O
grito silencioso das nevascas
Por
Alessandra Leles Rocha
As imagens captadas pelos
veículos de comunicação e informação não deixam dúvidas quanto ao rigor das
nevascas no hemisfério norte. Camadas espessas de gelo branco, cortadas por
rajadas de vento e chuvas congeladas, parecem realmente ultrapassar as telas e
nos atingir em cheio. Pessoas já morreram e milhares de outras tendem a ter o
mesmo fim, dadas as desigualdades de acesso aos sistemas de aquecimento, às
moradias preparadas para as intempéries climáticas, aos vestuários apropriados,
à alimentação ajustada ao regime calórico necessário.
No entanto, é bom que se diga que
a suficiência de recursos não extingue quaisquer impactos negativos. Esse não é
o fiel da balança! Os eventos extremos do clima têm imposto situações de
isolamento, muitas vezes, prolongadas e que impedem o trânsito das pessoas
pelas cidades a fim de recompor os estoques de produtos fundamentais para a
sobrevivência. Além disso, os serviços de comunicação e fornecimento de energia
podem estar sob interrupção forçada por riscos de incêndio. De modo que ter ou
não o dinheiro é pouco relevante nessas conjunturas.
Diante desse cenário, então, deveríamos
parar e refletir sobre o sentido das grandes e pequenas guerras espalhadas pelo
mundo. Afinal, todos os argumentos e justificativas empregadas para sustentar
os conflitos perdem rapidamente a sua consistência. Pois é, o ser humano não
precisa criar situações beligerantes na medida em que, naturalmente, já é
incapaz de lidar com as adversidades e imprevistos que a própria vida lhe
impõe. Sobretudo, agora, na contemporaneidade, quando somos confrontados pelos
eventos extremos do clima.
Por mais esforços e estratégias
que venham sendo empregadas para mitigar os estragos, os prejuízos, as perdas,
a força da natureza tem sido tão avassaladora que tudo parece insuficiente e
ineficiente. Nossas certezas e convicções nunca estiveram tão desprotegidas e
fragilizadas! A velocidade das transformações ultrapassa a capacidade de
controle humano. Da manhã para tarde, da tarde para noite, da noite para a
madrugada, um traço do insólito pode riscar o espaço e desconstruir a lógica
existente.
Nunca fomos tão mortais! Nossa
força se apequena em um simples piscar de olhos. Será mesmo que somos
plenamente livres? Ou autossuficientes? Ou poderosos? Nossos esforços podem se
reduzir a nada, quando menos se espera. Nunca foi tão clara a ideia de que não
somos; mas, apenas estamos de passagem por esse mundo. Numa viagem em que se
chega e vai sem bagagens. E não adianta brigar, nem tentar amealhar, ou
usurpar, ou pilhar o que quer que seja. As regras desse jogo são imutáveis.
Penso que a raça humana anda
mandando muito mal nas suas atitudes e comportamentos, não é mesmo? Porque nada
parece fazer sentido, principalmente, quando se analisa a vida por uma
perspectiva um pouco mais aprofundada, existencialista. A ânsia pela liberdade tem corrompido as
escolhas e o senso de responsabilidade inerente a elas. Assim, a realidade
contemporânea acontece de maneira atabalhoada, irreflexiva, inconsequente,
porque ninguém se dá conta de que “Eu
sempre posso escolher, mas devo saber que, se não escolher, ainda estou
escolhendo” (Jean-Paul Sartre). Talvez, por isso, os desdobramentos e
consequências desse processo vêm se avolumando como escombros cotidianos que
não se pode desfazer ou descartar.
Assim, a raça humana deve se atentar para o fato de que “Justificar tragédias como ‘vontade divina’ tira da gente a responsabilidade por nossas escolhas” (Umberto Eco). Ao contemplar o grito silencioso das nevascas, não é a fúria da imensidão branca e fria o que causa desconforto e medo; mas, a tradução materializada de uma deturpada simbiose que vem se estabelecendo entre os eventos extremos do clima e o movimento existencial humano. Por isso, tenhamos cuidado! Com nossos atos. Com nossos pensamentos.