Para
pensar...
Por
Alessandra Leles Rocha
Do jeito que a vida está caminhando,
a raça humana pode estar mesmo sob franca ameaça de ter o seu cérebro reduzido
a órgão vestigial! Poxa, ninguém quer pensar! Ninguém quer refletir! Ninguém
quer se valer do raciocínio lógico! Estão entregando, de mão beijada, a
capacidade cognitiva e intelectual a quem possa interessar. E isso não é só
triste; mas, sobretudo, extremamente perigoso.
Não se trata da velha e boa dicotomia
entre o certo e o errado; pois, o pensamento humano não se resume a isso. Mas,
do exercício que impõe a formulação das ideias a fim de nos posicionar dentro
dos cenários possíveis e disponíveis da vida, demarcando os limites e as
perspectivas dos riscos e dos benefícios que possam ser desfrutados.
Pensar tem tudo a ver com
escolher, com decidir e por mais que as consequências e desdobramentos possam se
decompor em gradações, que nos atingem direta ou indiretamente, com mais ou
menos intensidade, no fim das contas o resultado se torna particularizado para
cada um.
O que parece ser coletivo, não
passa de uma espuma que não traduz exatamente a dimensão e a profundidade do
pensamento. É como se fosse um denominador comum, que existe para trazer e
estabelecer um certo nível de harmonia e equilíbrio coletivo.
Mas, individualmente “[...] cada um sabe a dor e a delícia de ser
o que é [...] 1, porque o seu pensamento
pode atravessar e ser atravessado por questões muito próprias, muito pessoais,
inclusive, a própria expressão coletiva.
É o caso da guerra, por exemplo. Ela
parece traduzir um pensamento coletivo, na medida em que afeta um vasto contingente
de pessoas. Mas, ela não é uma manifestação de caráter plural, quando se sabe
que não foi uma decisão acordada e deliberada por todos.
Sem contar que as consequências e
seus desdobramentos são percebidos, sentidos, digeridos, assimilados, de modo
muito singular por cada indivíduo, no exercício do seu pensamento, das suas
reflexões, da sua criticidade.
Por isso é tão desconfortável
olhar para a contemporaneidade e se deparar com correntes humanitárias que se dispõem
a abdicar do pensamento, para se deixar levar por qualquer um. Trata-se não só
de uma ruptura processual, do ponto de vista cognitivo/intelectual; mas, de
algo que amplifica a imprevisibilidade que se esconde nos resultados.
Ao queimar etapas de um processo
que o indivíduo desenvolve a partir de si mesmo, das suas referências de mundo,
ele abdica de uma certa segurança que emerge em se dar um passo de cada vez, ou
seja, ele fica à deriva do que um outro pensou e só esse (outro) pode inferir a respeito dos resultados.
Então, o que parece cômodo e
prático às vistas do imediatismo contemporâneo, na verdade esconde perigos inimagináveis.
Ora, a vida não pode ser passada a limpo! De modo que muitos dos pensamentos produzidos
irão se repercutir por um tempo imprevisível, gerando caos, dor, sofrimento,
angústia, aflição, ... sem que seja possível mitigar ou extinguir seus efeitos,
com a rapidez necessária.
O pior é que esses pensamentos aparentemente
trazidos pelas asas da liberdade individual, no fundo, não passam de uma
reprodução em série, a partir da manipulação do inconsciente coletivo, ou seja,
reflexos de padrões instituídos pelas correntes de força do poder social,
popularmente conhecida como Pós-Verdade.
Quem já leu ou assistiu ao filme homônimo,
O doador de Memórias (The Giver)2, de Lois Lowry, consegue construir uma
percepção do que seria esse “desuso da
capacidade cerebral”, através de mecanismos de vigilância, controle e
manipulação social.
A obra traz uma reflexão acerca do
condicionamento da liberdade à uma perda lenta e gradual da identidade, a fim
de que a humanidade possa enfim se constituir por legiões de seres humanos
massificados, homogeneizados.
Aponta-se, portanto, o gigantesco
risco das narrativas e discursos habilmente persuasivos, os quais parecem inofensivos
e despretensiosos. Daí a necessidade de trazer à tona essa discussão.
Que as palavras, as ideias,
sempre foram consideradas uma ameaça aos poderes de todos os tempos, disso
ninguém dúvida. Não é à toa que Virginia Woolf escreveu, “Tranque as bibliotecas, se quiser; mas, não há portões, nem
fechaduras, nem cadeados com os quais você conseguirá trancar a liberdade do
meu pensamento”.
Por isso, a pergunta a se fazer
na contemporaneidade é por que razões a humanidade, sabendo disso, se curva a
não mais pensar? Bem, o filósofo espanhol José Ortega y Gasset dizia que “Pensar é o ato de capturar a realidade por
meio das ideias”. Quando deixamos que a realidade nos atravesse sem ser
percebida, sem causar quaisquer desconfortos, é porque anestesiamos o
pensamento.
Nos tornamos indiferentes,
alheios, ao que mais nos importa, que é a própria vida. E aí, a maldade em
todas as suas formas e conteúdos, direções e sentidos, se esbalda porque não
encontra resistência de nenhum oponente à sua altura.
Portanto, trabalhemos em sentido contrário
ao de transformar nosso cérebro em órgão vestigial, sem função, sem importância.
Sigmund Freud afirmava que “O pensamento
é o ensaio da ação” e não há transformação, de qualquer natureza, sem que
haja uma ação.
Então, “Pensa! O pensamento tem poder. Mas não adianta só pensar. Você também
tem que dizer! Diz! Porque as palavras têm poder. Mas não adianta só dizer. Você
também tem que fazer! Faz! Porque você só vai saber se o final vai ser feliz
depois que tudo acontecer” (Gabriel O Pensador – rapper brasileiro).
1 Dom de
Iludir (Caetano Veloso) - https://www.youtube.com/watch?v=bTh8J6Yo-xM
2 O doador de Memórias (The Giver), de
Lois Lowry, 2014. - https://www.editoraarqueiro.com.br/ebooks/doador-de-memorias-o/
Dica de leitura: Língua e linguagem na construção distópica de O Doador de Memórias - http://www.periodicos.ufc.br/entrelaces/article/view/31271