segunda-feira, 11 de abril de 2022

Para pensar...


Para pensar...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Do jeito que a vida está caminhando, a raça humana pode estar mesmo sob franca ameaça de ter o seu cérebro reduzido a órgão vestigial! Poxa, ninguém quer pensar! Ninguém quer refletir! Ninguém quer se valer do raciocínio lógico! Estão entregando, de mão beijada, a capacidade cognitiva e intelectual a quem possa interessar. E isso não é só triste; mas, sobretudo, extremamente perigoso.

Não se trata da velha e boa dicotomia entre o certo e o errado; pois, o pensamento humano não se resume a isso. Mas, do exercício que impõe a formulação das ideias a fim de nos posicionar dentro dos cenários possíveis e disponíveis da vida, demarcando os limites e as perspectivas dos riscos e dos benefícios que possam ser desfrutados.

Pensar tem tudo a ver com escolher, com decidir e por mais que as consequências e desdobramentos possam se decompor em gradações, que nos atingem direta ou indiretamente, com mais ou menos intensidade, no fim das contas o resultado se torna particularizado para cada um.

O que parece ser coletivo, não passa de uma espuma que não traduz exatamente a dimensão e a profundidade do pensamento. É como se fosse um denominador comum, que existe para trazer e estabelecer um certo nível de harmonia e equilíbrio coletivo.

Mas, individualmente “[...] cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é [...] 1, porque o seu pensamento pode atravessar e ser atravessado por questões muito próprias, muito pessoais, inclusive, a própria expressão coletiva.

É o caso da guerra, por exemplo. Ela parece traduzir um pensamento coletivo, na medida em que afeta um vasto contingente de pessoas. Mas, ela não é uma manifestação de caráter plural, quando se sabe que não foi uma decisão acordada e deliberada por todos.

Sem contar que as consequências e seus desdobramentos são percebidos, sentidos, digeridos, assimilados, de modo muito singular por cada indivíduo, no exercício do seu pensamento, das suas reflexões, da sua criticidade.

Por isso é tão desconfortável olhar para a contemporaneidade e se deparar com correntes humanitárias que se dispõem a abdicar do pensamento, para se deixar levar por qualquer um. Trata-se não só de uma ruptura processual, do ponto de vista cognitivo/intelectual; mas, de algo que amplifica a imprevisibilidade que se esconde nos resultados.

Ao queimar etapas de um processo que o indivíduo desenvolve a partir de si mesmo, das suas referências de mundo, ele abdica de uma certa segurança que emerge em se dar um passo de cada vez, ou seja, ele fica à deriva do que um outro pensou e só esse (outro)  pode inferir a respeito dos resultados.

Então, o que parece cômodo e prático às vistas do imediatismo contemporâneo, na verdade esconde perigos inimagináveis. Ora, a vida não pode ser passada a limpo! De modo que muitos dos pensamentos produzidos irão se repercutir por um tempo imprevisível, gerando caos, dor, sofrimento, angústia, aflição, ... sem que seja possível mitigar ou extinguir seus efeitos, com a rapidez necessária.

O pior é que esses pensamentos aparentemente trazidos pelas asas da liberdade individual, no fundo, não passam de uma reprodução em série, a partir da manipulação do inconsciente coletivo, ou seja, reflexos de padrões instituídos pelas correntes de força do poder social, popularmente conhecida como Pós-Verdade.

Quem já leu ou assistiu ao filme homônimo, O doador de Memórias (The Giver)2, de Lois Lowry, consegue construir uma percepção do que seria esse “desuso da capacidade cerebral”, através de mecanismos de vigilância, controle e manipulação social.

A obra traz uma reflexão acerca do condicionamento da liberdade à uma perda lenta e gradual da identidade, a fim de que a humanidade possa enfim se constituir por legiões de seres humanos massificados, homogeneizados.

Aponta-se, portanto, o gigantesco risco das narrativas e discursos habilmente persuasivos, os quais parecem inofensivos e despretensiosos. Daí a necessidade de trazer à tona essa discussão.

Que as palavras, as ideias, sempre foram consideradas uma ameaça aos poderes de todos os tempos, disso ninguém dúvida. Não é à toa que Virginia Woolf escreveu, “Tranque as bibliotecas, se quiser; mas, não há portões, nem fechaduras, nem cadeados com os quais você conseguirá trancar a liberdade do meu pensamento”.

Por isso, a pergunta a se fazer na contemporaneidade é por que razões a humanidade, sabendo disso, se curva a não mais pensar? Bem, o filósofo espanhol José Ortega y Gasset dizia que “Pensar é o ato de capturar a realidade por meio das ideias”. Quando deixamos que a realidade nos atravesse sem ser percebida, sem causar quaisquer desconfortos, é porque anestesiamos o pensamento.

Nos tornamos indiferentes, alheios, ao que mais nos importa, que é a própria vida. E aí, a maldade em todas as suas formas e conteúdos, direções e sentidos, se esbalda porque não encontra resistência de nenhum oponente à sua altura.

Portanto, trabalhemos em sentido contrário ao de transformar nosso cérebro em órgão vestigial, sem função, sem importância. Sigmund Freud afirmava que “O pensamento é o ensaio da ação” e não há transformação, de qualquer natureza, sem que haja uma ação.

Então, “Pensa! O pensamento tem poder. Mas não adianta só pensar. Você também tem que dizer! Diz! Porque as palavras têm poder. Mas não adianta só dizer. Você também tem que fazer! Faz! Porque você só vai saber se o final vai ser feliz depois que tudo acontecer” (Gabriel O Pensador – rapper brasileiro).  



1 Dom de Iludir (Caetano Veloso) - https://www.youtube.com/watch?v=bTh8J6Yo-xM

2 O doador de Memórias (The Giver), de Lois Lowry, 2014. - https://www.editoraarqueiro.com.br/ebooks/doador-de-memorias-o/

Dica de leitura: Língua e linguagem na construção distópica de O Doador de Memórias - http://www.periodicos.ufc.br/entrelaces/article/view/31271