Sobre
esportes. Sobre torcedores. Sobre cidadãos.
Por
Alessandra Leles Rocha
Muito importante e oportuno o seminário
de combate ao racismo e violência promovido pela Confederação Brasileira de
Futebol (CBF)1. É a parcela de
contribuição da entidade dentro de uma discussão tão significativa para o
mundo.
No entanto, é preciso entender
que o futebol é só uma gota no oceano desportivo e que a percepção e o
entendimento do torcedor também precisam passar por uma profunda desconstrução
e ressignificação.
Nem é preciso dizer que o
esporte, como um todo, representa uma camada do cotidiano. Portanto, ele também
reflete a dinâmica das mesmas relações e das interações sociais do dia a dia.
Acontece que, dada a
naturalização das práticas de racismo e de violência, esse processo acaba
alcançando a seara desportiva e silenciando a contundência das respostas e das
ações de desagravo.
Como se tudo pudesse caber no
simplismo de que “é assim mesmo”. Mas,
não é. De onde nos chega, por exemplo, essa aceitação em não ver uma representatividade
plural em tantos esportes? De onde nos chega essa aceitação em relação ao
desrespeito a dignidade humana, hein?
Não se trata apenas de um viés elitista,
no campo de uma inacessibilidade econômica que limita a prática desse ou
daquele esporte para milhões de pessoas. Esse é só um aspecto importante a ser
considerado e transformado.
Algo que não se vê como pauta de
debate político, quando deveria ser. Afinal, basta uma observação superficial
das grandes potências desportivas mundiais para se perceber que o esporte
nesses lugares é parte integrante e integrada da formação educacional, desde a infância
mais precoce.
De modo que em países subdesenvolvidos
ou em desenvolvimento, onde a ausência de priorização de investimentos para a
Educação é uma realidade rotineira, a impossibilidade de criar uma infraestrutura
para o esporte capaz de furar a bolha e permitir o acesso ao maior número de
práticas, é uma consequência inevitável para o enviesamento desportivo.
Isso significa que as escolas
deixam de ser verdadeiros celeiros de descoberta e formação de promissores
atletas, por conta da fragilidade das políticas públicas destinadas tanto à
Educação quanto ao Esporte.
Afinal, esse tipo de filosofia
cidadã envolve um planejamento multidisciplinar muito mais robusto e um empenho
de recursos financeiros bem planejado. O que, para muitos países, como é o caso
do Brasil, um custo tido como desnecessário e que não se pretende arcar.
E isso implica diretamente na
junção entre a formação educacional e a formação desportiva, que perpassa pela
saúde e bem-estar dos alunos, pela segurança alimentar deles, pelo acesso à água
potável e ao saneamento básico, pela disponibilidade de vestuário adequado para
as atividades, enfim...
De modo que apesar de algo
extremamente básico e elementar, como se vê, ainda sofre com a pecha de
futilidade, por parte de muitos governantes.
Uma das consequências dessa
inação, dessa negligência governamental voluntária, é o surgimento de episódios
de sucesso pontuais, emergidos de projetos independentes, frutos do idealismo
de certos profissionais da educação, que lutam sozinhos contra o sistema para
colocar suas ideias em prática.
Daí a dificuldade de ampliar a
oferta de esportes para os alunos, na medida em que os desafios logísticos e
burocráticos, muitas vezes, ultrapassam a capacidade econômica das iniciativas
ou da própria escola. Basta imaginar piscinas, quadras, campos, pistas, aparelhos
de ginástica olímpica, tatames, ... em cada escola brasileira!
Além disso, em relação aos
esportes de alto rendimento, por exemplo, considerando-se o alto nível de
profissionalização, não se pode fechar os olhos para o fato de que a falta de
representatividade advém, muitas vezes, da construção de uma padronização
social estabelecida não só a partir do histórico desse ou daquele esporte; mas,
principalmente, pelos patrocinadores que almejam constituir uma imagem para os
seus produtos.
