segunda-feira, 24 de outubro de 2022

Fake News, Ofensas, Tiros e Bombas


Fake News, Ofensas, Tiros e Bombas

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Em busca da liberdade plena e irrestrita, como se isso fosse realmente possível, uma enxurrada de desinformação, de distorções da realidade e de mentiras informam que uma imensa parcela da população não quer mais assumir seus posicionamentos sociais. É a velha história de apontar no outro aquilo que não quer associado a si mesmo!

Acontece que não é bem assim que as coisas se processam! Não dá para manipular a realidade a esse ponto, na medida em que a vida não é fotografia, é filme. Um enredo de inúmeros acontecimentos, repleto de protagonistas, de coadjuvantes e de figurantes que se alternam nas situações. Sem contar, que lá pelas tantas, algum personagem mais afoito pode querer colar algum caco, no texto, sem avisar para ninguém. De modo que um ajuste aqui, outro ali, uma modificação acolá, pode comprometer por completo a lógica da história e deixá-la sem pé nem cabeça.

O que o Brasil e o mundo assistiram, ontem, foi exatamente isso 1. Como já acontecido em outros momentos da campanha de reeleição do Presidente da República, quando questões indigestas vieram à tona inadvertidamente, foi preciso lançar mão de uma cortina de fumaça para desviar o foco e silenciar os questionamentos e discussões sobre o que era, de fato, notícia relevante. Acontece que a desinformação, a distorção e a mentira são forjadas na idealização, na perspectiva fantasiosa de alguém, não condizendo com a realidade e implicando em um desfecho completamente na contramão do esperado.

Pois é, se a ultradireita brasileira admitisse exatamente o que pensa, o que quer, o que sonha para o país; sobretudo, no campo das relações socioeconômicas, nenhum espetáculo dantesco precisaria ser encenado. Nem tampouco, haveria tantas coisas estranhas a se explicar como as que ficaram pairando no ar, na tarde de ontem. Ora, como alguém em prisão domiciliar permanece de posse de um arsenal, incluindo armas de uso restrito das Forças armadas? Não sabia que pessoas com o registro de CAC (Colecionador, Atirador desportivo e Caçador) teriam a possibilidade de adquirir fuzis e granadas? Por que sua licença de posse e uso desse arsenal não foi revogada?

Me parece que, no fundo, a ultradireita sabe que seus posicionamentos são estranhos à realidade contemporânea, são desconfortáveis ao desenho social do mundo, e por isso, ficam tentando dourar a pílula para ganharem alguma adesão. É aí que esse comportamento me traz a impressão de que ela não se vale da desinformação, da distorção e da mentira para persuadir os outros; mas, para convencer a si mesma. Como se pudesse dar a Narciso um rosto que, na verdade, não lhe pertence. Como se pudesse construir uma narrativa mais palatável, mais plausível, apesar de todos os argumentos serem vis, infames.

E nessa de dizer e desdizer o tempo todo, a ultradireita brasileira vai tecendo uma teia de mal-entendidos, de imprecisões, que limita o seu raio de simpatia dentro da população. Curioso, mas ela não extrapola seu teto de adesão somente por causa da estratificação social entre as camadas mais elitistas. Ela não extrapola porque não gera credibilidade, uma confiança irrestrita na população em geral, dada a sua tendência de não defender com firmeza os seus posicionamentos. O que explica porque ela acaba se enveredando pelas práxis populistas; embora, só consiga arrecadar resultados ínfimos e voláteis e consequências desastrosas para o país.  

Não é à toa, então, de que “pior a emenda que o soneto”. Além de tudo o que foi dito até aqui, há um outro componente importantíssimo que não pode ser esquecido. O cenário atual brasileiro, impactado principalmente pelos momentos terríveis da Pandemia de COVID-19 e seus desdobramentos socioeconômicos, trouxe um cansaço moral para uma imensa maioria dos cidadãos. As pessoas estão exauridas, esgotadas, cansadas de um cotidiano sofrido e minimamente reconfortante. Elas não estão dispostas a participar, ainda que na condição de meras espectadoras, de encenações tão deploráveis. Aliás, para muitas delas, isso soa como profundo desrespeito, quando o que elas realmente esperam do país é dignidade, é comprometimento, é respeito, é seriedade.

Diante de conjunturas socioeconômicas, internas e externas, tão adversas, ver alguém se colocando acima do Bem e do Mal, afrontando as leis, atirando contra agentes policiais, joga uma pá de cal nas esperanças sobre o país. A sensação de que a anarquia foi deflagrada é totalmente antiproducente; pois, ela causa tensão. Ela sinaliza o fundo do poço de um país que perdeu o respeito a si mesmo.

Mesmo que tenha havido um desfecho adequado 2, o curso daquelas horas nefastas, infelizmente maculou a Democracia brasileira mais uma vez! Afinal, segundo Émile Durkheim, “A construção do ser social, feita em boa parte pela educação, é a assimilação pelo indivíduo de uma série de normas e princípios – sejam morais, religiosos, éticos ou de comportamento – que balizam a conduta do indivíduo num grupo. O homem, mais do que formulador da sociedade, é um produto dela”. Sendo assim, as entrelinhas do que aconteceu, na tarde de ontem, não deixam dúvidas sobre que tipo de sociedade a ultradireita brasileira quer consolidar.