quarta-feira, 31 de agosto de 2022

Quem pode mais: a misoginia ou a força da mulher brasileira???


Quem pode mais: a misoginia ou a força da mulher brasileira???

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Ainda reverberando pelos meios de comunicação e informação a misoginia explícita que se fez presente no primeiro debate eleitoral dos presidenciáveis, tenho certas reservas em acreditar que a visibilidade do episódio passe a construir um espaço real para as mulheres na sociedade brasileira.

Considerando o cenário atual, que permanece respirando os ares de uma herança colonial patriarcal, não me parece tão simples assim, num mero piscar de olhos, por conta de quaisquer atos de desrespeito, que se consiga romper com a misoginia no país.

Toda as estruturas de poder foram secularmente organizadas e centralizadas nos homens, tanto em razão da herança monárquica colonial quanto das diretrizes religiosas cristãs, em que colocavam a mulher sempre na posição de objeto decorativo e sem nenhuma vez ou voz nas decisões. Suas obrigações sociais estavam condicionadas à silenciosa subserviência diante de toda e qualquer determinação masculina.

O problema é que o tempo passou, são mais de 500 anos de história nacional, e não se pode dizer com convicção que esse comportamento se transformou efetivamente. Haja vista a personagem Maria “Bruaca”, na novela Pantanal.

Quantas “Bruacas”, em pleno século XXI, ainda não cruzaram a fronteira que a personagem levou tempo, na história ficcional, para fazer? Estão por aí, submissas e entregues aos arroubos misóginos de seus maridos, namorados, companheiros e da própria sociedade, receosas pelo o que pode lhes acontecer se tentarem uma ruptura.

O viés das violências, incluindo os altos índices de Feminicídio, no Brasil, não deixam dúvidas de como o patriarcado funciona conservadoramente para conter a busca das mulheres pelo seu protagonismo social. Ele vigia. Ele amedronta. Ele pune.

E o patriarcado só consegue essa façanha porque está em suas mãos, por exemplo, a decisão de não promover a igualdade salarial e econômica. Vamos e convenhamos que a questão financeira tem sim, um peso enorme na manutenção da misoginia e da violência doméstica; sobretudo, em países de franca e profunda desigualdade social.

Por mais que as mulheres venham se qualificando mais, estudando mais, buscando melhorias para sua condição de vida, diante da responsabilidade e dos compromissos familiares, elas acabam se rendendo as violências em nome da própria sobrevivência e dos filhos.

E isso é de uma perversidade social imensa! Porque, muitas vezes, elas são barbaramente assassinadas antes que tenham quaisquer oportunidades de reconstruir a sua vida longe desse ciclo de selvageria e brutalidade.

Aos que ainda não entenderam ou preferem não entender, o fato da misoginia no Brasil pertencer a um conjunto de práxis históricas, isso não lhe dá o direito de continuar existindo. Já parou para pensar quantos órfãos a misoginia produz no Brasil? Quantas famílias desestruturadas surgem em decorrência da misoginia? Quantos abusos e violências são cometidos contra meninas e adolescentes em nome de uma pseudolegitimação da misoginia?

Ora, se muitos cidadãos e cidadãs brasileiras se escandalizam com a misoginia deflagrada pelas mais diferentes correntes religiosas radicais ao redor do planeta, porque aqui, no Brasil, um país republicano, democrático e livre, esse assunto é visto como tabu, hein?

Será que a ideia é manter o maior número de espaços sociais para exacerbar a ignorância, a truculência, o desrespeito, a selvageria, pertencentes ao histórico patriarcal?

Aliás, criou-se no inconsciente coletivo nacional que a misoginia é basicamente o insulto, a violência verbal, o desrespeito gratuito, para fazer cair na justificativa rasa e vulgar de não ver problema em tratar a mulher como se trata a qualquer um. Como se ela tivesse que se sentir agradecida, inclusive, de estar sendo colocada em patamar de “igualdade” com os homens.

Só que não! A misoginia é antes de tudo a consolidação de diversos obstáculos para que a mulher não tenha acesso à sua cidadania. Ela é reprimida e invisibilizada desde o seu lugar de fala até o seu pertencimento nesse ou naquele lugar social. A misoginia objetiva, então, privar a mulher de ser, de estar, de permanecer, de ficar, de exercer todo e qualquer papel ou função que ela julgar importante.

Tanto que o pensamento feminista, no Brasil, é mal visto dentro da sociedade, tanto por homens quanto por mulheres. Isso acontece porque a construção de distorções, de aberrações, de mentiras, em relação ao feminismo não se resume apenas a um possível desconhecimento.

Na verdade, ela parece muito bem respaldada de método e de critério para atender aos interesses do patriarcado nacional e, mais recentemente, aos planos de poder de algumas correntes religiosas fervorosamente arraigadas a um modelo de comportamento conservador.

Abrir a mente para essa reflexão é, portanto, fundamental! Como escreveu Chimamanda Ngozi Adichie, “O feminismo faz, obviamente, parte dos direitos humanos de uma forma geral – mas escolher uma expressão vaga como ‘direitos humanos’ é negar a especificidade e particularidade do problema de gênero. Seria uma maneira de fingir que as mulheres não foram excluídas ao longo dos séculos. Seria negar que a questão de gênero tem como alvo as mulheres. Que o problema não é ser humano, mas especificamente um ser humano do sexo feminino. Por séculos, os seres humanos eram divididos em dois grupos, um dos quais excluía e oprimia o outro. É no mínimo justo que a solução para esse problema esteja no reconhecimento desse fato” 1.

Enquanto uma parte significativa da sociedade brasileira fecha os olhos para a misoginia, o país retrocede no seu desenvolvimento e no seu progresso, porque impede que as mulheres, um contingente numericamente significativo da sua população, venham agregar o seu conhecimento, a sua força de trabalho, as suas habilidades e as suas competências fundamentais em todos os campos da vida social.

Diante disso, penso e acredito que seja imprescindível trazer à tona a história, a biografia, de um gigantesco grupo de brasileiras para que possam não só desconstruir certos paradigmas, mas ressignificar o papel da mulher brasileira a fim de inspirar e fortalecer o ânimo das atuais e das futuras gerações. 

Vamos conhecer Chiquinha Gonzaga. Bertha Lutz. Dandara dos Palmares. Elza Furtado Gomide. Cecília Meireles. Enedina Alves Marques. Carolina Maria de Jesus. Marta Vieira da Silva. Graziela Maciel Barroso. Nise da Silveira. Tarsila do Amaral. Jacqueline Goes de Jesus. Ester Sabino. Hortência. Patrícia Galvão (Pagu). Elza Soares. Maria José Deane. Sônia Guajajara. Rachel de Queiroz. Márcia Barbosa. Cora Coralina. Nadia Ayad. Ana Néri. Sonja Ashauer. Marina Silva. Rita Lee. Anita Malfatti. Viviane dos Santos. Dilma Rousseff. Vivian Miranda. Maria Quitéria. Thelma Krug. Irmã Dulce. Sonia Guimarães. Zezé Motta. Elisa Frota Pessoa. Hebe Camargo. Anitta. Fernanda Montenegro. Txai Suruí.  ...

Assim, mesmo que a misoginia permaneça insistindo sobreviver no país, com todas as suas forças, nada e nem ninguém será capaz de apagar o fato de que o Brasil não seria o mesmo se não fosse por essas e tantas outras mulheres extraordinárias. É graças ao legado delas, por sorte, que novas gerações tendem a emergir e cumprir seus papeis com grandeza, dignidade e talento.


1 ADICHIE, C. N. Sejamos todos feministas. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. 64p.