O que não torna difícil perceber
como certos esportes carregam, há tempos, um perfil étnico-racial predominante.
Mais recentemente, alguns indivíduos vêm desconstruindo essa realidade e se
afirmando de maneira relevante e significativa a fim de romper com certos
paradigmas e acenar com novas possibilidades.
Porém, enquanto tudo isso ainda é
um movimento incipiente, os episódios de racismo e violência contra atletas,
treinadores e comissões técnicas permanece acontecendo sob o silêncio de muitos
torcedores, que se esquecem de que são, antes de tudo, cidadãos.
Ora, não se pode esperar que as
ações afirmativas precisem ser deflagradas pelo Estado! O combate às
discriminações, intolerâncias e violências étnico-raciais, religiosas, de gênero
ou de status social, deve partir de todos aqueles que reconheçam o insulto
constrangedor que esse tipo de comportamento promove para o coletivo social.
Todo e qualquer tipo de discriminação,
intolerância e violência, quando realizado, estabelece uma associação
identitária imediata ao país, criando uma homogeneização ao pensamento populacional.
Como se todos comungassem e aceitassem esse comportamento. Como se ele
representasse, de fato, a todos os cidadãos e torcedores. Só que não.
Daí a necessidade da discussão,
da reflexão, das proposições para transformação. O que adiantam os esforços
contra as mais diferentes formas de doping,
no que diz respeito a performance dos atletas, se por outras formas e conteúdos
se permite macular a igualdade e a equidade entre eles?
Essa é a grande pergunta a se
fazer! O mundo à beira de um ataque de nervos é reflexo justamente das tensões
deflagradas pela desigualdade e iniquidade que reverberam em cada canto, em cada
situação, da mais simples a mais complexa.
E o esporte é um formador de
opiniões muito importante. O seu potencial de alcance é gigantesco. Haja vista
como os Jogos Olímpicos e Paralímpicos, as Copas do Mundo de Futebol, os
torneios de Grand Slam do tênis, os grandes torneios de Vôlei (Liga das Nações,
Copa do Mundo e Mundial), a NBA (National Basketball Association) e tantos
outros eventos desportivos capturam a atenção de milhões de pessoas ao redor do
planeta, enquanto cultivam sonhos, esperanças e projetos.
Por isso, o esporte, na sua inteireza,
precisa chancelar esse movimento de metamorfose social. Precisa mostrar que a
inovação não se dá somente na técnica, nas regras, nos equipamentos; mas,
sobretudo, na ideologia que nutre os indivíduos.
Não adiantam todos os avanços científicos
e tecnológicos impulsionando o esporte se as personagens principais, atletas e
torcedores, não evoluírem enquanto cidadãos, enquanto seres humanos. A luta
antirracista e antiviolência precisa ser o produto mais difundido pelo
marketing esportivo.
Porque é a partir dela que se
cria a possibilidade de tornar os espaços de convivência desportiva um lugar
que caiba verdadeiramente a diversidade e a pluralidade em harmonia, ou seja, onde
respeitar aproxima ao invés de afastar e coloca as escolhas e as preferências
individuais no devido lugar da racionalidade consciente.
Então, sob essa bandeira, quem
sabe a humanidade não possa começar a entender que adversários não são inimigos.
Que ali nas arenas, nas piscinas, nos campos, nas quadras, a geopolítica que se
conhece se extingue pela batuta de uma única regra para todos os competidores.
Ora, as diferenças não precisam
ser resolvidas pela beligerância de um conflito ou de uma guerra. Derrotas e
vitórias fazem parte da vida e alegram na mesma proporção que ensinam. E dentro
de cada uniforme bate um coração tão humano quanto o de qualquer outro indivíduo
e, por isso, merece a mesma dignidade que você. ...
E aí, se nada disso for
suficiente de primeira, joga-se de novo. Afinal, a “persistência pode transformar fracassos em incríveis conquistas” (Matt
Biondi – nadador olímpico norte-americano, vencedor de 11 medalhas).