Sob
lente de aumento
Por
Alessandra Leles Rocha
Quanto mais eu observo, e penso sobre
o Brasil, mais eu me convenço de que todas as violências e atrocidades
cometidas contra as chamadas minorias sociais, não passam de uma desesperada
tentativa de reduzir o círculo de visibilidade e importância, ou de mera necessidade
de autoafirmação para se convencer de sua própria importância.
Há um ditado popular que diz, “Ninguém chuta cachorro morto”. De modo
que entre a mensagem de descaso e invisibilização das minorias e a prática
cometida contra elas, algo não está de acordo. A verdade é que elas não são tão
desimportantes como alguns gostariam que fossem. Esse é o ponto.
Há quem não queira, em hipótese alguma,
dividir os espaços e os holofotes com nenhuma minoria social, pelo risco de
arriscarem a desconstrução narrativa em torno do ideário eurocêntrico, que
constituiu as relações coloniais e permanece vivo, ainda hoje, em diversas
partes do mundo.
É simples de entender! Basta uma
análise superficial da pirâmide social brasileira, ao longo do tempo, para perceber
como o estrato atribuído à elite nunca deixou de se caracterizar por uma fatia
populacional delgada e fixada no topo. Quem não se lembra da personagem Odete Roitman,
na novela Vale Tudo, exibida entre 1988 e 1989? Pois é.
Em pouco mais de 500 anos de
história, esse estrato da sociedade brasileira deixou de ser o berço direto da
Monarquia, para cair nos braços de sua descendência burguesa republicana até
chegar ao contexto de uma elite majoritária e ideologicamente de direita. Cujos
valores se sustentam pelo conservadorismo de ideias e comportamentos extremamente
retrógrados.
A começar por uma aversão
incontrolável em relação à diversidade e a pluralidade social, que se faz predominantemente
associada aos demais estratos da pirâmide. Em linhas gerais, isso significa que
são claramente simpatizantes a qualquer manifestação da desigualdade no país. Fato
que se reafirma pela defesa ardorosa do individualismo, do perfil aristocrata, das
pautas de costume conservadoras, da propriedade privada, da redução das
políticas públicas destinadas ao bem-estar social.
No entanto, é curioso que um movimento
assim tenha conseguido se impregnar na teia social brasileira, considerando
todo o histórico de discriminação, de intolerância, de preconceito que o país
viveu (e ainda vive) em relação às grandes metrópoles e potências do mundo.
O Brasil repete dentro das suas
fronteiras o padrão que sofre do lado de fora delas, sem que expresse quaisquer
constrangimentos, ou indignações, a respeito. Como se tais experiências não lhe
trouxessem quaisquer lampejos de reflexão. Há uma naturalização, uma
banalização, no rol dessas violências e atrocidades.
Daí notícias como “Músico negro é levado para delegacia
injustamente pela 2ª vez” 1 ou “Justiça absolve PM que pisou em pescoço de
mulher negra; MP irá recorrer” 2
tornarem-se cada vez mais frequentes nos veículos de informação e comunicação,
sem que haja uma resposta social coletiva de desagravo a esses comportamentos. A
repetição contínua desse fenômeno aliada à própria estrutura de organização
social no país acaba arrefecendo o ímpeto da discussão, da desconstrução paradigmática,
enfim...
Contudo, quando as notícias
trazem no conteúdo fatos como “Número de
brasileiros deportados dos EUA em 2022 bate recorde” 3
ou “Xenofobia contra brasileiros em
Portugal aumenta 505% em 5 anos, aponta relatório” 4,
o silenciamento social recai sobre um outro viés. É como se as heranças coloniais
trouxessem à tona um velho sentimento de subserviência, de obediência, que não
permitisse quaisquer manifestações de contestação no campo internacional. Como
escreveu Nelson Rodrigues, nada mais do que o nosso “complexo de vira-lata” 5.
Eis, então, que os arroubos de truculência,
de violência, de mau humor exacerbado que acomete certos poderosos e
pseudopoderosos acaba sendo resultado da imensa dificuldade de ressignificação
identitária nacional. Como se adiantasse, alguma coisa, despicar nossas frustrações,
inferiorizações, discriminações, recebidas amiúde lá fora, sobre nossos próprios
pares.
A reprodução desse padrão
comportamental não responde, nem jamais irá responder, a seguinte pergunta: Afinal,
podemos ser leões ou apenas cordeirinhos? Bem, segundo Jean-Paul Sartre, “Não importa o que fizeram com você. O que
importa é o que você faz com aquilo que fizeram com você”.
E ao que tudo indica, pelo menos
até aqui, o Brasil não está seguro do que ele é, de quem é ele. Por isso, ele
não se desprende dessa armadilha conjuntural que reafirma o misto entre o desdém
e o ódio em relação ao outro. O que significa que, por enquanto, o Brasil ainda
não entende que “cada vez que o homem
escolhe seu compromisso e seu projeto com toda sinceridade e com toda lucidez,
torna-se impossível preferir um outro” (Jean-Paul Sartre, O Ser e o Nada),
ou simplesmente, se sentir ameaçado ou diminuído por um outro.
1 https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2022/08/musico-negro-e-levado-para-delegacia-injustamente-pela-2a-vez-no-rj.shtml?_gl=1*tj33ob*_ga*MTU3NTgwNDkwNy4xNjYxMzY5MjQ4*_ga_RY1LTN28TR*MTY2MTM2OTI0OC4xLjAuMTY2MTM2OTI0OC42MC4wLjA.
2 https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2022/08/24/justica-militar-absolve-pm-pisao-pescoco-mulher-negra-sp.htm
3 https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2022/07/19/numero-de-brasileiros-deportados-dos-eua-em-2022-bate-recorde.ghtml