quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Em chamas...


Em chamas...

 

Alessandra Leles Rocha

 

Muitos, talvez, não tenham ouvido falar sobre o incêndio que destruiu a Biblioteca de Alexandria, fundada no século 3 a.C. por Ptolomeu II, um dos sucessores de Alexandre, o Grande. Trata-se de um dos episódios mais importantes na história antiga da humanidade, pelo fato de que o vasto conhecimento armazenado ali foi sumariamente destruído e os prejuízos materiais e imateriais desse processo jamais puderam ser efetivamente recuperados 1. Mas, por quê lembrar desse fato em pleno século XXI?

Acontece que, diante do volume de notícias e informações sobre a destruição avassaladora da Amazônia brasileira 2, me parece impossível não correlacionar os fatos. A maior floresta tropical do mundo não deixa de ser, também, uma gigantesca biblioteca! E do mesmo modo que a Biblioteca de Alexandria, a Floresta Amazônica guarda segredos e informações desconhecidas do grande público.

Espantados? Ora, a Amazônia não é apenas um amontoado de árvores entrecortada por rios e igarapés; mas, um espetacular reservatório da biodiversidade do planeta. No entanto, essa biodiversidade não dispõe de inventários completos a seu respeito.

Trabalhos que as Ciências Naturais vêm se debruçando, há décadas, para realizar; embora, enfrentando desafios logísticos e orçamentários cada vez mais frequentes. De modo que já se conhece muito; mas, não se conhece tudo da Amazônia para cravar com total precisão o seu potencial de contribuição para os seres humanos.

Seja, então, pelas motosserras ou pelo fogo, a destruição da Floresta Amazônica representa uma ameaça ao ser humano. Primeiro, porque a expansão das ações antrópicas, degradando a área, pode representar um facilitador da disseminação de novas epidemias, a partir do deslocamento de agentes biológicos de origem desconhecida.

Portanto, não se sabe quem seriam eles, quais seriam seus hospedeiros, qual o seu grau de letalidade; mas, sabe-se que essa é uma possibilidade real em face da própria biodiversidade local. Enfim...

Segundo, porque as perdas de uma fauna e flora desconhecidas representam a impossibilidade de pesquisas biofarmacêuticas. Isso significa que, com base nos achados científicos, seria possível alavancar a descoberta de novos medicamentos para o tratamento de inúmeras doenças.

O novo que se encontra imerso na grande floresta poderia representar a cura, ou quem sabe, o alívio para patologias, as quais na atualidade ainda representam verdadeiras sentenças de morte para milhares de pessoas. 

Terceiro e, talvez, o mais importante dos pontos a se destacar, é o fato de que a destruição dessa biblioteca a céu aberto significa a aniquilação dos seus bibliotecários, os povos originários. O caminho mais profícuo da pesquisa científica para a construção do conhecimento integral da floresta está diretamente ligado a vivência prática desses povos.

Portanto, a perda humana desses cidadãos não é brutal somente pela vida ceifada; mas, por tudo de imaterial e subjetivo que esse processo arrasta consigo. Perdem-se as fontes, antes que quaisquer registros formais das informações pudessem ter sido realizados.

Entendam, uma vez perdidos não há como recuperar! Um (a) indígena que morre, por exemplo, leva com ele (a) o seu lastro de conhecimento que nenhum homem branco dispõe, porque era parte de uma identidade cultural específica. 

Do mesmo modo, cada planta nativa da Amazônia que é dizimada não tem como ser estudada, porque não será possível encontrá-la em um outro local e sob as mesmas condições naturais que lhe conferem características e propriedades específicas. 

Sendo assim, olhar para a destruição da Amazônia passa diretamente pela certeza de que teríamos tanto e abrimos mão do presente antes de desatar os laços.

Cada vez que nos sentirmos mais cansados, mais doentes, mais famintos, mais sedentos, mais impossibilitados de respirar, certamente, lembraremos constrangidos dessa Amazônia que se relaciona tão de perto com os nossos infortúnios.

As falhas existentes no corpo da Floresta não dizem apenas sobre ela, dizem sobre nós. Portanto, não é só uma questão sobre a Amazônia, ou sobre o conhecimento. É sobre nós. A trajetória de análise das perdas começa no ser humano.

Quando ele pensa que não tem nada a perder, ele já perdeu. Ele já morreu na essência, nos princípios, nos valores, na dignidade. Ele já sucumbiu à pior das doenças que é a ignorância estúpida e irresponsável.  E o seu imediatismo vai cobrar a conta, vai colocá-lo de joelhos. Se não ele, os seus descendentes se vierem a existir.

Só não nos esqueçamos de que ao permitir continuar a sina de queimar “bibliotecas” estaremos sempre perseguindo a insuficiência de conhecimento e limitando as possibilidades da nossa sobrevivência.

Porque a nossa incompletude nos leva sempre a depender das incompletudes alheias para tecer o nosso manto de conhecimento, de modo que negar essa verdade é um risco a se correr. Mas, depois, não venha chorar o leite derramado. Segundo Platão, “Deus não é culpado. A culpa é de quem escolhe”.