quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

A humanidade e seus telhados de vidro


A humanidade e seus telhados de vidro

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Faltam poucas horas para o romper de um novo ano e há quem, ainda, insista em jogar pedras nos telhados de vidro dos outros. Para aqueles que ainda não se deram conta, esse fenômeno esvazia completamente a ideia de liberdade plena e absoluta defendida na contemporaneidade. A crença de que as arenas virtuais e reais são espaços abertos e legitimados para ser e estar sem o cerceamento de regras, de protocolos, de limites, desaparece quando, por um mínimo ato impensado, alguém reivindica respeito, ou compostura, ou empatia, ou qualquer coisa que o valha.

A grande questão é que, em razão do individualismo, as pessoas só se dão conta de que cruzaram as fronteiras quando elas próprias se sentem atingidas, incomodadas, agredidas, pelos excessos verborrágicos e comportamentais de seus pares. Até que isso aconteça não há uma reflexão, uma análise crítica, da sociedade a esse respeito. Daí serem pedras e mais pedras cruzando os céus contemporâneos de maneira totalmente imprevidente. Causando estragos de menor e maior proporção.

Infelizmente, a humanidade atingiu um patamar nas suas relações sociais que reduz a importância e a gravidade das suas expressões e manifestações, como se tudo pudesse ser considerado inofensivo, divertido, normal, ... quando não é. Afinal, cada indivíduo só pode responder por si, no que diz respeito ao modo como percebe, sente e responde às interações com o mundo. Ninguém acorda todos os dias com o mesmo bom humor, a mesma disposição. Então, quando se tem um ou mais interlocutores participando do processo é ponto de partida fundamental estabelecer certos limites e etiquetas.

Faz-se necessário entender que os excessos verborrágicos e comportamentais contemporâneos têm se enveredado por um caminho de apropriação do direito alheio, subjugando uns aos outros às decisões tomadas à sua revelia. De modo que esse movimento tende a exigir das pessoas um nível de aceitação e concordância, o qual nem sempre elas estão dispostas ou é pertinente à gravidade dos fatos. E isso é muito sério!

Há um trecho da crônica “Não pode tocar” (2014), de Martha Medeiros, que diz: “Mantenha-se atrás da faixa amarela, não chegue muito perto, não se acerque de meus traumas, não invada meus mistérios, não atrite-se com o meu passado, não tente entender nada: é proibido tocar no sagrado de cada um” 1. Entende, agora? Apesar de todos os rodopios que o planeta Terra dá diariamente, seres humanos ainda são humanos. Têm sentimentos. Têm emoções. Têm fragilidades que nem mesmo sabem que têm. Nossas perspectivas, nossas expectativas, nossas identidades, são literalmente traços pessoais e intransferíveis. Não dá para tentar fazer o outro caber em você, e vice-versa.

Ah, como seria bom se o mundo declarasse armistício para poupar os telhados de vidro! Para que pudéssemos sair, por aí, cantando a plenos pulmões o refrão “[...]Bombas na guerra-magia / Ninguém matava, ninguém morria / Nas trincheiras da alegria / O que explodia era o amor / Nas trincheiras da alegria / O que explodia era o amor [...]” 2. Sim, porque é a estupidez que não deixa o ser humano se aproximar da paz, do amor, da alegria, das maiores e melhores energias. É a estupidez que o faz refém do seu individualismo, do seu narcisismo, do seu egoísmo, de modo que ele acaba preso na sua própria espiral de loucura enceguecida.

Considerando, então, que faltam poucas horas para o romper de um novo ano, nada melhor do que pensar a respeito das seguintes palavras de José Saramago, “[...] se antes de cada ato nosso nós puséssemos a prever todas as consequências dele a pensar nelas a sério, primeiro as imediatas, depois as prováveis, depois as possíveis, depois as imagináveis, não chegaríamos sequer a mover-nos de onde o primeiro pensamento nos tivesse feito parar” (Ensaio sobre a Cegueira, 1995). Realmente, elas são a síntese mais perfeita do que precisa o mundo contemporâneo. Assim, que tal fazer delas uma meta para 2023, hein?