De
volta aos tempos do faroeste...
Por
Alessandra Leles Rocha
De volta aos tempos do faroeste. Então,
é assim que o cotidiano pretende ser conduzido? Na base da violência explícita?
Da ignorância plena? Da selvageria? O atentado contra a vice-presidente
argentina 1 não só faz pensar, como também colocar
as barbas de molho.
Uma arma na mão diz o quê senão a
incapacidade de coexistir, de conviver, de resolver as divergências, de
dialogar. Será que estamos mesmo emburrecendo a esse ponto? Porque atitudes
assim são totalmente inócuas, no sentido de preencher os vazios que existem em
diversas camadas do ser social.
A política nesse caso é só mais
um pretexto. Tudo e todos acabam alvos dessa frustração coletiva, quando se
percebe que nada é suficientemente capaz de sustentar a importância existencial
que certos indivíduos almejam ter. É assim no futebol, na mesa do bar, no trânsito,
no show, no supermercado, ... quando a valentia se expressa por uma arma na
mão.
O que antes parecia ser o modus operandi das facções, da
marginalidade organizada, nos grandes centros urbanos, de repente caiu no senso
comum e trouxe para o cenário do crime os mais diferentes perfis sociais. Basta
ter meios para adquirir uma arma e pronto! Ninguém precisa mais pensar,
refletir ou analisar, porque tem em mãos a solução mais rápida e eficaz, não é
mesmo?
O curioso é que apesar dos
esforços incessantes desse movimento armamentista, a vida continua seu fluxo
natural, com todos os seus altos e baixos. Mata-se aqui, ali e acolá; mas, nem
por isso a vida melhora e/ou os problemas cotidianos desaparecem. Tudo
permanece exatamente no seu devido lugar, porque o dia a dia é construído por
gente. Gente que erra, que se equivoca, que não tem habilidades ou competências,
enfim...
Aliás, isso inclui os próprios valentões.
Seu desconforto em relação a isso ou aquilo, esse ou aquele, é só para
disfarçar e não se olhar no espelho. Quantos não devem pensar e sentir o mesmo
sobre sua pessoa, hein? Pois é. Ninguém é unanimidade. Simpatias e afinidades
demandam uma série de variáveis, as quais ninguém tem controle absoluto.
No entanto, nem tudo o que nos
desagrada, nos incomoda, nos perturba, é de fato suficientemente insuportável. No
contexto dessa barbárie contemporânea há uma evidente seletivização, segundo
critérios bastante pessoais. Fala-se muito das polarizações políticas, mas elas
sempre existiram nas relações humanas, desde os primórdios da história.
Faz parte da autonomia, da
escolha, da decisão e, principalmente, da necessidade de pertencimento. Algo que
se aflorou muito mais a partir da consolidação da sociedade de consumo. Ninguém
quer ficar à margem. De um jeito ou de outro, todos querem se sentir
legitimados por uma narrativa social.
Se ainda não percebeu, o mundo
nunca foi tão tribal quanto agora! Cada um com seu modo, o seu estilo, a sua
opinião, a sua ideologia, ... existindo sob um mesmo céu. Por mais que o “faroeste contemporâneo” tente impor um
certo tipo de homogeneização social, isso só vale até a página dois. Afinal, a
pluralidade, a diversidade, a multi e a interculturalidade estão aí, buscando
um denominador comum para um equilíbrio de paz entre todas as tribos.
E, por incrível que pareça, o
desfecho do atentado criminoso à vice-presidente argentina, Cristina Kirchner,
foi providencial. Porque ele promoveu uma súbita ruptura com a alienação e trouxe
à tona a reflexão. A Argentina parou; mas, o mundo, de certa forma, também. Todos
os sentidos voltaram-se para construir um entendimento amplo e profundo sobre tudo
o que envolve, na contemporaneidade, a ocorrência de episódios tão irracionais.
Confesso que sempre me pareceram frágeis,
até certo ponto, os argumentos cunhados em torno de uma deterioração democrática
ao redor do planeta, na medida em que não há quaisquer movimentos que
apresentem propostas robustas e sustentáveis capazes de substituir esse regime
político. Tudo o que a história já apresentou e presenciou em termos de
Absolutismo, de Autocracia, de Autoritarismo, de Despotismo, de Ditaduras, mostrou-se
tão fracassado quanto uma arma na mão.
Nada disso mudou o mundo. Não fez
dele um lugar melhor para se viver. Não trouxe progresso, ou desenvolvimento,
ou coisa que o valha. Ao contrário de silenciar as vozes para satisfazer seu
desejo de obediência e de subserviência, amplificaram os gritos, os clamores, a
indignação, a rebeldia cidadã, na medida em que conseguiram fazer com que eles
ecoassem pelas gerações. E todos sabem disso. Inclusive, quem está tentando se
impor nesse faroeste.
Por que persistem? Porque chegaram
ao limite do fastio de consumo. As novidades não se mostram mais suficientes
para aplacar a sua fissura de poder, de importância, de influência. E se eles
não podem comprar o poder, como se compra um bem de consumo ou um serviço, eles
se apropriam pelo extremismo, pela exacerbação da violência, pela
pseudoautoridade.
Atentar contra a vida de alguém
lhes confere uma posição de poder incomensurável. Como escreveu Fiódor Dostoiévski,
em Crime e Castigo 2, “Torne-se o sol e todos o avistarão. O dever do sol é existir, ser o
que é”! Desse modo, matar colocaria o indivíduo acima das leis, da justiça,
dos códigos éticos e morais, como se fosse um deus ou um semideus no cenário contemporâneo.
Em suma, seria estar acima do Bem e do Mal.
Uma arma na mão representa,
então, o exercício do controle pelo medo, pela intimidação. O poder nas mãos
sairia da metáfora, do ideário, para a materialidade visível e palpável. Entretanto,
tão fugaz quanto o disparo, ele se esvai como fumaça. O ápice da transgressão leva
o indivíduo ao ponto de partida. Ele volta aos braços da sua insignificância pública.
Sem poder. Sem honras. Sem visibilidade. Sem importância. Sem nada.
Mas, não se engane! Mesmo assim,
outros tentarão o êxito, repetindo a mesma cruzada. Viveremos aos sobressaltos,
porque a legião do fastio é imensa. E, de certa forma, é parte do ser humano
acreditar que com ele será diferente. Com o final da história sendo outro, melhor,
perfeito, puro sucesso. Só que não!
No fundo, o ser humano ao se
deixar convencer pela ideia de que “Se
alguém mata um homem, é um assassino. Se mata milhões de homens, é um
conquistador. Se mata todos, é um Deus” (Jean Rostand – biólogo francês),
ele encontra algum tipo de justificativa, de legitimidade social para seguir em
frente com seus delírios de pertencimento, de glória, de influência e de poder.
Afinal de contas, a história
infelizmente não tem como negar que, apesar de todos os pesares, “Alguns tiveram a forca como preço pelo
próprio crime, outros, a coroa” (Juvenal – poeta da Roma antiga) e é aí,
que pesa a necessidade de reflexão da sociedade! Entendeu?
1 https://g1.globo.com/mundo/noticia/2022/09/02/argentinos-reagem-ao-atentado-contra-cristina-e-dizem-que-mensagens-politicas-de-odio-tiveram-influencia.ghtml
2 DOSTOIÉVSKI, F. M. (1821-1881). Crime e Castigo. Tradução de Natália Nunes e Oscar Mendes. Porto Alegre: L&PM, 2008. 592p.