deixou a simples tradição escrita. É preciso fazer falar a multidão imensa dos figurantes mudos que enchem o panorama da história e são muitas vezes mais interessantes e mais importantes do que os outros, os que apenas escrevem a história”.