AMIZADE.
Friendship. Amitié. Freundschaft. Amicizia. Amistad...
Por
Alessandra Leles Rocha
Amizades. Artigo raro, hoje em
dia? Talvez. Entretanto, isso não significa nenhum ceticismo a respeito. Acredito
em amizades. Mas, de tanto observar o mundo, daqui e dali, percebo que as
influências contemporâneas trouxeram uma demasiada idealização e expectativa em
torno das relações humanas, que acabaram afetando as amizades.
Querem fazer caber uns aos outros
dentro de rígidos protocolos preestabelecidos, sabe-se lá por quem, de modo que
ao menor sinal de um insucesso óbvio, acabam descartando as pessoas como se faz
com os objetos no cotidiano.
A impressão que se passa, com
esse “descarte humano”, é de que para
se ter um amigo é necessário despir-se da sua identidade para assumir uma semelhante
à do outro, a fim de ajustar-se e evitar quaisquer tipos de desavenças ou incongruências.
Portanto, não é à toa que as
amizades vão encontrando cada vez mais dificuldades em se estabelecer e
prosseguir. Ninguém se permite respeitar e aceitar a individualidade do outro.
De modo que isso retira a magia
que envolve os encontros da vida e as amizades vão ficando fadadas a uma
superficialidade que não se constrange em romper por quaisquer motivos. Política.
Religião. Moda. Alimentação. Esportes. Lazer. Viagens. ...
Faz lembrar os “amores de Carnaval”, relacionamentos
que tinham nos quatro dias de folia a sua duração; agora, são as amizades com
prazo de validade. Uma semana. Um mês. Um ano. ... A depender da aprovação no
rigoroso escrutínio para se tornar amigo.
E esse modus operandi efêmero, fugaz, cria novos conceitos e percepções em
torno das amizades que não deixam de trazer um certo ar de melancolia, com uma
pitada de doloroso desalento.
Infelizmente, perdeu-se pelos
caminhos contemporâneos a ideia do cultivo, da fiação, da tecitura da amizade. Trabalho
prazero de dedicação ao cuidado, a atenção, em relação ao outro; e, que precisa
ser de mão dupla para se colher os frutos desse processo.
Desde que comecei a escrever e
dar publicidade aos meus textos, lá por volta de 2004, resolvi fazer deles uma
ponte para as minhas amizades. Pensei que essa fosse uma maneira de me fazer presente,
mais amiúde, na vida dos amigos, ou seja, compartilhando com eles os textos e,
vez por outra, trocando comentários e conversas diversas por mensagens de
e-mail e, eventuais, ligações telefônicas.
Depois, trouxe do velho hábito
dos cartões natalinos de papel, enviados anualmente pelo Correio, a ideia de
criar minhas próprias mensagens de final de ano, com uma roupagem mais atual e tecnológica,
para também compartilhar com os amigos.
E foi aí, nesse instante, em que
ano a ano comecei a observar uma reciprocidade cada vez menor. Embora fosse Natal,
Ano Novo, de repente, de uma maneira direta e um tanto quanto insensível, beirando
os limites de uma certa deselegância, entendi que a relação de mão dupla havia se
transformado em mão única.
A princípio tentei aquietar minha
decepção, buscando alguma explicação razoável para o que estava acontecendo. Falta
de tempo. Talvez não tivessem recebido a mensagem. Viajaram. Esqueceram-se de
responder. ...
Mas, à medida em que os anos
foram passando fui percebendo que não. A verdade é que a minha amizade não era mais
representativa ou importante para aquelas pessoas. Que eu estava regando
sozinha aquela semente. Meus sentimentos, minha dedicação, minha disponibilidade,
meu tempo, nada disso era relevante para o outro.
Então, quando chegou a Pandemia
e, nem mesmo uma situação tão extrema foi capaz dessas pessoas se lembrarem de
mim, da minha amizade por elas, eu resolvi, então, limitar o meu contato
àquelas que permaneciam ali, mesmo à distância, em contato comigo. Regando a
quatro mãos a semente da nossa amizade. Fiando a beleza dos nossos contatos
para tecer a nossa colcha de memórias, de conversas, de trocas de opiniões,
enfim.
E tomei essa atitude porque
entendi, ainda que a duras penas, que a amizade transcende à geografia. Transcende
ao tempo. Amizade se fixa nas raízes do afeto, do acolhimento, da fraternidade,
da empatia, da emoção, dentro do espaço mais importante que se tem que é a
alma.
A amizade está em nós. Não
precisamos que o outro nos motive a respeito. Levamos ela para qualquer lugar,
a qualquer hora. Basta um lampejo de memória lançado por um livro, uma palavra,
uma música, uma fotografia, ... aí é como se fôssemos invadidos por uma
torrente de sentimentos, que nos levam a compartilhar com nosso amigo.
E quando digo isso, penso que a
melhor descrição de uma amizade me foi trazida pela escritora Martha Medeiros,
em sua crônica “Entre amigos” 1. Sem afetações ou meias palavras, ela
foi no ponto e explica, bem explicadinho, o porquê de as amizades serem tão necessárias.
E porque, para ser amizade, no sentido literal da palavra, ela não pode mesmo caber
nas nossas exigências prévias, nas nossas expectativas idealizantes.
Amizade para ser amizade tem que
ser livre de amarras, de protocolos, de etiquetas. Amigo se reconhece pela
retina, pelo brilho silencioso do olhar, pelas palavras certeiras, pelas deselegâncias
necessárias, pelos puxões de orelha sem cerimônia.
Isso explica o fato de que amigos não se precisa chamar, implorar sua presença, mendigar por sua atenção. Amigos estão sempre presentes, seja onde estiverem. Porque entre amigos há um tácito pacto de importância. Um é importante para o outro, e ponto final. Qualquer coisa contrária a isso não é amizade. Independentemente de que idioma for.