Não
é sobre religião. É sobre fé.
Por
Alessandra Leles Rocha
Tempos difíceis e conturbados estes
que estamos vivendo. Por isso, toda oportunidade de reflexão e contrição me
parece bem-vinda. Afinal, o que nos conecta com o Sagrado está acima das
religiões, ou seja, é a fé. Essa manifestação da crença, da confiança
irrestrita, não se resume a nenhum arcabouço doutrinário e ideológico. Ela se
dá por uma força que transcende e atravessa o nosso consciente e inconsciente
de maneira absoluta, embora nos falte palavras para conseguir explicar ou
definir com exatidão esse processo.
Um exemplo disso é a
impossibilidade que uma imensa maioria de pessoas têm de olhar para todo o
flagelo de Cristo, no seu calvário de sofrimento e aflição, e colocá-lo
dissociado da empatia humana, como uma história comum que se conta há milênios.
Não, não há reflexão, nem contemplação, nem meditação. Como se Cristo fosse
apenas Cristo, o filho de Deus. Uma figura predestinada àquela existência e
pronto. Quase ninguém o enxerga na condição de irmão, de companheiro, de
parceiro da jornada de expiação dolorosa.
Talvez, isso explique porque
tanta gente lota as encenações da Paixão de Cristo e, apesar de se comover
naquele momento, não consegue dissecar mais profundamente as camadas de significância
ali existentes para alinhá-las à sua própria humanidade. De fato, Cristo não é
como nenhum de nós, no contexto das imperfeições existenciais, dos atos deploráveis,
das omissões conscientes. Ele é puro. Ele é o amor incondicional. Ele é o Bem. Ele
é a fraternidade e a comunhão.
Mas, a sua jornada ao longo de 33
anos foi comum a qualquer vivente desse mundo. Enfrentando a miséria, as
dificuldades, a desconfiança, a inveja, o escárnio, a intolerância, ... como
acontece a tantos outros, ainda, hoje. Seu propósito principal era trazer à
humanidade o sentido da fé. Nada melhor e maior do que o filho de Deus
submetido a todo tipo de adversidade e sofrimento para mostrar ao ser humano
comum o valor da fé. Esse sentimento que acolhe, consola, afaga, acalenta,
restaura, ... fortalece.
Que nada tem a ver com barganha,
com troca. Porque a fé é um exercício raciocinado de convicção, de entrega, de
despojamento. Não tem a ver com soluções mágicas, mas com uma energia que
alimenta o consciente e o inconsciente a tal ponto de colocá-los de prontidão
para os enfrentamentos necessários.
Mesmo que muitos se disponham aos
sacrifícios, esses são decisões pessoais, são escolhas, não são um pedido ou
uma exigência da fé. De certo modo eles podem ser considerados, por alguns,
como elementos de motivação, de agregação para o fortalecimento da tecitura
dessa força invisível e tão poderosa; mas, é só. Porque a fé existe ou não,
independentemente de qualquer coisa. A fé não existe pelas metades. Ela é
inteira, indivisível, incondicional.
Cada um, portanto, entende e
manifesta a sua fé de uma maneira própria. Como escreveu Liev Tolstói, “A fé é a força da vida. Se o homem vive é
porque acredita em alguma coisa”. E quando se olha no espelho ou pela
janela e se depara com a infinita diversidade de formas, de cores, de conteúdos,
de expressões, de sons, de odores, de texturas, de seres, não há como duvidar
da existência de um ser superior. Quem é ele? Como seria sua imagem? Nada disso
é realmente relevante diante da grandiosidade do que esse ser, o qual muitos
denominam Deus, representa.
Segundo Mahatma Gandhi, “Deus é puríssima essência. Para os que têm
fé nele, Deus simplesmente é”. O que importa é que ele está em todo lugar,
o tempo todo, e essa presença pode se fazer maior e mais profunda pela
disposição que reside na fé. Aliás, como escreveu São Tomás de Aquino, a
verdade é que “Para alguém que tenha fé,
nenhuma explicação é necessária. Para aquele sem fé, nenhuma explicação é
possível”. Além disso, “Não é a
quantidade de sua fé que o salvará. Uma gota de água é tão verdadeira água como
o oceano inteiro” (Charles Spurgeon – pregador da igreja Batista britânica, no
século XIX). Portanto, esse é o ponto, ou seja, que relação de fé pretendemos
estabelecer com Deus.
Não é à toa que Eduardo Galeano,
jornalista e escritor uruguaio, chegou a escrever que “Vivemos em plena cultura da aparência: o contrato de casamento importa
mais que o amor, o funeral mais que o morto, as roupas mais do que o corpo e a
missa mais do que Deus”. Infelizmente, ele estava certo! A humanidade
burocratizou tanto a sua existência, que o exercício da fé vem se transformando
em uma mecanização ritual de extrema superficialidade. Sem contar, que na
maioria das vezes é exercida com vistas às barganhas vexatórias, à indiscriminada
oferta de indulgências incabíveis, à uma consolidação da hipocrisia.
Não nos esqueçamos de que “O amor é um ato de fé, e todo aquele
que tem pouca fé também tem pouco amor” (Erich Fromm – psicanalista, filósofo e
sociólogo alemão). As violências, as intolerâncias, as discriminações, os
preconceitos, estão por aí para confirmar! Que fé seria essa que permite matar?
Permite ofender? Permite maltratar? Permite humilhar? Permite usar o nome de
Deus para justificar as piores atrocidades, hein? “Não existe um conflito genuíno entre fé e razão; a lei natural e a lei
divina não discordam” (Ludwig von Mises – economista austríaco). O que
estamos presenciando in loco,
diariamente, é um movimento bizarro no qual “todas
as pessoas são iguais na sua secreta e silenciosa crença de que no fundo são diferentes
de todas as outras” (David Foster Wallace – romancista norte-americano).
Mais do que nunca, essa é a hora de nos perguntar “De que vale ter crença em Deus se perdemos a fé nos homens”? (Mia Couto – biólogo e escritor moçambicano). A resposta, talvez, não seja simples. “Somos madeira que apanhou chuva. Agora não acendemos nem damos sombra. Temos que secar à luz de um sol que ainda há. E esse sol pode nascer dentro de nós” (Mia Couto). Afinal, “A fé não é algo para se entender, é um estado para se transformar” (Mahatma Gandhi).