quarta-feira, 24 de agosto de 2022

Sob lente de aumento


Sob lente de aumento

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Quanto mais eu observo, e penso sobre o Brasil, mais eu me convenço de que todas as violências e atrocidades cometidas contra as chamadas minorias sociais, não passam de uma desesperada tentativa de reduzir o círculo de visibilidade e importância, ou de mera necessidade de autoafirmação para se convencer de sua própria importância.  

Há um ditado popular que diz, “Ninguém chuta cachorro morto”. De modo que entre a mensagem de descaso e invisibilização das minorias e a prática cometida contra elas, algo não está de acordo. A verdade é que elas não são tão desimportantes como alguns gostariam que fossem. Esse é o ponto.

Há quem não queira, em hipótese alguma, dividir os espaços e os holofotes com nenhuma minoria social, pelo risco de arriscarem a desconstrução narrativa em torno do ideário eurocêntrico, que constituiu as relações coloniais e permanece vivo, ainda hoje, em diversas partes do mundo.

É simples de entender! Basta uma análise superficial da pirâmide social brasileira, ao longo do tempo, para perceber como o estrato atribuído à elite nunca deixou de se caracterizar por uma fatia populacional delgada e fixada no topo. Quem não se lembra da personagem Odete Roitman, na novela Vale Tudo, exibida entre 1988 e 1989? Pois é.

Em pouco mais de 500 anos de história, esse estrato da sociedade brasileira deixou de ser o berço direto da Monarquia, para cair nos braços de sua descendência burguesa republicana até chegar ao contexto de uma elite majoritária e ideologicamente de direita. Cujos valores se sustentam pelo conservadorismo de ideias e comportamentos extremamente retrógrados.

A começar por uma aversão incontrolável em relação à diversidade e a pluralidade social, que se faz predominantemente associada aos demais estratos da pirâmide. Em linhas gerais, isso significa que são claramente simpatizantes a qualquer manifestação da desigualdade no país. Fato que se reafirma pela defesa ardorosa do individualismo, do perfil aristocrata, das pautas de costume conservadoras, da propriedade privada, da redução das políticas públicas destinadas ao bem-estar social.

No entanto, é curioso que um movimento assim tenha conseguido se impregnar na teia social brasileira, considerando todo o histórico de discriminação, de intolerância, de preconceito que o país viveu (e ainda vive) em relação às grandes metrópoles e potências do mundo.

O Brasil repete dentro das suas fronteiras o padrão que sofre do lado de fora delas, sem que expresse quaisquer constrangimentos, ou indignações, a respeito. Como se tais experiências não lhe trouxessem quaisquer lampejos de reflexão. Há uma naturalização, uma banalização, no rol dessas violências e atrocidades.

Daí notícias como “Músico negro é levado para delegacia injustamente pela 2ª vez” 1 ou “Justiça absolve PM que pisou em pescoço de mulher negra; MP irá recorrer” 2 tornarem-se cada vez mais frequentes nos veículos de informação e comunicação, sem que haja uma resposta social coletiva de desagravo a esses comportamentos. A repetição contínua desse fenômeno aliada à própria estrutura de organização social no país acaba arrefecendo o ímpeto da discussão, da desconstrução paradigmática, enfim...

Contudo, quando as notícias trazem no conteúdo fatos como “Número de brasileiros deportados dos EUA em 2022 bate recorde” 3 ou “Xenofobia contra brasileiros em Portugal aumenta 505% em 5 anos, aponta relatório” 4, o silenciamento social recai sobre um outro viés. É como se as heranças coloniais trouxessem à tona um velho sentimento de subserviência, de obediência, que não permitisse quaisquer manifestações de contestação no campo internacional. Como escreveu Nelson Rodrigues, nada mais do que o nosso “complexo de vira-lata” 5.

Eis, então, que os arroubos de truculência, de violência, de mau humor exacerbado que acomete certos poderosos e pseudopoderosos acaba sendo resultado da imensa dificuldade de ressignificação identitária nacional. Como se adiantasse, alguma coisa, despicar nossas frustrações, inferiorizações, discriminações, recebidas amiúde lá fora, sobre nossos próprios pares.

A reprodução desse padrão comportamental não responde, nem jamais irá responder, a seguinte pergunta: Afinal, podemos ser leões ou apenas cordeirinhos? Bem, segundo Jean-Paul Sartre, “Não importa o que fizeram com você. O que importa é o que você faz com aquilo que fizeram com você”.

E ao que tudo indica, pelo menos até aqui, o Brasil não está seguro do que ele é, de quem é ele. Por isso, ele não se desprende dessa armadilha conjuntural que reafirma o misto entre o desdém e o ódio em relação ao outro. O que significa que, por enquanto, o Brasil ainda não entende que “cada vez que o homem escolhe seu compromisso e seu projeto com toda sinceridade e com toda lucidez, torna-se impossível preferir um outro” (Jean-Paul Sartre, O Ser e o Nada), ou simplesmente, se sentir ameaçado ou diminuído por um outro.    

 

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