Em
chamas...
Alessandra
Leles Rocha
Muitos, talvez, não tenham ouvido
falar sobre o incêndio que destruiu a Biblioteca de Alexandria, fundada no século
3 a.C. por Ptolomeu II, um dos sucessores de Alexandre, o Grande. Trata-se de
um dos episódios mais importantes na história antiga da humanidade, pelo fato
de que o vasto conhecimento armazenado ali foi sumariamente destruído e os
prejuízos materiais e imateriais desse processo jamais puderam ser efetivamente
recuperados 1. Mas, por quê lembrar
desse fato em pleno século XXI?
Acontece que, diante do volume de
notícias e informações sobre a destruição avassaladora da Amazônia brasileira 2, me parece impossível não correlacionar
os fatos. A maior floresta tropical do mundo não deixa de ser, também, uma
gigantesca biblioteca! E do mesmo modo que a Biblioteca de Alexandria, a
Floresta Amazônica guarda segredos e informações desconhecidas do grande
público.
Espantados? Ora, a Amazônia não é
apenas um amontoado de árvores entrecortada por rios e igarapés; mas, um
espetacular reservatório da biodiversidade do planeta. No entanto, essa
biodiversidade não dispõe de inventários completos a seu respeito.
Trabalhos que as Ciências
Naturais vêm se debruçando, há décadas, para realizar; embora, enfrentando
desafios logísticos e orçamentários cada vez mais frequentes. De modo que já se
conhece muito; mas, não se conhece tudo da Amazônia para cravar com total
precisão o seu potencial de contribuição para os seres humanos.
Seja, então, pelas motosserras ou
pelo fogo, a destruição da Floresta Amazônica representa uma ameaça ao ser
humano. Primeiro, porque a expansão das ações antrópicas, degradando a área,
pode representar um facilitador da disseminação de novas epidemias, a partir do
deslocamento de agentes biológicos de origem desconhecida.
Portanto, não se sabe quem seriam
eles, quais seriam seus hospedeiros, qual o seu grau de letalidade; mas,
sabe-se que essa é uma possibilidade real em face da própria biodiversidade
local. Enfim...
Segundo, porque as perdas de uma fauna
e flora desconhecidas representam a impossibilidade de pesquisas
biofarmacêuticas. Isso significa que, com base nos achados científicos, seria
possível alavancar a descoberta de novos medicamentos para o tratamento de
inúmeras doenças.
O novo que se encontra imerso na
grande floresta poderia representar a cura, ou quem sabe, o alívio para
patologias, as quais na atualidade ainda representam verdadeiras sentenças de
morte para milhares de pessoas.
Terceiro e, talvez, o mais
importante dos pontos a se destacar, é o fato de que a destruição dessa
biblioteca a céu aberto significa a aniquilação dos seus bibliotecários, os
povos originários. O caminho mais profícuo da pesquisa científica para a
construção do conhecimento integral da floresta está diretamente ligado a
vivência prática desses povos.
Portanto, a perda humana desses
cidadãos não é brutal somente pela vida ceifada; mas, por tudo de imaterial e
subjetivo que esse processo arrasta consigo. Perdem-se as fontes, antes que
quaisquer registros formais das informações pudessem ter sido realizados.
Entendam, uma vez perdidos não há
como recuperar! Um (a) indígena que morre, por exemplo, leva com ele (a) o seu
lastro de conhecimento que nenhum homem branco dispõe, porque era parte de uma
identidade cultural específica.
Do mesmo modo, cada planta nativa
da Amazônia que é dizimada não tem como ser estudada, porque não será possível
encontrá-la em um outro local e sob as mesmas condições naturais que lhe
conferem características e propriedades específicas.
Sendo assim, olhar para a
destruição da Amazônia passa diretamente pela certeza de que teríamos tanto e
abrimos mão do presente antes de desatar os laços.
Cada vez que nos sentirmos mais
cansados, mais doentes, mais famintos, mais sedentos, mais impossibilitados de
respirar, certamente, lembraremos constrangidos dessa Amazônia que se relaciona
tão de perto com os nossos infortúnios.
As falhas existentes no corpo da
Floresta não dizem apenas sobre ela, dizem sobre nós. Portanto, não é só uma
questão sobre a Amazônia, ou sobre o conhecimento. É sobre nós. A trajetória de
análise das perdas começa no ser humano.
Quando ele pensa que não tem nada
a perder, ele já perdeu. Ele já morreu na essência, nos princípios, nos
valores, na dignidade. Ele já sucumbiu à pior das doenças que é a ignorância
estúpida e irresponsável. E o seu
imediatismo vai cobrar a conta, vai colocá-lo de joelhos. Se não ele, os seus
descendentes se vierem a existir.
Só não nos esqueçamos de que ao
permitir continuar a sina de queimar “bibliotecas”
estaremos sempre perseguindo a insuficiência de conhecimento e limitando as
possibilidades da nossa sobrevivência.
Porque a nossa incompletude nos leva sempre a depender das incompletudes alheias para tecer o nosso manto de conhecimento, de modo que negar essa verdade é um risco a se correr. Mas, depois, não venha chorar o leite derramado. Segundo Platão, “Deus não é culpado. A culpa é de quem escolhe”.