A
humanidade e seus telhados de vidro
Por
Alessandra Leles Rocha
Faltam poucas horas para o romper
de um novo ano e há quem, ainda, insista em jogar pedras nos telhados de vidro
dos outros. Para aqueles que ainda não se deram conta, esse fenômeno esvazia
completamente a ideia de liberdade plena e absoluta defendida na contemporaneidade.
A crença de que as arenas virtuais e reais são espaços abertos e legitimados
para ser e estar sem o cerceamento de regras, de protocolos, de limites,
desaparece quando, por um mínimo ato impensado, alguém reivindica respeito, ou
compostura, ou empatia, ou qualquer coisa que o valha.
A grande questão é que, em razão
do individualismo, as pessoas só se dão conta de que cruzaram as fronteiras
quando elas próprias se sentem atingidas, incomodadas, agredidas, pelos
excessos verborrágicos e comportamentais de seus pares. Até que isso aconteça não
há uma reflexão, uma análise crítica, da sociedade a esse respeito. Daí serem
pedras e mais pedras cruzando os céus contemporâneos de maneira totalmente
imprevidente. Causando estragos de menor e maior proporção.
Infelizmente, a humanidade
atingiu um patamar nas suas relações sociais que reduz a importância e a
gravidade das suas expressões e manifestações, como se tudo pudesse ser
considerado inofensivo, divertido, normal, ... quando não é. Afinal, cada
indivíduo só pode responder por si, no que diz respeito ao modo como percebe,
sente e responde às interações com o mundo. Ninguém acorda todos os dias com o
mesmo bom humor, a mesma disposição. Então, quando se tem um ou mais interlocutores
participando do processo é ponto de partida fundamental estabelecer certos
limites e etiquetas.
Faz-se necessário entender que os
excessos verborrágicos e comportamentais contemporâneos têm se enveredado por
um caminho de apropriação do direito alheio, subjugando uns aos outros às
decisões tomadas à sua revelia. De modo que esse movimento tende a exigir das
pessoas um nível de aceitação e concordância, o qual nem sempre elas estão
dispostas ou é pertinente à gravidade dos fatos. E isso é muito sério!
Há um trecho da crônica “Não pode
tocar” (2014), de Martha Medeiros, que diz: “Mantenha-se
atrás da faixa amarela, não chegue muito perto, não se acerque de meus traumas,
não invada meus mistérios, não atrite-se com o meu passado, não tente entender
nada: é proibido tocar no sagrado de cada um” 1.
Entende, agora? Apesar de todos os rodopios que o planeta Terra dá diariamente,
seres humanos ainda são humanos. Têm sentimentos. Têm emoções. Têm fragilidades
que nem mesmo sabem que têm. Nossas perspectivas, nossas expectativas, nossas
identidades, são literalmente traços pessoais e intransferíveis. Não dá para
tentar fazer o outro caber em você, e vice-versa.
Ah, como seria bom se o mundo
declarasse armistício para poupar os telhados de vidro! Para que pudéssemos
sair, por aí, cantando a plenos pulmões o refrão “[...]Bombas na guerra-magia / Ninguém matava, ninguém morria / Nas
trincheiras da alegria / O que explodia era o amor / Nas trincheiras da alegria
/ O que explodia era o amor [...]” 2. Sim,
porque é a estupidez que não deixa o ser humano se aproximar da paz, do amor,
da alegria, das maiores e melhores energias. É a estupidez que o faz refém do
seu individualismo, do seu narcisismo, do seu egoísmo, de modo que ele acaba
preso na sua própria espiral de loucura enceguecida.
2 Festa do Interior (Moraes Moreira / Abel Silva) - https://www.youtube.com/watch?v=kkCft6kANdY