sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Único. Extraordinário. Inigualável. Raro. ... Simplesmente Pelé.


Único. Extraordinário. Inigualável. Raro. ... Simplesmente Pelé. 

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Olhando para esse mundo tão mesquinho, tão preconceituoso, tão intolerante, a notícia da morte de Edson Arantes do Nascimento, o Rei Pelé, é um choque de alta voltagem na consciência humana. Dentro e fora dos espaços de comunicação nacionais e estrangeiros, a história do menino negro e pobre, nascido em uma pequena cidade do interior das Minas Gerais, traz nas entrelinhas a impossibilidade da reflexão.

Afinal de contas, na lógica que se tenta impingir à vida, ele tinha tudo para não ser o que foi. Filho de um país tão duramente impregnado pelo ranço da sua herança colonial, Pelé poderia ter sido apenas mais um na multidão. No entanto, quis o destino cortar a altivez eurocêntrica predominante nessa ex-colônia chamada Brasil, proclamando um rei que subvertia por completo os padrões.

Pura predestinação! A vida foi fluindo como tinha que ser e Pelé se deixando conduzir dentro das circunstâncias. Só isso. Ele não se impôs para chegar nesse ou naquele lugar ou para fazer com que o Brasil e o mundo rendessem reverências à sua pessoa, ao seu talento. Era como se o roteiro da sua existência gloriosa, magnífica, já estivesse traçado. Tinha que ser assim, e foi. Não houve mesquinharia, preconceito ou intolerância, que puderam ser efetivamente capazes de se materializar em obstáculos para Pelé.

De modo que à revelia e contragosto de muitos brasileiros, Pelé se tornou a cara do Brasil para o mundo. Aquele menino negro e pobre, nascido em uma pequena cidade do interior, fez luzir o lado bom de um país tão impregnado de problemas e desafios. Pois é, brincando despretensiosamente com a bola nos pés, ele fez o Brasil enxergar e admitir o valor e a importância da sua diversidade humana, que até então, jamais se ousara fazer.

Aliás, é fundamental essa percepção, porque durante a realização da Copa do Mundo, no Catar, a Federação internacional de Futebol Associado (FIFA) impôs restrições a eventuais manifestações de caráter político durante as partidas, por parte dos atletas, sob a alegação de que o esporte não deve ter viés político.

Acontece que a vida em si é política! Não é necessário hastear essa ou aquela bandeira, ou emitir declarações, ou organizar protestos. A política está nas linhas e nas entrelinhas dos acontecimentos. Então, como dizer algo assim, quando Pelé foi a expressão máxima disso. Longe das pirotecnias oportunistas, ele sempre foi um cidadão engajado, consciente e responsável pelo seu poder de influência e formação de opinião.

Pelé não era só o gênio, o maior atleta do século XX, o Rei do Futebol. Ele provou que a sua linguagem, lapidada pelo esporte, poderia ser mais eloquente do que quaisquer outras. Haja vista, um episódio internacional ocorrido em 1969. Em excursão pela África, o Santos Futebol Clube que tinha como a principal estrela da equipe, Pelé, acabou desencadeando um cessar temporário dos conflitos entre o Congo Belga e a Nigéria. Mas, não para por aí. Também, em 1969, em pleno Maracanã, ao completar seu milésimo gol, Pelé se manifestou sobre a importância de proteger as crianças necessitadas do país. Controvérsias à parte, ninguém pode dizer que o Rei estava errado.

Acontece que são situações como essas que expõem o mundo como ele realmente é. Seria muito mais fácil para a sociedade que Pelé fosse só um desportista de talento. Mas, como invisibilizar um ser humano da envergadura de Pelé? Por si só, ele era a personificação de questões sobre as quais o mundo não quer pensar, não quer discutir, não quer transformar, ou seja, o racismo e a desigualdade.  E quis o destino que nada disso fosse empecilho para ele ser quem foi transitando sem amarras por um mundo arraigadamente eurocêntrico.   

Vejam como é a vida! Há 500 anos o Brasil tenta construir uma imagem social não condizente com a sua história, com a sua diversidade identitária; mas, o que prevalece intacta é a associação imediata entre Pelé e o país. Esteja um brasileiro onde estiver, nesse mundo, ao ser indagado sobre a sua nacionalidade, a resposta sempre faz de Pelé o sinônimo perfeito de Brasil. Não importa a opinião de uns e outros. Não importa. A história contemporânea brasileira se conduziu para ser escrita não pela perspectiva colonial; mas, pela perspectiva pós-colonial através de Pelé. Está aí mais um gol de placa do Rei!

Assim, agora, Pelé poderia dizer “Através dos passos alternados de perda e ganho, silêncio e atividade, nascimento e morte, eu trilho o caminho da imortalidade” (Deepak Chopra). Mas, para quem o conheceu, as palavras serão sempre outras, ou seja, “Tudo que a memória amou já ficou eterno” (Adélia Prado). Afinal, seres como ele nos fazem entender que “A vida é toda ela memória, exceto por um momento presente indo embora tão rápido que você mal percebe ele ir” (Tennessee Williams)