sábado, 3 de setembro de 2022

De volta aos tempos do faroeste...


De volta aos tempos do faroeste...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

De volta aos tempos do faroeste. Então, é assim que o cotidiano pretende ser conduzido? Na base da violência explícita? Da ignorância plena? Da selvageria? O atentado contra a vice-presidente argentina 1 não só faz pensar, como também colocar as barbas de molho.

Uma arma na mão diz o quê senão a incapacidade de coexistir, de conviver, de resolver as divergências, de dialogar. Será que estamos mesmo emburrecendo a esse ponto? Porque atitudes assim são totalmente inócuas, no sentido de preencher os vazios que existem em diversas camadas do ser social.

A política nesse caso é só mais um pretexto. Tudo e todos acabam alvos dessa frustração coletiva, quando se percebe que nada é suficientemente capaz de sustentar a importância existencial que certos indivíduos almejam ter. É assim no futebol, na mesa do bar, no trânsito, no show, no supermercado, ... quando a valentia se expressa por uma arma na mão.

O que antes parecia ser o modus operandi das facções, da marginalidade organizada, nos grandes centros urbanos, de repente caiu no senso comum e trouxe para o cenário do crime os mais diferentes perfis sociais. Basta ter meios para adquirir uma arma e pronto! Ninguém precisa mais pensar, refletir ou analisar, porque tem em mãos a solução mais rápida e eficaz, não é mesmo?

O curioso é que apesar dos esforços incessantes desse movimento armamentista, a vida continua seu fluxo natural, com todos os seus altos e baixos. Mata-se aqui, ali e acolá; mas, nem por isso a vida melhora e/ou os problemas cotidianos desaparecem. Tudo permanece exatamente no seu devido lugar, porque o dia a dia é construído por gente. Gente que erra, que se equivoca, que não tem habilidades ou competências, enfim...

Aliás, isso inclui os próprios valentões. Seu desconforto em relação a isso ou aquilo, esse ou aquele, é só para disfarçar e não se olhar no espelho. Quantos não devem pensar e sentir o mesmo sobre sua pessoa, hein? Pois é. Ninguém é unanimidade. Simpatias e afinidades demandam uma série de variáveis, as quais ninguém tem controle absoluto.

No entanto, nem tudo o que nos desagrada, nos incomoda, nos perturba, é de fato suficientemente insuportável. No contexto dessa barbárie contemporânea há uma evidente seletivização, segundo critérios bastante pessoais. Fala-se muito das polarizações políticas, mas elas sempre existiram nas relações humanas, desde os primórdios da história.

Faz parte da autonomia, da escolha, da decisão e, principalmente, da necessidade de pertencimento. Algo que se aflorou muito mais a partir da consolidação da sociedade de consumo. Ninguém quer ficar à margem. De um jeito ou de outro, todos querem se sentir legitimados por uma narrativa social.

Se ainda não percebeu, o mundo nunca foi tão tribal quanto agora! Cada um com seu modo, o seu estilo, a sua opinião, a sua ideologia, ... existindo sob um mesmo céu. Por mais que o “faroeste contemporâneo” tente impor um certo tipo de homogeneização social, isso só vale até a página dois. Afinal, a pluralidade, a diversidade, a multi e a interculturalidade estão aí, buscando um denominador comum para um equilíbrio de paz entre todas as tribos.  

E, por incrível que pareça, o desfecho do atentado criminoso à vice-presidente argentina, Cristina Kirchner, foi providencial. Porque ele promoveu uma súbita ruptura com a alienação e trouxe à tona a reflexão. A Argentina parou; mas, o mundo, de certa forma, também. Todos os sentidos voltaram-se para construir um entendimento amplo e profundo sobre tudo o que envolve, na contemporaneidade, a ocorrência de episódios tão irracionais.

Confesso que sempre me pareceram frágeis, até certo ponto, os argumentos cunhados em torno de uma deterioração democrática ao redor do planeta, na medida em que não há quaisquer movimentos que apresentem propostas robustas e sustentáveis capazes de substituir esse regime político. Tudo o que a história já apresentou e presenciou em termos de Absolutismo, de Autocracia, de Autoritarismo, de Despotismo, de Ditaduras, mostrou-se tão fracassado quanto uma arma na mão.

Nada disso mudou o mundo. Não fez dele um lugar melhor para se viver. Não trouxe progresso, ou desenvolvimento, ou coisa que o valha. Ao contrário de silenciar as vozes para satisfazer seu desejo de obediência e de subserviência, amplificaram os gritos, os clamores, a indignação, a rebeldia cidadã, na medida em que conseguiram fazer com que eles ecoassem pelas gerações. E todos sabem disso. Inclusive, quem está tentando se impor nesse faroeste.

Por que persistem? Porque chegaram ao limite do fastio de consumo. As novidades não se mostram mais suficientes para aplacar a sua fissura de poder, de importância, de influência. E se eles não podem comprar o poder, como se compra um bem de consumo ou um serviço, eles se apropriam pelo extremismo, pela exacerbação da violência, pela pseudoautoridade.

Atentar contra a vida de alguém lhes confere uma posição de poder incomensurável. Como escreveu Fiódor Dostoiévski, em Crime e Castigo 2, “Torne-se o sol e todos o avistarão. O dever do sol é existir, ser o que é”! Desse modo, matar colocaria o indivíduo acima das leis, da justiça, dos códigos éticos e morais, como se fosse um deus ou um semideus no cenário contemporâneo. Em suma, seria estar acima do Bem e do Mal.

Uma arma na mão representa, então, o exercício do controle pelo medo, pela intimidação. O poder nas mãos sairia da metáfora, do ideário, para a materialidade visível e palpável. Entretanto, tão fugaz quanto o disparo, ele se esvai como fumaça. O ápice da transgressão leva o indivíduo ao ponto de partida. Ele volta aos braços da sua insignificância pública. Sem poder. Sem honras. Sem visibilidade. Sem importância. Sem nada.

Mas, não se engane! Mesmo assim, outros tentarão o êxito, repetindo a mesma cruzada. Viveremos aos sobressaltos, porque a legião do fastio é imensa. E, de certa forma, é parte do ser humano acreditar que com ele será diferente. Com o final da história sendo outro, melhor, perfeito, puro sucesso. Só que não!

No fundo, o ser humano ao se deixar convencer pela ideia de que “Se alguém mata um homem, é um assassino. Se mata milhões de homens, é um conquistador. Se mata todos, é um Deus” (Jean Rostand – biólogo francês), ele encontra algum tipo de justificativa, de legitimidade social para seguir em frente com seus delírios de pertencimento, de glória, de influência e de poder.

Afinal de contas, a história infelizmente não tem como negar que, apesar de todos os pesares, “Alguns tiveram a forca como preço pelo próprio crime, outros, a coroa” (Juvenal – poeta da Roma antiga) e é aí, que pesa a necessidade de reflexão da sociedade! Entendeu?



2 DOSTOIÉVSKI, F. M. (1821-1881). Crime e Castigo. Tradução de Natália Nunes e Oscar Mendes. Porto Alegre: L&PM, 2008. 592p.