Em
todo tempo, em todo lugar, há sempre um Judas...
Por
Alessandra Leles Rocha
Sábado de aleluia. Dia de malhar
o Judas? Há tempos a prática vinha sendo esta; mas, dadas as conjunturas
atuais, melhor não. Um mínimo de dignidade e de constrangimento devem conter o
arroubo histórico, considerando o tamanho da legião de simpatizantes do
referido apóstolo que teimam em transitar por aí, tornando quaisquer investidas
mais raivosas um total absurdo.
Trair. Enganar. Atraiçoar.
Blefar. Burlar. Calotear. Defraudar. Disfarçar. Embaçar. Embromar. Embustear.
Engambelar. Engodar. Engrupir. Falsear. Fingir. Fintar. Fraudar. Como se vê são
muitas as palavras para definir esse gesto tão pequeno, tão desprezível, que a
humanidade teima em realizar. Trata-se da mais absoluta expressão do
individualismo, que passa por cima da ética e da moral sem exteriorizar qualquer
sentimento de culpa ou pesar.
Pois é, Judas errou feio e pagou
com a própria vida. Teve uma gota de decência imposta pelo peso descomunal na
consciência, por conta da traição a Jesus, e pôs fim a si mesmo. A sua malhação,
ao longo desses pouco mais de 2000 anos, na verdade, nunca fez o menor sentido.
No entanto, tal prática lançou luz sobre a transferência inconsciente, a qual a
maioria das pessoas faz em relação aos seus próprios pecados.
Pode-se tentar enganar a si
mesmo. Pode-se tentar enganar o mundo. Mas, a consciência ninguém engana. Lançar
os pecados sobre a carga dos pecados alheios para se eximir da própria culpa,
não passa de hipocrisia em estado bruto. Tanto que o próprio Cristo já dizia “quem não tiver pecados que atire a primeira
pedra” 1. O pior é que essa hipocrisia vem
acrescida da covardia, na medida em que nem a hombridade de Judas os atuais
traidores oferecem.
Aqui e ali não existe quaisquer
sinais de arrependimento, de desconforto, de vergonha, de consciência, por
parte deles. São traidores que se apropriaram convictamente dessa posição e
acreditam que através dela irão desfrutar de benefícios inimagináveis. Eles não
temem a fúria da opinião pública porque se acham legitimados pela própria sociedade.
A certeza de viverem sob um imenso telhado de vidro faz com que ninguém queira
se indispor com o outro, mantendo uma relação de superficial cordialidade.
Acontece que Judas traiu apenas o
seu Mestre; mas, nas traições contemporâneas tudo ganhou uma dimensão muito
maior e diversificada. Tudo é motivo para traição. Assim, elas emergem, muitas
vezes, de discursos e narrativas construídas a partir de promessas que nunca
tiveram a real intenção de serem mais do que isso. São encenadas com o requinte
da crueldade dos beijos e afagos pérfidos, para não deixar dúvidas aos seus
propósitos. Portanto, “os traidores são
colhidos na sua própria cobiça” (Provérbios - 11, 62).
O que a grande maioria das
pessoas não pensa é que “quando traímos
alguém, estamos a trair-nos a nós próprios também” (Isaac Bashevis Singer –
romancista norte-americano). Trair é uma escolha, uma decisão, na qual se
sabe exatamente o que está implicado. Ninguém trai pelo bem. Ninguém trai pelo
certo. Ainda que muitos digam isso. O traidor coloca-se no centro do mundo,
apagando a existência dos outros. Só ele, na sua inteireza absoluta é que
importa. Isso explica porque “a traição
nunca triunfa. Qual o motivo? Porque, se triunfasse, ninguém mais ousaria chamá-la
de traição” (J. Harrington – escritor inglês).
O importante de uma discussão como
essa, então, é trazer à tona que tipo de relação social a humanidade, de fato,
almeja estabelecer. Até aqui, os modelos de convivência e coexistência humana
parecem enovelados pelas tramas obscenas da traição desmedida. Traições que
corrompem os seres humanos de diferentes formas, que matam, que maltratam, que
subjugam, que humilham, que degradam.
Isso quer dizer que não é de
desconhecimento público a presença das traições entre nós. O próprio Cristo
sabia da existência de um traidor entre seus discípulos, porque por mais
dissimulada seja a traição, uma gota de observância mais acentuada para reter o
fel das suas más intenções. O traidor pode não acreditar, nas ele exala no ar o
odor da traição, pela agitação da sua própria inquietude.
Pode ser que sejamos traídos, algumas
vezes, por ingenuidade ou por excesso de credulidade. Mas, na imensa maioria das
vezes, a traição nos chega pela própria anuência, medida pela relação de custo/benefício
que se pode alcançar, envolta pelo manto da hipocrisia que tenta lhe disfarçar
o gosto amargo e indigesto das mesuras e dos rapapés. Não é à toa que Eleanor
Roosevelt, ex-primeira dama do EUA, dizia “se
alguém trai você uma vez, a culpa é dele. Se trai duas vezes, a culpa é sua”.
Lembre-se do que diz uma certa
canção “[...] Quando querem transformar /
Dignidade em doença / Quando querem transformar / Inteligência em traição / Quando
querem transformar / Estupidez em recompensa / Quando querem transformar /
Esperança em maldição: / É o bem contra o mal / E você de que lado está? [...]”
2. Afinal de contas, “Não se pode chamar de valor assassinar
seus cidadãos, trair seus amigos, faltar à palavra dada, ser desapiedado, não
ter religião. Essas atitudes podem levar à conquista de um império, mas não à
glória” (Nicolau Maquiavel – O Príncipe).
1 Evangelho
de São João, Capítulo 8.
2 1965 (Duas Tribos) – Eduardo Villa Lobos / Renato Russo / Marcelo Bonfá - https://music.youtube.com/watch?v=HkQ0z_wF91k&list=RDAMVMHkQ0z_wF91k