Único.
Extraordinário. Inigualável. Raro. ... Simplesmente Pelé.
Por
Alessandra Leles Rocha
Olhando para esse mundo tão
mesquinho, tão preconceituoso, tão intolerante, a notícia da morte de Edson
Arantes do Nascimento, o Rei Pelé, é um choque de alta voltagem na consciência
humana. Dentro e fora dos espaços de comunicação nacionais e estrangeiros, a
história do menino negro e pobre, nascido em uma pequena cidade do interior das
Minas Gerais, traz nas entrelinhas a impossibilidade da reflexão.
Afinal de contas, na lógica que
se tenta impingir à vida, ele tinha tudo para não ser o que foi. Filho de um
país tão duramente impregnado pelo ranço da sua herança colonial, Pelé poderia
ter sido apenas mais um na multidão. No entanto, quis o destino cortar a
altivez eurocêntrica predominante nessa ex-colônia chamada Brasil, proclamando
um rei que subvertia por completo os padrões.
Pura predestinação! A vida foi
fluindo como tinha que ser e Pelé se deixando conduzir dentro das
circunstâncias. Só isso. Ele não se impôs para chegar nesse ou naquele lugar ou
para fazer com que o Brasil e o mundo rendessem reverências à sua pessoa, ao
seu talento. Era como se o roteiro da sua existência gloriosa, magnífica, já
estivesse traçado. Tinha que ser assim, e foi. Não houve mesquinharia,
preconceito ou intolerância, que puderam ser efetivamente capazes de se
materializar em obstáculos para Pelé.
De modo que à revelia e
contragosto de muitos brasileiros, Pelé se tornou a cara do Brasil para o
mundo. Aquele menino negro e pobre, nascido em uma pequena cidade do interior,
fez luzir o lado bom de um país tão impregnado de problemas e desafios. Pois é,
brincando despretensiosamente com a bola nos pés, ele fez o Brasil enxergar e
admitir o valor e a importância da sua diversidade humana, que até então,
jamais se ousara fazer.
Aliás, é fundamental essa
percepção, porque durante a realização da Copa do Mundo, no Catar, a Federação
internacional de Futebol Associado (FIFA) impôs restrições a eventuais
manifestações de caráter político durante as partidas, por parte dos atletas,
sob a alegação de que o esporte não deve ter viés político.
Acontece que a vida em si é
política! Não é necessário hastear essa ou aquela bandeira, ou emitir
declarações, ou organizar protestos. A política está nas linhas e nas
entrelinhas dos acontecimentos. Então, como dizer algo assim, quando Pelé foi a
expressão máxima disso. Longe das pirotecnias oportunistas, ele sempre foi um
cidadão engajado, consciente e responsável pelo seu poder de influência e formação
de opinião.
Pelé não era só o gênio, o maior
atleta do século XX, o Rei do Futebol. Ele provou que a sua linguagem, lapidada
pelo esporte, poderia ser mais eloquente do que quaisquer outras. Haja vista,
um episódio internacional ocorrido em 1969. Em excursão pela África, o Santos
Futebol Clube que tinha como a principal estrela da equipe, Pelé, acabou
desencadeando um cessar temporário dos conflitos entre o Congo Belga e a
Nigéria. Mas, não para por aí. Também, em 1969, em pleno Maracanã, ao completar
seu milésimo gol, Pelé se manifestou sobre a importância de proteger as
crianças necessitadas do país. Controvérsias à parte, ninguém pode dizer que o
Rei estava errado.
Acontece que são situações como
essas que expõem o mundo como ele realmente é. Seria muito mais fácil para a
sociedade que Pelé fosse só um desportista de talento. Mas, como invisibilizar
um ser humano da envergadura de Pelé? Por si só, ele era a personificação de
questões sobre as quais o mundo não quer pensar, não quer discutir, não quer
transformar, ou seja, o racismo e a desigualdade. E quis o destino que nada disso fosse
empecilho para ele ser quem foi transitando sem amarras por um mundo
arraigadamente eurocêntrico.
Vejam como é a vida! Há 500 anos
o Brasil tenta construir uma imagem social não condizente com a sua história,
com a sua diversidade identitária; mas, o que prevalece intacta é a associação
imediata entre Pelé e o país. Esteja um brasileiro onde estiver, nesse mundo,
ao ser indagado sobre a sua nacionalidade, a resposta sempre faz de Pelé o
sinônimo perfeito de Brasil. Não importa a opinião de uns e outros. Não
importa. A história contemporânea brasileira se conduziu para ser escrita não
pela perspectiva colonial; mas, pela perspectiva pós-colonial através de Pelé.
Está aí mais um gol de placa do Rei!
Assim, agora, Pelé poderia dizer “Através dos passos alternados de perda e ganho, silêncio e atividade, nascimento e morte, eu trilho o caminho da imortalidade” (Deepak Chopra). Mas, para quem o conheceu, as palavras serão sempre outras, ou seja, “Tudo que a memória amou já ficou eterno” (Adélia Prado). Afinal, seres como ele nos fazem entender que “A vida é toda ela memória, exceto por um momento presente indo embora tão rápido que você mal percebe ele ir” (Tennessee Williams).