quinta-feira, 8 de setembro de 2022

No fundo, o que importa não são eles, são elas...


No fundo, o que importa não são eles, são elas...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Na falta de um discurso efetivamente produtivo, eis que os homens brasileiros decidiram apelar para o repertório misógino para esconder sua fragilidade comunicativa e intelectual em uma cortina de fumaça... cor de rosa. Pois é. Quem diria, não é mesmo?! Algo que só comprova como tais comportamentos deploráveis são estrategicamente pensados 1.

Afinal, tendo em vista de que o mundo não orbita mais a consciência em torno de uma mulher coadjuvante da sociedade, quaisquer derrapagens discursivas e comportamentais conduzem imediatamente a um palavrório sem fim. E é justamente isso o que eles querem, ou seja, entreter a população para não terem que se explicar ou discutir o que é realmente relevante no momento.

Feio? Abjeto? Non sense? Sim. Mas, talvez, tenha sido o que lhes restou como repertório de dissimulação para a sua sua completa falta de habilidades e competências em lidar com o mundo, o qual eles foram convencidos de que lhes pertencia. A responsabilidade, na maioria das vezes, soa sim, muito desconfortável e acaba os induzindo a certos espetáculos dantescos na tentativa de mitigar a situação.

E aí se chega na seguinte constatação: “Ruim com elas. Pior sem elas”. À revelia de sua vontade, um bando de machos alfa admite que precisa das mulheres. Isso não é pouca coisa não! Em plena sociedade patriarcal, qualquer gesto que alce as mulheres ao centro das atenções, desconstrói as narrativas em torno da sua invisibilidade, da sua desimportância no mundo.  

Concordo que é de uma maneira torta, equivocada, constrangedora; mas, temos que admitir que é muito difícil para os homens assumir as suas vulnerabilidades, as suas incapacidades. Então, ao buscar nas mulheres o suporte, ainda que subjetivo, é como se a situação fosse duplicada no seu dissabor. Ele não quer, e talvez não possa perder, o seu status de mandatário, de dominador, de poderoso, o qual arrasta desde sempre. Daí a falta de modos, o mau humor, a brutalidade, a exacerbação misógina.

Acontece que todo esse movimento, no fundo, é inútil. Nada do que fazem ou falam encobre a sua incompletude. As entrelinhas são lidas e entendidas por quem está ao redor. Sem contar que há uma reafirmação da violência contra a mulher, deixando cada vez mais visível o quanto são vítimas do contexto histórico patriarcal. Na tentativa de se agigantar, de se mostrar maior, mais forte e mais poderoso, eles se apequenam em todos os sentidos.

Vejam, por exemplo, que uma mulher ao ser vítima de quaisquer manifestações misóginas acaba reverberando seu protagonismo nos meios de comunicação e informação, enquanto que o homem responsável pelo absurdo se dilui rapidamente na história. De modo que a cortina de fumaça que ele tentou construir tornou-se rala e efêmera, ou seja, insuficiente para atender aos seus objetivos e para assegurar a sua posição de destaque no cenário social.   

No entanto, é olhando atentamente para esse movimento, cada vez mais recorrente no país, que se percebe a formação de um ciclo vicioso. Não me parece mais que a misoginia, enquanto cortina de fumaça, caiba como justificativa para todas as situações. O crescimento vertiginoso da participação e do protagonismo feminino na sociedade ultrapassou as fronteiras de quaisquer eventuais consentimentos masculinos. Elas não precisam mais se sujeitar a uma visibilidade condicionada as vontades e quereres dos homens, nessa ou naquela situação.

E como já ficou clara a dificuldade masculina em lidar e resolver certas situações do cotidiano, a misoginia passou a figurar como um instrumento de controle feminino, independentemente da situação. Não é preciso lançar mão dela apenas para cortinas de fumaça. A fim de não verem ameaçados os seus espaços, os seus pseudopoderes, os homens se reafirmam socialmente através das práxis misóginas, as quais podem, muitas vezes, atingir o ápice da violência física, mental e emocional.

Infelizmente, a domesticação intelectual e cognitiva que se pensava ter ocorrido com o homem primitivo não foi tão bem-sucedida assim. No seu inconsciente ele permanece o mesmo bárbaro de sempre. Dizendo e fazendo coisas totalmente inapropriadas, movido pelos instintos remanescentes do seu primitivismo. Como se o mundo, no seu processo evolutivo, tivesse criado certas arestas que lhes impossibilita se ajustar a sua existência dominadora, tirana, opressora, autoritária.

Cientes disso, então, as mulheres precisam se apropriar cada vez mais da consciência de que não podem ter sua vida reduzida, nem se curvar ao capricho ou à ignorância de outra pessoa 2; pois, “a possibilidade não é um luxo. Ela é tão crucial quanto o pão” (Judith Butler). E é essa consciência que se expande e faz com que todo ser humano compreenda que isso não é aceitar as coisas que não podemos mudar; mas, mudar as coisas que não se pode aceitar 3. Desse modo, “Que nada nos defina, que nada nos sujeite. Que a liberdade seja a nossa própria substância, já que viver é ser livre” (Simone de Beauvoir).